A veste vermelha

Foi aqui, em uma cidadezinha do interior que agora não me lembro exatamente bem seu nome nem exatamente quando isto tudo se deu. Qual era o nome da cidade mesmo? Hm, que cidade? Ah, sim, daquela história que contei?... É, você disse que não se lembrava do nome, sei. Ilha, foi em Ilha Solteira. Humm. É, eu estudei lá, na faculdade de lá. Acho que já passei por lá. Sério?! Eles fazem bastante festas lá, por causa da universidade e tals, não é? É, sempre tem festas lá, a maioria universitárias mesmo. Acho que devo ter ido em uma ou duas. Sabe, é engraçado, O quê? que foi em uma festa que eu fiquei sabendo dessa história... Conheci a estagiária de Direito lá, ela me contou ... Ninguém se importa com o nome da cidade, pô. Conta logo a história. E, embora fosse uma cidadezinha interiorana, é preciso que se diga, era um município respeitado até então. Nos poderes públicos, Prefeitura, Câmara e Secretarias, não havia registros de escândalos anteriores. Mano, cê enrola demais! Traz outra aqui, por favor! Valeu! A universidade estadual dali era não só renomada, como fonte de grandes produções e inovações científicas. Sei, um bando de baderneiros e maconheiros. O próprio jornalzinho da cidade se erguia orgulhoso em cima de comparativos e superlativos para com a sua pacatíssima cidade.

Tá, e daí, diz logo o que aconteceu. É, poxa, a minha breja já acabou e a sua já tá dando mosquito da dengue. É, tá que nem um chá, já. Até que, o velho secretário da Secretaria Municipal do Trabalho, Emprego e Economia declarou, de repente, traz mais uma aqui, valeu! Valeu! que esperaria que todos os homens usassem apenas roupas da cor verde e que todas as mulheres usassem apenas roupas da cor amarela. Que idiota! Não é!, foi o que eu pensei quando ouvi pela primeira vez essa história. Por que diabos um velho iria querer opinar nas roupas que as pessoas usam, É, que safado, asqueroso da pega. As vezes ele tinha um fetiche com fardas, é um lambe-botas, Sei lá, mais tarde eu li o discurso dele, estava no diário oficial. Enfim, de qualquer formar, a declaração, no princípio, não teve nenhum efeito. Aliás, foi ignorada por quase toda a cidade. O único registro mesmo que se teve dela foi no diário oficial municipal. Ninguém lê essas coisas. Exceto você, nerdão. Que nada, pô, tinha ficado curioso. Sei, O que dizia lá? Quê que esse véi safado falou então? Não lembro bem, acho que..., a sei lá. Deixe o cara falar logo senão não acaba hoje. É, cê mete o loco.

Mas pelo que eu me lembro, de qualquer forma, não havia também uma razão para que tal declaração chocasse alguém, é, exceto o fato do velho ser um taradão, não era nada tão absurdo assim e, é, normalizamos o absurdo, aí nada fica tão absurdo assim, como estávamos no tempo comum, o padre tinha que rezar a missa de verde mesmo, e, ora, se o padre tinha que usar verde, quem é que liga pra cor da roupa do padre, mano! Ih, olha lá, o coroinha com saudade de rezar, então, bolas, todos os homens também podiam. Entre os filhos de Adão o caso passou desapercebido. Quem é Adão, mano?! Pera, o que foi que o velho disse mesmo? Sabe, fiquei curiosa... tô aqui lembrando, sei lá, você me deixou bastante curiosa com essa tal historinha. Hmm, esse era o objetivo. Sei. Missão cumprida. Eu, se fosse você, não sairia por aí cantando vitória. Ué, por que não? Você deixou muito a desejar. Ah! para, vai dizer que cê não gostou, hem? Eu ainda estou com fome, quero mais. Mais? vem cá, muito mais... vai me falando o que esse velho disse. Isso, assim, assim. Hmmm.

Contudo, uma jovem estudante de Direito, será que ela faz direito, hein? que estagiava na Câmara, ao saber que na semana seguinte os vereadores iriam votar uma lei n° 1745, que, pelo que ela entendeu, tornaria obrigatório o uso de verde por homens e amarelo por mulheres, ficou aterrorizada e escandalizada, quem não ficaria!, acho que não tenho nenhuma roupa toda amarela, É, ia ter que sair que nem um louco comprando roupas verdes, Mas como ia funcionar essa lei? Eles iam dar multa, iam prender, o quê? Sei lá, pô, fica queto aí, meu, não faz perguntas difíceis. Sei que daqui a um mês, vejam só, ela teria uma grande festa..., foi naquela festa que você conheceu ela? É, foi, ...para ir e já tinha comprado sua roupa, um vestido todo vermelho, aliás, sem nenhum sinal de amarelo. Ela contou, indignada, a péssima nova para suas amigas que também iriam para essa festa, que também já haviam comprado a roupa para a tal festa e que, por um infeliz acaso, vejam vocês, nenhuma dessas roupas eram amarelas, gente, quem é que vai de amarelo pra uma festa, é horrível usar amarelo de noite, sim, imagina.

A indignação, então, se espalhou entre elas e a notícia de que uma lei autoritária logo acabaria com a liberdade de escolha e, principalmente, de consumo de todos os habitantes daquela cidade correu de boca em boca. Logo, toda a cidade estava debatendo o caso. Disse Otávio com uma voz de dó em clave de fá lançando, já, um olhar mais demorado, aquele olhar que sorri de lado marotamente, sem, contudo, alterar a expressão marrenta e dura que trazia, sempre, no rosto, para Clara. Ah!, perdoe-me, desculpe-me, releve-me você. Você deve ter percebido essa nova voz destoante das demais, não é mesmo? Essa voz atrapalhando a harmonia sinfônica dos dois movimentos dessa nossa fuga. É a minha voz. Estou meio atrasado, para ser mais exato, estou uns quatro parágrafos atrasado. Desculpe-me por isso, estava meio enrolado com algumas coisas ali que nem vi quando a história começou. Também não sou muito experiente com essa coisa de narrador, ainda estou me acostumando em ser uma voz sem corpo. Bem, Otávio é o nosso sedutor, o nosso herói, ele começou a contar esse caso, no meio da roda de amigos, que teria se passado em Ilha para impressionar e seduzir as meninas que estavam ali com eles. Acabou, como vocês já devem ter percebido, ou não, por instigar a nossa bela Clara. Ao perceber isso, Otávio focou todos os seus esforços nela unicamente e terminou, como vocês devem ter notado também, ou não, a noite nos braços dela. Aliás, não só esta noite; nossa bela Clara sofre de uma doença socio-patológica crônica e secular de insaciedade. Afeta muitas filhas de Safo dessa nossa sociedade socrática, e, Otávio, bem, Otávio é um sujeito da falha, nunca consegue a plenitude do ato, por isso é um sedutor e por isso voltou mais umas cinco noites para os braços cândidos de Clara.

Enfim, continuou Otávio. Comissões foram instaladas, assembleias realizadas, manifestações conclamadas, palestras, estudos, debates, discussões. A cidade ficou dividida. Alguns tomaram o partido do secretário e passaram a usar, eles mesmos, os homens, apenas verde, e, as mulheres, apenas amarelo, mano, quem são os loucos de fazerem isso? Véi, tem loco pra tudo. Outros tantos, indignados com a restrição de suas liberdades, protestaram. Os ânimos chegaram a tal ponto que os partidários do verde-amarelismo deixaram de tratar os homens que não usavam verde por homens e as mulheres que não usavam amarelo por mulheres, o povo acha que tudo é futebol, mano. Não é?! As leis naturais da tranquilidade e da harmonia ficaram totalmente suspensas enquanto essa tal lei do verde-amarelo não fosse decidida.

Otávio passou a narrar, então, minuciosamente, a forma como aquele estranho desejo do velho secretário afetou profundamente a vida nos diversos segmentos da nossa pacata Ilha. Disse desejo, veja bem. O velho secretário trazia em sua alma esse desejo, era um desejo mesmo, de ver as mulheres vestidas apenas de amarelo e os homens todos fardados de verde. Essa era a única e última fantasia que havia restado no imo peito desse nosso nobre homem público. Tinha origem em não tão estranhos sentimentos nostálgicos e passadistas, que também não são tão esporádicos assim e afetam, majoritariamente, o espírito daqueles que creem, erroneamente, que já vivem em um tempo que não no deles; de seu tempo de menino em que, no colégio, tinha, ele e todos os meninos, de usar um uniformezinho verde e as mocinhas tinham de usar uma camiseta branca com uma bela saia e belas meias da cor amarela. Colunistas, dos dois lados, se publicavam enfurecidamente textos raivosos e delirantes no jornalzinho da cidade, em que proclamavam ou o absurdo, ia narrando Otávio, sempre buscando, com todo seu corpo, menos com a cabeça, claro, o corpo de Clara, da lei ou a virtuosidade da obrigação de se usar o verde e o amarelo.

A Igreja tomou partido da lei. O padre, santo homem, chegou até a dizer em certa homília que estava na Bíblia, que os homens usassem verde e as mulheres amarelo era um mandamento da lei de Deus e que tudo isso indicava o fim dos tempos.

O comércio municipal não tomou, publicamente, partido, pois não se decidia se seria mais lucrativo vender roupas apenas de duas cores ou de várias; contratou estudiosos e encomendou uma pesquisa.

A alta classe burguesa da cidade apoiou incondicionalmente a lei de seu amigo secretário. Ora, onde já se viu um sujeito honesto e cidadão de bem usar roupas amarelas! Ou uma moça honrada e de respeito usar tecidos verdes! É uma indecência, uma pequenez, os valores estão todos invertidos! Disseram tudo isso, naturalmente, é claro, depois de queimarem totalmente, os homens, suas roupas amarelas e as mulheres, suas roupas verdes.

O baixo povo da rua só tinha certeza que isso nada resolveria de seus problemas, que todos os políticos são ladrões, que o mundo vai acabar e que é difícil ser patrão em nosso país, por isso não havia mais emprego.

A ordem dos advogados se dividiu. Aqueles com um olho em uma vaga na secretaria e na prefeitura eram favoráveis à lei. Já aqueles, digamos, mais interessados em coisas menos passageiras que essas ninharias, por já estarem com a vida ganha em seus escritórios e fazendas, eram contrários a lei.

Inúmeras teses, teorias, justificativas e desculpas foram criadas contra e a favor da lei. Um jornalista, amigo meu, chegou a publicar no jornalzinho a tese de que o verde-amarelismo era a mais sincera expressão do ufanismo e patriotismo, visto que verde e amarelo são as cores de nossa bandeira nacional.

Um adversário, nesse assunto, deste meu amigo e, por acaso, conhecido meu, oloco em bixo, cê conhece todo mundo! É cidade do interior, mano, não é que nem aqui, lá todo mundo se conhece e se tromba direto, enfim, ele se tornou figura central na organização de debates, sabatinas e abaixo-assinados contra a proibição da plena liberdade de vestimenta. Ué, mas seus amigos não tinham participado diretamente desses acontecimentos e você só foi saber de tudo isso por aquela estagiária? É, mais ou menos, eles não eram bem meus amigos, eram mais... Ah, então quer dizer que você mentiu? Ei, eu não menti. Não, é? Eu só deixei a história da estagiária mais interessante. Hm, sei. É, sabe, ela estava bêbada quando me contou...

Os doutores e pós-doutores da universidade da cidade elaboraram teses, escreveram artigos, criaram grupos de estudos, casos de estudos, objetos de estudos. Os de Direito debatiam a legalidade do fato. Os de Filosofia filosofavam sobre a moralidade ou imoralidade do caso. Os de Sociologia apontavam a luta de classes como causa principal do ocorrido. Os de Economia se perdiam em cálculos metafísicos tentando antever as implicações, se negativas ou positivas, certamente negativas, profetizavam eles, da interferência municipal nas vendas de roupas na economia regional. Tudo corria como deveria correr em casos excepcionais como esse, não havia nada de novo ou exótico nesses acontecimentos exceto a excepcionalidade mesma do fato.

Contudo, a outra semana já havia chegado e estávamos no dia da votação da tal lei. Toda a cidade se reuniu em polvorosa na Câmara Municipal, uns para votarem a lei, outros, para trazerem argumentos contrários ou favoráveis à lei, outros ainda, a maioria, por mera curiosidade ou sentindo, pela primeira vez em cem anos de nosso sereno republicanismo, o chamado do dever cívico, contrariando, totalmente, o não tão distante costume pacato da cidade.

O debate durou todo o dia. Cada segmento da sociedade havia trazido seus representantes para exporem seus interesses e tentarem convencer os vereadores a votarem de acordo com os interesses que defendiam. Cada vereador ouviu até a terceira palavra de seja lá quem estivesse na tribuna e depois falaram, cada um, três vezes mais do que a língua humana foi projetada, se é que o foi, para falar, que nem cê tá fazendo agora?! Calma lá, mano, tô terminando, já. Aí gente, valeu mesmo, vou ter que partir, tem uma parada aí agora, falou, falou. Ih, olha lá, o cara tá com uns esquemas. Olha o traíra aí. Ei, manda um beijo meu pra garota. Pode deixar, só não vou dizer que foi você quem mandou.

Falou, mano, até a próxima. A noite chegou, depois a madrugada, depois a manhã de um novo dia. Velho, para de enrolar, já tou na quinta torre aqui. Entardeceu, anoiteceu de novo e já era madrugada quando o último sujeito começou a expor seu ponto de vista sobre a lei 1745. Este último sujeito era um russo, professor de Física da universidade, tive, inclusive, aulas, aulas, sei, com ele quando cursava engenharia mecânica lá. Vem cá, aquele seu professor era russo mesmo? Era. Hmm, que interessante. E como é que ele falava. Levanta aí, não, assim não, abaixa aqui, ele falava assim ó, e havia feito toda uma pesquisa empírica com todo o rigor científico; trazia dados concretos e objetivos para o debate. Começou explicando os conceitos da Óptica, olha o nerdão, olha o nerdão, do espectro visível, passou da física clássica para a mecânica quântica, relativizou tudo - enquanto o doutíssimo professor fazia sua exposição do caso, o presidente da Câmara, para começar logo que o professor terminasse seu blá-blá-blá a votação da lei, pediu para que os documentos, ofícios, pastas e tudo mais relativo e necessário para iniciar a votação da lei nº 1745 ficassem prontos em sua mesa diretiva - e concluiu, de acordo com sua fórmula Verde + Amarelo sobre o cosseno da tangente do seno das Roupasx que é igual, sempre, a zero, que o caso só poderia ser, vejam vocês, um grande mal-entendido.

Finda a exposição do professor, que todos os presentes ali, inclusive o apresado presidente da Câmara, só perceberam cinco minutos depois ao se darem conta que não havia mais ninguém falando além deles mesmos, a votação teve início. O presidente da Câmara Municipal leu o protocolo... Apresentação da Proposta de Emenda à Lei Orgânica n. 1745/2018, pelo deputado Fernando Paulo da Silva (TRAB-SP), tinha que ser esses vermelhinhos, malditos, mano, esse povo destruiu o país, bando de ladrões safados, que: “Acrescenta o inciso XVII ao art. 5º da Lei Orgânica Municipal, para tratar como dever não mais obrigatório o uso de vestimentas de tons claros em espaços hospitalares, com os meios a tanto necessários ...", e em seguida passou a palavra para os demais vereadores votarem. Ainda curiosa e insaciável, ou curiosa porque insaciável, Clara buscava na conversa com Otávio satisfazer-se, de algum modo. E como é que era, perguntava Clara em uma ânsia tremenda, esse vestido vermelho dela, ele ficaria bem ao ser despido por mim? hemm? Humm, não sei, respondeu Otávio, satisfeito por ver que a história que havia contado há umas três semanas atrás ainda instigava a curiosidade de Clara, a única coisa que eu me lembro que ela tinha de vermelho, naquela noite, depois da festa, ia dizendo Otávio sem se dar conta que aquela noite seria a última que passaria nos cândidos braços de Clara, era a calcinha.