BATOM VERMELHO.

Luiza acordou cedo, embora o sono ainda pesasse nas pálpebras, não cedeu aos encantos de mais um cochilo, levantou de um salto e tratou de arrumar a cama no mesmo instante. Era mais uma segunda-feira odiosa, o trabalho de casa acumulado, balde de roupa transbordando. O esposo saiu cedo para o trabalho, a empresa em que trabalhava ficava na cidade vizinha, obrigando-o a levantar de madrugada para não perder o fretado.

O casamento passava por momentos complicados, as brigas com Arnaldo ficava mais frequentes a cada dia, desentendimentos, indiferença da parte dele. Luiza afundava em uma tristeza que a consumia dia a dia, pensava na separação.

Na pia da cozinha ficou a louça suja do jantar de domingo, Luiza pediu para Arnaldo lavar enquanto ela terminava de passar as roupas de trabalho, ele fez que não a escutou, continuou assistindo o jogo na televisão, passou o dia de Folga assistindo.

Era sempre assim, todas as vezes em que Luíza lhe pedia algo, Arnaldo não fazia questão de ajudá-la, e nas raras vezes em que se propunha, fazia apressadamente, de mau gosto. As brigas já se arrastavam por um bom tempo. Mesmo com as ameaças de Luíza, Arnaldo era indiferente, repetidas vezes ela dizia: “Já que você não me dá valor Arnaldo, outro dará, abre o olho, qualquer dia desses eu te troco por outro”. Arnaldo tentava justificar seus erros, atitude que deixava Luiza ainda mais furiosa.

Era pouco mais de dez horas da manhã quando ela terminou de lavar a roupa. A louça estava seca no escorredor, guardou-a, tomou o café apressadamente, foi para o quarto, trocou-se colocando a sua melhor roupa, perfumou-se, passou o batom, vermelho forte que comprou escondido do marido, a última vez que ela usou batom era na adolescência. Luiza estava decidida passar à tarde inteira fora, ir ao shopping, pegar um cinema, comer em algum restaurante diferente. Há muito desejava fazer algo assim com o esposo, mas quando o chamava era sempre as mesmas desculpas, cansaço, indisposição. Agora quem estava cansada era ela, deixou isso bem claro no bilhete na mesa da cozinha.

O ponto de ônibus estava lotado, estudantes, trabalhadores, idosos. Alguns conversavam, outros estavam de olhos grudados no celular, Luíza apenas observava, presa em seus muitos pensamentos, conflitos internos, desejos, raiva, vontade de fugir para bem longe. Pensava nas consequências, no que havia dito para o esposo, de trocá-lo por outro, eram tantos os seus pensamentos que a cabeça doía. O ônibus finalmente havia chegado, Laranjeiras 42, estava vazio, ela teria que ir ao terminal rodoviário Santo Antônio e embarcar em outro ônibus, bairro campolim, que parava em frente ao Iguatemi Esplanada. Com sorte, se o trânsito não estivesse ruim, daria tempo de almoçar antes da sessão de cinema das duas da tarde. Luiza sentou-se no último banco do ônibus, o olhar perdido no horizonte, casas, comércios, a cidade passava diante de seus olhos, o coração afundado em angústia.

Quarenta minutos depois Luiza desceu em frente ao Shopping, no estacionamento figuravam poucos carros, movimento típico de uma segunda-feira. A passos lentos ela seguiu rumo a entrada principal, passou ao lado da loja das casas Bahia, parou por uns instantes, não quis entrar, seguiu a esquerda ao lado de uma joalheria, foi reto, lojas de roupas e calçados de ambos os lados, ao final do corredor estava a praça de alimentação, escolheu comer no Lacoste, sempre desejou comer naquele restaurante, comida Italiana, Arnaldo nunca a levou em um restaurante, tinha sempre uma desculpa pronta.

Luíza, decidida, comeria ali mesmo antes da próxima sessão de cinema, que começaria às duas da tarde. No restaurante, sentou-se em uma mesa mais afastada, os conflitos em sua cabeça ainda continuavam. A garçonete veio atendê-la, cardápio nas mãos.

- Boa tarde senhorita, quer dar uma olhada em nosso cardápio? Temos ótimas opções para hoje.

- Boa tarde, quero sim.

- Fique a vontade para escolher o seu prato, depois é só me chamar, não tenha pressa.

- Obrigada.

Luíza estava indecisa no que iria comer, eram tantas as opções, enquanto escolhia, lembranças vieram à mente, a escola, os amigos, antigos namorados. Do lugar que estava era possível ver o lado de fora, movimento intenso, hora do almoço. Um moço com um buquê de rosas chamou-lhe a atenção, a fez lembrar da única vez em que ganhou rosas como aquelas. Foi no ginásio, quando nem conhecia Arnaldo ainda, um amigo dele que havia lhe presenteado com um buquê de rosas vermelhas, o nome do rapaz era Carlos. Na ocasião foram ao cinema juntos, ele era apaixonado por ela, tentou beijá-la, mas Luiza queria apenas a amizade.

Escolhido o prato, chamou a garçonete e fez o seu pedido. Luiza já estava acostumada a comer sozinha. Enquanto esperava, perdida em tantos pensamentos, alguém se aproximou, ela nem percebeu, uma voz rouca então lhe falou:

- Boa tarde moça, posso me sentar aqui?

Luiza levou um tremendo susto, virou-se para ver quem era.

- Perdoe-me, não era minha intenção te assustar.

- Carlos… Meu Deus! É você… Mas…

- Quanto tempo em amiga… Eu sei que estou… Assim… Diferente, a aparência não ajuda muito. Mas você… Nossa… Você está… Ainda mais linda.

- Obrigada Carlos, sente-se rapaz, vai ficar aí de pé. Mais que coincidência, meu Deus! Sério… Nos encontrarmos aqui, e logo hoje.

- Coincidência… Como assim?

- Não é nada, deixa pra lá, é só jeito de falar.

- O quê você faz aqui rapaz?

- Eu vim espairecer, descansar a cabeça dos problemas, pegar um cinema, sempre faço isso.

- Sério… Mais olha que coincidência, novamente… Pois eu vim fazer o mesmo.

- Ah que bom, então a gente poderia aproveitar e assistir um filme juntos, sei lá, fazer companhia um para o outro, se não for incomodar é claro, de repente, você pode estar acompanhada.

- Pode sim, não estou acompanhada, para mim está ótimo, aproveita e almoça comigo.

Carlos aceitou, fez o seu pedido, enquanto almoçavam, conversaram sobre diversos assuntos. Luiza contava-lhe do casamento frustrado, das brigas com Arnaldo, do quanto ele era rude. Carlos estava se separando, as brigas, o ciúmes doentio da ex-esposa culminou no divórcio. Enquanto conversavam e trocavam confidências, Luíza discretamente olhava para o lado de fora, imaginando que a qualquer momento Arnaldo fosse aparecer, embora ela soubesse que seria impossível vê-lo ali.

As horas voaram, estava quase no horário do filme, saíram às pressas para o cinema, que era no final do corredor a direita. Conseguiram chegar a tempo, comédia romântica, havia poucas pessoas. Luiza estava confusa, os seus sentimentos era uma mistura de medo, culpa, euforia, desejos.

Após o filme, Luiza e Carlos passearam pelo Shopping, olharam algumas lojas. A tarde avançava apressada, temerosa pela reação de Arnaldo, ela resolveu que tinha que ir embora. Um discreto beijo no rosto, a marca de batom, cada um foi para o seu lado. Ele, prometeu enviar mensagens, ela, à respondê-lo. Era o recomeço de uma antiga amizade, que agora tomava um discreto formato de algo a mais.

Dias depois…

Mensagens trocadas entre Carlos e Luiza.

Carlos.

" Olá boa noite, tudo bem? Estou com saudades, você não respondeu minhas mensagens".

Luiza.

" Oi… Boa noite. Mil perdões Carlos, dias difíceis… "

Carlos.

" O que houve?"

Luiza.

" Eu tive uma briga muito feia com o Arnaldo, feia mesmo. Estamos dormindo em camas separadas".

Carlos.

" Se quiser falar sobre isso, de repente, desabafar. Sou todo ouvidos".

Luiza.

" Obrigado Carlos, você é um amor".

Carlos.

" Imagina, você que é maravilhosa".

Luiza.

" Exagero seu… Sou não... Estou me sentindo um trapo".

Carlos.

" A Ana tentou voltar comigo, mais não dei chances, cortei logo de cara, ela não me deu valor, perdeu".

Luiza.

" Ah… Eu penso nisso todos os dias sabe, queria ter essa coragem, jogar tudo para ar e vê no que dá".

Carlos.

" E vai ficar sofrendo mulher, sendo humilhada por quem não te dá valor. Separe logo".

Luiza.

" Sei não… Depois tem a igreja, nossas famílias, e todo o falatório que isso vai dar. Sem dizer que eu é que vou sair por ruim".

Carlos.

" Você é tão linda Luiza, tão especial, 'se me permite a ousadia' a mulher dos meus sonhos.

Luiza.

" Nossa! Não é pra tanto vai, exagero seu, nem sou tudo isso".

Carlos.

" É isso e muito mais".

Luiza.

" Lembra aquele dia… O almoço no shopping, cinema. Pois então, quando cheguei em casa quebramos o pau, brigamos feio, ele me falou horrores por causa do batom que usei. Ele me disse que eu deveria ter avisado antes de sair, dizer que lugar estava. Agora… Logo eu, aquele antipático, insensível, grosso. Ele disse que eu era sua mulher e lhe devia conta do que fazia. Fiquei uma fera, subir nas tamancas, falei que não tinha que dar satisfação a ninguém. Ai Carlos…Não sei o que faço".

Carlos.

" Você merece algo melhor amiga, uma vida melhor, alguém que te ame de verdade"...

O relógio marcava onze e meia da noite, Arnaldo acabava de chegar do trabalho, naquela semana estava no turno da tarde. Tentou cumprimentar Luiza com um beijo no rosto, que virou a face no mesmo instante, nem ao menos respondeu. Arnaldo tentou dialogar, pedir perdão como sempre fazia, Luiza deu de ombros. Escondeu o celular para que ele não percebesse o que ela estava fazendo. Arnaldo desistiu de tentar, pegou o pijama no guarda roupas, toalha, foi tomar o seu banho, dormiria no sofá da sala.

Luiza continuou no celular, as mensagens ficavam cada vez mais íntimas, adentrando em assuntos delicados, perigosos. Chegou ao ponto de ambos falarem de sexo, do que gostavam e não gostavam, Luíza estava carente, era notável o desejo de um pelo outro. Ela sentia o seu corpo arder de desejo pelo amigo, como nunca sentiu em todos os anos com Arnaldo. Até que chegou ao ponto de marcarem um encontro, seria um jantar romântico, e talvez algo a mais depois. A mensagem de boa noite de Luíza foi um nudes, ousado, seios a mostra, tirou a foto no banheiro, Arnaldo roncava na sala. Carlos também enviou fotos íntimas, do corpo, do membro, das pernas, físico perfeito.

Luiza experimentava uma mistura de sentimentos, de um lado o desejo incontrolável de sair e ter relações com Carlos, vingar todas as grosserias do marido. Do outro lado, a culpa, o sentimento de que, por pior que o esposo fosse, aquilo era traição, errado, 'um pecado gravíssimo', lembrava-se das mensagens do pastor nos cultos de domingo. Todavia, mesmo com o conflito crescendo cada vez mais, estava disposta a tudo, o desejo de ter Carlos em seu corpo era muito maior que o sentimento de culpa, ela iria até o fim com o combinado custasse o que custar.

Luíza se entregou aos seus desejos, deixou-se dominar, era sua carne subjugando o espírito. Ignorando todas as advertências, seguiu em frente.

Veio o segundo encontro.

Fim de semana, o mesmo batom vermelho provocante.

Almoço, passeio, cinema. No carro de Carlos ela se entregou definitivamente, beijada vorazmente, pescoço, seios, tocada, Chupada. Carlos lhe deu brincos de presente, ela que nunca havia usado antes, aceitou, passaria a usar. Luíza mudou o estilo das roupas, saiu da igreja. Usava peças sensuais, curtas, pernas à mostra.

Veio o segundo encontro.

Fim de semana, o mesmo batom vermelho provocante.

Colares, brincos, jóias, Luíza já não era a mesma mulher, ela que era modesta e humilde, agora, mulher transformada, experimentava os prazeres que a Luxúria lhe dava, presentes de Carlos.

Os fins de semana eram sempre de convites para festas, bebidas, noitadas, motel, sexo, a marca do batom vermelho no corpo de Carlos. O ex-esposo afundava-se em uma depressão profunda, aguentou o quanto pode, separado recente de Luiza, passou a morar sozinho, em um condomínio de um bairro afastado, vez e outra encontrava Luíza no centro da cidade. Ele passou a tomar remédios fortíssimos, antidepressivos, ameaçava se matar, mas nunca fazia nada. Nas vezes em que Luíza o encontrava, provocava-o dizendo que ele era covarde demais até para tirar a própria vida, que nem a morte desejava um traste de homem como aquele. Arnaldo isolou-se, parou de tomar os remédios, não se alimentava direito, simplesmente trancou-se em seu quarto e não abriu a porta para mais para ninguém. Até que semanas depois, a polícia foi acionada, veio em sua casa, chamou uma, duas, três vezes, ele não respondia, foi preciso arrombar a porta da sala. O cheiro que vinha do quarto era insuportável. Quando os policiais arrombaram a porta do quarto, qual não foi a surpresa, lá estava o corpo de Arnaldo pendurado, a corda no pescoço, fortemente amarrada a viga de madeira do telhado da casa, os pés a poucos centímetros da cama. O corpo estava em avançado estado de decomposição.

Luíza foi comunicada da morte de Arnaldo, ela nem sequer compareceu ao enterro.

Estava ocupada demais em seus planos de ir para praia.

A tão prometida viagem com Carlos aconteceu dias depois do suicídio de Arnaldo.

Bebidas, sexo, praia, rolou de tudo.

Depois de um fim semana intenso, retornou para casa. Estrada sinuosa, madrugada de segunda-feira, Carlos dormiu ao volante, em uma das curvas bateu de frente com outro veículo. Não sobrou nada dos dois carros. Foi morte instantânea, ficaram presos nas ferragens, ele, ela, no outro veículo havia apenas o motorista e o mesmo fim trágico. Quem chegava ao local do acidente não conseguia olhar a terrível cena, corpos dilacerados em meio às ferragens.

A única coisa inteira que encontraram no cenário de horror, foi o batom vermelho que Luíza sempre usava quando saia com Carlos.

Era o fim de tudo o que ela sonhou, e de todos que a amou.

Sobrou apenas o batom vermelho.

Tiago Macedo Pena
Enviado por Tiago Macedo Pena em 04/09/2019
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