COLODINOS - CAPÍTULO 08

Assim que o João Gordo acabou de contar a estória do forasteiro JJ lembrou se de contar a de um homem que na época gostava de caçar nas matas da região. Essa do JJ, o acontecido foi num mês de agosto, tempo quente, muito mormaço, havia muitos focos de queimadas; vezes que por acidente, tipo faísca vindo de longe e cair no meio de um canavial de palhas ressecadas, era mesmo que pólvora, o fogo pegava e com pouco tempo labaredas crepitavam pelos ares indo nas alturas, eram velozes, lambendo tudo e ardendo o que visse na frente; pra trás, ficava o cenário desolador de canas esturricadas e enegrecidas.

Acontecia do fogo daquele canavial migrar pra outros lugares, queimava matas, taquarais, pastagens, esbarravam nos brejos e chamuscavam as taboas de pendões avermelhados esvoaçando painas pelos ares de tão ressequidos. Chamas subiam rápidas pelos troncos das arvores indo lá nas alturas das copas atraídas por cipós e galhos secos, queimavam tudo, caixas de marimbondos, ninhos de passarinhos, sapecavam as folhas, as flores e alguns frutos e seguiam deixando para trás os rastros da destruição. Não atravessavam os córregos, mas lançavam uma língua de fogo do outro lado e provocavam outro incêndio, e dali pra frente os dois como se combinados e de mãos dadas seguiam valentes e avançando sobre tudo que via nas duas bandas do riacho.

No descampado adjacente o cenário era de profunda consternação, pois via se pra todo lado animais correndo desorientados, coelhos com os filhotes, gatos do mato com os filhos atravessados na boca, gambás correndo com as crias nas costas, tatus acompanhados de uma renca de tatuzinhos pequenos, cobras serpenteando ligeiro sobre a relva, não queriam nem saber de morder ninguém, queriam era se safar do perigo iminente, enfim, uma infinidade de bichos correndo agoniados pra não serem engolidos pelas labaredas do fogo. Uma onça jaguatirica parecia desnorteada correndo no meio dos outros, os outros bichos corriam, mas meio assustados com aquela fera ali no meio deles, mas ela parecia inofensiva, estava solidária naquele momento de apuros e unia se aos demais em busca de lugar seguro. Mas era uma predadora em potencial, imaginavam os outros bichos e por isso corriam meio cismados com aquilo. No meio tinha uma raposa, essa não se fez de rogada, não quis nem saber de abandonar o seu habito de esperteza, pois muito embora o momento fosse difícil ela corria saltando moitas e capim levando na boca uma galinha de angola que acabara de capturá-la cobrindo uma ninhada de ovos já espocando e os filhotes saindo dos mesmos. Os filhotes não tiveram a menor chance, foram todos torrados pelo fogo. A galinha de angola choca ainda quis levantar voo, mas a espertalhona foi muito rápida e cravara lhe os dentes nas costas, a coitada gritava, o sangue escorria e era levada pra ser devorada mais adiante quando a situação de perigo abrandasse. Uma preguiça no galho de um arbusto, sem poder correr, tinha olhar de choro, parecia derramar lágrimas clamando por socorro. Mas felizmente foi salva por Zé Altino, um dos apagadores que a pegou e não desgrudou dela mais, continuou trabalhando com ela amarrada em sua cintura e por fim a levou pra casa e a manteve como animal de estimação. Depararam também com uma tartaruga, essa infelizmente não teve a mesma sorte, estava à beira de ser salva, já quase no aceiro que os homens haviam feito, entretanto, por descuido ou apavorada por não conseguir acompanhar os outros, quis se esconder numa moita, e sob essa moita havia muitos paus secos que foram alcançados pelo fogo e aí não teve escapatória, era gorda, estava assada de um jeito que chegava derramar manteiga por baixo do casco em brasas. Mas foi levada por um sujeito sem coração, pegou ela, resfriou seu casco na água de um brejo, colocou dentro de um saco e disse cheio de felicidade que ia levá-la pra casa, temperá-la e fazê-la de tira gosto pra cachaça. Disse que não tinha coisa melhor, era um petisco muito especial. Os outros, uns acharam graça, outros consternados pela morte da pobre coitada, mostraram se repugnantes ao sujeito desalmado.

No meio da fumaça sobre o fogaréu aves revoavam aos gritos de aflição vendo seus filhotes e os ninhos se transformando em cinzas e carvão. No desespero muitas acabavam sendo engolidas pelo fogo. Urubus voavam lá nas alturas, desapareciam e reapareciam no meio das nuvens, os únicos tranquilos e fora de perigo, mas sempre atentos aos acontecimentos lá embaixo, certamente sabendo que no dia seguinte sobre as cinzas haveria muitos cadáveres pra lhes servirem de banquete.

Juntava muita gente pra apagar o fogo; faziam aceiros, quebravam feixes de galhos de aça peixes ou de vassouras, batiam com força pra impedir que se alastrasse, mas ele seguia valente acabando com tudo à sua volta e só parava quando esbarrava na beira do rio grande. A fumaça subia pelos ares e misturava se no meio das nuvens, e o sol ofuscado pela fuligem ficava completamente sem brilho. O mormaço era grande na volta do dia e só no finalzinho da tarde e que ás vezes corria um ventinho e amenizava um pouco a quentura.

Esse fato deu se numa sexta feira do dia 13 de agosto de 1963. Segundo as crenças supersticiosas, dia um tanto duvidoso, e muito desaconselhável pra sair de casa, principalmente pra dentro de uma mata virgem como a do Clarence. Pois lá, segundo os mais velhos diziam era uma mata mal assombrada, e a lenda era de que havia muitos espíritos vagantes de corpos secos pendurados em arvores no centro dela. Mas Tomaz num era muito de acreditar nessas coisas. Pra ele os dias eram todos iguais, não tinha diferença nenhuma um do outro. Tomaz era um sujeito sestroso e de pouca conversa, difícil vê-lo no meio das brincadeiras, os outros durante as rodadas no jogo de truco conversavam e davam risadas, enquanto ele embora ficasse o tempo todo ali por perto, não dava nenhum palpite e se limitava de quando em vez um acanhado arzinho de riso e mesmo assim era quando tinha beliscado umas boas doses de pinga. Fumava feito um caipora, toda hora que olhasse pra ele tava cortando fumo e preparando um cigarro de palha. Não se desapegava de uma faca peixeira doze polegadas, e o povo tinha uma cisma dizendo que se mexesse com ele, ele virava uma caninana e olha que era mesmo que um gato no manejo de uma faca. Diziam. Vivia treinando atirar a peixeira de longe numa prancha de madeira. A faca zoava no ar feito uma flecha, e batia fincada na prancha, chegava dar trabalho pra arrancá-la dali. O povo tinha essa cisma com ele, mas também tinha uma coisa; dizia, não tinha gente melhor que ele pra se lidar se não pisasse no calo dele. Ele e o Aquiles dormiam numa casinha de adobe lá no fundo da casa e debaixo da cama ele tinha sempre um garrafão de uma pinga sertaneja e todas as noites, antes da janta tomava umas cinco talagadas, essa era uma das suas maiores paixões. A roupa era sempre a mesma e banho só em dias santos e lá de vez em quando num dia de domingo. Mas ele tinha outra grande paixão que era de quando em vez, num fim de tarde sair pra caçar nas matas da redondeza. Nesse dia, assim que chegou da roça dirigiu se pra casinha, foi onde suas coisas remexeu sua capanga pra conferir se havia munição suficiente, pólvoras, chumbos, grosso e fino, escorvas, e as buchas pra fazer na hora que precisasse o carregamento da espingarda.

Planejava há dias dar uma caçada na mata do Clarence. Pegou sua espingarda de dois canos que tava pendurada num prego fincado na parede da casinha esfregou de leve um pedaço de flanela nos canos e na coronha pra remover alguma sujeira untou cães e ouvidos da arma com gotículas de óleo Singer, e a seguir carregou a com munição fina. Pois o carrego com chumbo fino era o ideal pra no caso de encontrar alguma coisa pelo caminho. Por exemplo, se atirasse com chumbo - grosso numa juriti ela se despedaçava e não dava de aproveitar. Então não era vantagem. Munição grossa era lá pra mata do Clarence, porque lá sim, iam encontrar coisa graúda. Saiu acompanhado por Aquiles, irmão caçula que nesse tempo devia ter de dez pra doze anos de idade e gostava de acompanhá-lo pra toda banda, principalmente pras caçadas.

Nortinho era outro companheiro que não podia faltar nas caçadas. Chamavam, assobiavam e pelejavam ate ele aparecer. Nortinho era um cachorrinho de cor negra, e bem peludo, e no entorno do pescoço ele tinha uma lista branca que não tinha quem não apostasse ser uma coleira de verdade. No começo eram dois irmãos, ele e o xavante, e desde pequenos foram ensinados nas caçadas. Xavante tinha o mesmo porte, mas de pelagem lisa cor amarelo claro, as orelhas caídas sobre os olhos, e na esperteza dentro das matas se igualavam, não tinha diferença nenhuma um do outro. Mas Xavante não teve a mesma sina, não durou muito, morreu numa emboscada, pois gostava também de acompanhar o pessoal de casa pras vendas e numa certa vez, quando foram chegando numa venda que ficava ás margens da rodovia, e lá tinha um cachorro enorme, dava uns dez do xavante e esse na hora que viu foi pra cima do xavante feito uma bala. Xavante foi rápido, conseguiu escapulir e atravessou uma cerca de tabua por um buraco, o outro veio atrás, só que quando foi passar pelo buraco devido o tamanho se enganchou, e o xavante ao invés de aproveitar pra ir embora, o outro enganchado, fez foi voltar pra mordê-lo, e mordeu muito, nisso o grandalhão que parecia um monstro, muita força, deu um arranco e conseguiu sair e ai não teve escapatória, voou no pescoço do xavante, jogou no chão e chocalhou pra um lado e outro e o sufocou até a morte.

Em casa, quando souberam da noticia foi um lamento muito grande. Tomaz prometeu fazer vingança, disse que ia carregar a espingarda com uma bala feita de rolimã e meter na cabeça do infame que fez aquela judiação com o pobre do Xavante. Todavia, foi persuadido a desistir da ideia, pois Xavante era quem estava no território alheio, ademais o cachorro era de raça e custara uma nota preta ao Mané Cardoso e isso só ia trazer inimizades. E mesmo porque toda desavença não ia trazer o Xavante de volta. E com isso a questão foi deixada de lado. Entretanto, foram uns dias de muita tristeza. Nortinho ficou abatido, sentindo muito a falta do companheiro, não comia, o povo pensava que não fosse escapar, mas acabou voltando ao normal e nesse dia da caçada, na hora que o chamavam tava dormindo sossegado na sombra do pé de limão galego lá no fundo do terreiro da cozinha. Assim que ouviu os chamados veio feito uma flecha, os olhos brilhavam de satisfação, e saiu na frente correndo e pulando de alegria, pois entendeu logo que iam pra caçada.

Era mestre pra levantar caça, saíram radiantes, e assim que atravessaram o colchete que dava para o carreador dos canaviais, nortinho sempre à frente correndo e farejando tudo, entrando no meio do mato, das moitas, seguindo as trilhas, sempre a procura de alguma caça. Choramingava de satisfação, pois amava quando saiam pra caçar.

De repente levantou se do meio das leiras de cana uma codorna e um inhambu chitão. Tomaz não perdeu tempo, pipocou fogo nos dois ao mesmo tempo. Era rápido no gatilho. Aquiles correu alegre saltando moitas pra juntar as caças, e assim que pegou a codorna e foi pra pegar o inhambu, na verdade era uma fêmea, pronto, ficou todo desconcertado, a caçada perdeu a graça pra ele naquela hora, o coração doeu de remorso, os olhos marejaram lágrimas de tristeza; pensou mesmo em se recusar a pegá-la, pois sentiu como se fosse em si próprio o grande sofrimento que ela passava, pois uns três caroços de chumbo haviam cortado o pescoço da coitada e ela se debatia toda ensanguentada, e já esticava as pernas dando sinais que estava acabando de morrer. Esforçava se pra segurar no bico uma formiga morta, certamente a levava para alimentar os filhotes que estavam dentro do ninho a umas duas braças e gritavam de bicos abertos esperando por comida.

Os recém – nascidos gritavam de fome, porem assustados, pois pareciam pressentir a desgraça que acabava de acontecer.

Tomaz recarregou os dois canos da espingarda e chamou Aquiles – vamos logo porque senão quando nós chegarmos lá num vai dar tempo pra fazer nada e olha que daqui até lá na mata do Clarence tem muito chão. Aquiles não disse nada para o irmão, mas a caçada pra ele não tinha mais graça nenhuma e o pior e que tava pressentindo que alguma coisa ruim ia acontecer naquele dia. A ideia mais recorrente era o fato de ser sexta feira e ainda mais, num dia 13.

Calculava se mais ou menos légua e meia de distancia. Era uma mata virgem e entre as outras da redondeza ela tinha a fama de ser a que tinha onças, lobos, cobras venenosas e tantas outras feras. O povo gostava de dizer que seu Rosalvo quando era vivo dizia que tinha muitos espíritos vagantes dos corpos secos pendurados lá no alto das árvores daquela mata. Seu Rosalvo era um velho contador de causos. Mas de qualquer jeito os caçadores gostavam mesmo era dela por conta dos jacus, pois era a única onde havia abundancia dessa espécie de ave silvestre predileta dos caçadores.

Na hora que saíram era grande o animo dos dois, contavam vantagens, dizendo que iam trazer num sei quantos jacus, tantas juritis e mais num sei quantos nambus, e olha lá se de quebra não matassem uma onça pintada. E lá se foram. Depois que mataram a codorna e a mãe nambu deram ainda alguns tiros pelo caminho, mas apenas pra distrair e treinar a pontaria, pois, procuravam abreviar os passos porque estavam mesmo com vontade era de caçar lá na mata do Clarence.

Chegaram lá por volta de cinco da tarde, sol alto ainda, mas quando entraram na mata ficou tudo meio escuro, o tempo esfriou, pois essa era uma floresta virgem, densamente fechada, de árvores imensas e de copas frondosas, de modo que à medida que ia entardecendo a luminosidade se enfraquecia por conta do sol indo se, e também barrada pelas densas camadas de ramagens de um verde escuro entrelaçadas por galhos e cipós lá no alto das copas das árvores.

Logo de chegada foram dados vários tiros nuns macacos, pois havia muitos deles por todos os lados pulando de árvore em árvore ou de um galho para o outro. Tinha hora que enroscavam o rabo num galho e balançavam de um lado para o outro. Tomaz mirava bem e atirava na certeza que tinha acertado, porque eles caiam de um jeito que pareciam mortos, contudo, tratava se de um truque, pois quando ia procurá-los no meio das moitas, já estavam noutras árvores bem longe dali. Ficavam olhando assustados, mas certos de que estavam fora de perigo, pois emitiam grunhidos e faziam gestos provocantes como se chamassem para continuarem com a brincadeira. Eram sabidos e muito engraçados os macacos.

Passaram tempos entretidos correndo atrás desses bugios e nem cuidaram de ir atrás de caçar os jacus, e quando foram dar fé do tempo fazia horas que já tinha escurecido.

Caminharam mais um pouco, porem desanimados porque tava tudo escuro e não tinha como enxergar mais nada. Pararam um pouco pra tomar rumo das coisas, e foi nesse exato momento que uma coisa estranha começou acontecer. Um barulho vindo lá de cima das arvores ali perto. Aquiles estava sobressaltado e se sentindo muito de contragosto por causa das cenas trágicas de horas antes sobre a mãe inhambu e os filhotes, então pegou no braço do irmão e perguntou se ele tava ouvindo aquele barulho esquisito. Tomaz respondeu baixinho afirmando que sim, e pediu que fizesse silencio pra ouvirem direito. Veio de novo, e começava com um gemido e aos poucos aumentava e misturava numa fala embolada e tudo numa tristeza profunda. Alguém lá no topo de uma das árvores ali perto deles falava numa voz pastosa que não dava pra compreender, mas lastimava com tristeza e dava pra perceber que tava clamando por socorro. Aquele lamento triste parava um pouco, mas logo recomeçava. Deu mais uma parada, e veio de novo, e dessa vez falava e chorava muito. Aquilo arrepiou o cabelo dos dois lá em baixo. Na hora, arrependeram da viagem, mas não adiantava, era tarde. Estavam em apuros, mas tinham que achar um meio de sair dali. Aquiles ficou imaginando sobre o pressentimento ruim que teve quando viu a inhambu acabando de morrer. Sabia que alguma coisa ia dar errado naquele dia. Na hora seu anjo de guarda pediu pra ele chamar Tomaz, contar o acontecido e voltarem pra casa, mas não fez e agora tava morto de arrependido. Pois agora tudo que o seu pressentimento alertava começou de fato acontecer. Ficaram ali parados mais um instante, aguçaram os ouvidos, daí perceberam que era uma pessoa chorando muito e se mal dizendo. Alguém estava lá em cima daquela árvore enorme bem ali encostada deles e chorava muito, o choro era triste e profundamente melancólico. Quando o bicho gritava eles estremeciam de medo. Olhavam ao redor e não viam nada, apenas barulho nas folhas secas de bichos correndo dentro da mata e gritos pra todo lado de aves noturnas.

E na hora que começou essa lamúria, do nada começou a ventar, era um vento forte que zunia e balançava fortemente os galhos lá no alto da árvore onde a coisa estava. Ficaram assombrados, pararam, prenderam a respiração e ficaram quietinhos, apuraram bem os ouvidos de novo pra ver o que era aquilo. A coisa continuou choramingando, e cada vez mais forte, tinha hora que gritava em palavras entrecortadas e empastadas naquele lamento horrível. Não dava de compreender nada que dizia. Era uma coisa embolada, mas um choro de muita tristeza. A impressão era de que havia lá no alto daquela árvore uma pessoa muito atormentada da vida implorando por socorro, ou então uma alma penando ali muitos pecados cometidos aqui terra.

De quando em vez o troço se afastava do tronco onde se presumia estivesse pendurado e batia com raiva e com força contra o mesmo, e ao bater fazia um grunhido assustador que chegava arrepiar os cabelos do corpo dos dois lá embaixo. E o cachorro gritava como se tivesse sendo espancado. E a coisa estranha chorava sem parar e lamentava melancolicamente como pedisse que a tirasse daquele sofrimento. Os meninos viram que tratava se de choro de um homem, o que os deixou mais assombrados, pois já tinham ouvido causos de haver almas penadas ali naquela floresta, principalmente o tal de corpo seco, e corpo seco era espírito vagante de gente perversa quando passou pela terra, e pensando assim, não deveria ser boa bisca também como alma penada – imaginavam.

O cachorro começou a uivar sem parar sentindo cada vez mais forte a presença daquela coisa do alem e aí juntava o clamor misterioso vindo do alto da árvore com os cantos lúgubres de pássaros noturnos, zunido de vento e aqueles uivados tristes do nortinho, de modo que a situação tornou se sombria e um tanto insuportável. Lembraram se das estórias do falecido Rosalvo, ai o mundo veio sobre suas cabeças, ficaram desesperados; aproximaram se devagarzinho um do outro e cochicharam nos ouvidos sobre aquela coisa esquisita naquela árvore e também querendo é lógico, achar uma maneira de escapulir dali. Veio o pior, pois lá de cima a alma penada tava vendo tudo e na hora que ela percebeu que eles queriam fugir ela veio de árvore abaixo, descia depressa e fazia uma zoada arrastando se, esbravejando xingamentos, tava com raiva. O vento frio que havia começado de repente foi aumentando, zunia que uivava, e apesar da escuridão dava pra perceber que folhas secas voavam pelos ares, era um redemoinho. Nessa hora não aguentaram, Tomaz movido pelo instinto de sobrevivência subitamente deu um grito; vamos Aquiles, corre pelo amor de Deus, corre senão vamos morrer, e desabaram na carreira. Partiram avexados, sem norte, logo perderam o rumo, mesmo desorientados corriam sem saber pra onde estava indo, pois queriam ficar longe dali o mais depressa possível.

Atrás deles a alma penada gritava e chorava sem parar, e já vinha perto, pois parecia conhecer bem a mata e não se embaraçava em nada. Ia alcança-los dentro de pouco tempo. Ficaram mais apavorados ainda. Houve uma hora que os gritos foram ficando bem pertinho, e embora a voz empastada, deu de eles ouvirem que pedia pra esperar e lhe ajudar a sair de grande sofrimento. Ah! Aí foi que desembestaram na carreira, entretanto, a sorte naquele dia parecia não querer favorecer em nada, Aquiles pensava o tempo todo na agonia da mãe inhambu, na aflição dos filhotes e principalmente no dia – sexta feira 13 de agosto - e não demorou veio o pior. Estavam completamente perdidos dentro da mata. Não tinham a menor noção pra onde estava indo. As pernas estavam moídas de cansaço de tanto peitar em obstáculos dentro da mata. Estavam prestes a entregar os pontos.

Mas se esforçavam pra correr, subitamente depararam num paredão dentro da floresta, notaram que era uma rocha enorme e alta e sob ela uma caverna e quando menos esperaram já haviam adentrado na mesma. Pensaram em esconder ali dentro, mas assim que foram entrando levaram um susto que quase caíram de costas, primeiro um sopro forte de uma víbora, provavelmente uma jiboia embolada em algum canto da caverna. A escuridão era grande, continuaram tateando aqui e ali, a alma penada passou rente a porta da caverna, gritava e chorava, seguiu, mas com pouco retornou, percebeu que eles não tinham seguido, voltou e passou ali em frente de novo, quis dar uma parada, mas deu um esturro esquisito e desapareceu, estava desorientada, mas o clamor continuava. Dentro da caverna era silencio absoluto, tudo quieto, de súbito um barulho iniciou se lá no fundo da mesma, uma coisa remexia incomodada, e logo um grito horrível estremeceu tudo em volta. Aquiles deu um grito medonho, pensou que a rocha estivesse desmoronando sobre eles. Mas era um corujão de orelha que dormia lá dentro que se espantou com a chegada dos dois, deu aquele grito feio e bateu asas, passou rente a suas cabeças e mergulhou na escuridão da mata. A caverna abrigava centenas de morcegos e a arrancada do corujão despertou milhares deles que começaram a revoar furiosos e incomodados com os estranhos, batiam fortemente as asas e emitiam grunhidos aterrorizantes querendo expulsar os intrusos dali de qualquer jeito.

Viram que ali era inóspito e viraram pra trás na mesma hora e agora tinha que correr pra não serem alcançados e nisso o pobre do Aquiles se embaraçou nuns cipós e foi ao chão. Gritou apavorado pelo companheiro, mas Tomaz ia rebentando tudo no peito e já tava longe, parece que o medo o fez perder um pouco o sentimento da irmandade. Mas tiveram muita sorte foi em levar de companhia o cachorro que era acostumado nas matas, se não fosse isso teria sido muito pior, pois o cachorrinho farejava o caminho e ajudou encontrar o itinerário. Pois quando desembestavam em direção errada, ele latia, choramingava, corria onde eles e cheirava, abanava o rabo e depois cheirava o chão, voltava correndo e latindo para um determinado rumo, enfim, fazia de tudo para trazê-los de volta para o caminho de casa.

Já longe do lugar foi que lembraram que dentro do embornal junto com a munição havia uma lanterna de pilha, acenderam na mesma hora, e foi a salvação, pois as pilhas eram novas, o facho de luz forte, logo perceberam que o cachorro tinha sido a salvação, pois estavam realmente no caminho certo.

Aí começaram a conversar e conjeturar toda aquela situação desesperadora e foram lembrar as estórias do velho Rosalvo de que ali em algumas árvores daquela mata, principalmente nas mais altas, havia mesmo o tal de corpo seco. E ele explicava que corpo seco era o corpo de gente muito ruim, geralmente aqueles fazendeiros malvados que judiava muito dos colonos em suas fazendas, amarravam, açoitavam, matavam, botavam enormes cachorros valentes que pulavam nos pescoços dos coitados e os sufocavam até a morte. Aí, quando essas gentes morriam e eram enterradas, a terra não os aceitava. A estória é de que a terra não os aceitava por causa de suas atrocidades aqui na terra contra desvalidos que trabalharam pra eles debaixo de sol e chuva, recebendo quase nada em troca, e ainda humilhados aos gritos de capataz e jagunços, e quando não era isso, era pior ainda, eram amarrados e apanhavam de chicote até dar no sangue e os algozes só se davam por satisfeitos quando via o sangue brotar para prepararem canecada de sal mora e despejar em cima dos ferimentos para o sujeito gritar de agonia até desmaiar de dor.

Pra não ficar atormentando os viventes aqui na terra, explicava o velho, esses corpos eram arrancados de suas covas e pendurados em árvores nas matas virgens, e no caso de aparecer alguém por lá, como foi esse caso, eles fazem mesmo todo esse alvoroço como querendo socorro para sair do purgatório que eles mesmos prepararam quando estavam aqui na terra.

Domingos Andrade
Enviado por Domingos Andrade em 28/08/2019
Código do texto: T6731766
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