COLODINOS - CAPÍTULO 06

Por volta das nove da noite, assim que Zé acabou de contar a estória do nego d’água, bem na hora da merenda, João Gordo entrou em cena e começou a contar uma sobre um sujeito que numa época surgiu nas matas dos colodinos. E esse homem era o diacho, seus modos eram tão esquisitos que de uma hora pra outra o povo ficou desassossegado; o tempo todo de pé atrás e muito cismado com aquele sujeito, e tinha razão, porque a vida toda morando ali naquele lugar e nunca tinha acontecido de gente chegar, não falar com ninguém, ficar escondido lá pra dentro das matas e espreitando tudo lá de longe. Ninguém via ele era difícil porque vivia escondido lá pra dentro das matas, mas de certo é que ele via o movimento das pessoas porque não tava ali a toa, e segundo o boato que corria tava perscrutando tudo com calma pra na hora certa dar o bote e consumar a desgraça que tava pretendendo fazer ali. Só podia ta armando alguma coisa de ruim, principalmente porque as poucas pessoas que o avistaram contavam que ele tinha sobre as costas uma enorme capanga de couro, e no ombro uma arma muito parecida com carabina. De um lado da cintura um negócio que parecia uma cabaça e do outro um punhal, e isso sem falar no cinturão bem largo de couro, e mais o porta munição igualmente de couro que descia do ombro em diagonal ao peito, e ambos pelo que dava pra ver estavam lotados de cartuchos pra remuniciar a arma de fogo. Pois aquelas partes metálicas dos cartuchos chegavam reluzir quando dava certo do sol bater nelas. Esses detalhes menores era apenas suposição, uma vez que só o avistaram de longe e ele quase sempre andando ligeiro no meio das matas. Portanto não dava pra afirmar de certeza, eram suposições de uns metidos a sabidos meio tontos nas vendas e conversando borracha querendo se engrandecer ali na conversa. Mas podia ser também, quem sabe?! Quando alguém se encontrava pelos caminhos das roças, ou pelos carreadores dos canaviais, na maioria das vezes montados a cavalos ou numa bicicleta de pneu balão, paravam pra conversar, acontecia de juntar mais de cinco, uns debruçavam sobre as cabeças dos arreios, outros escanchavam as pernas no chão e descansavam o corpo sobre os guidões das bicicletas, e ali passavam horas conversando, entretanto, quando alguém triscava no assunto sobre esse estranho, e isso era comum, muito embora não falassem ali na hora, mas dava pra perceber nos semblantes que estavam preocupados e encabulados com a estória do desconhecido que surgiu de repente ali nas matas ao redor de suas moradias. Proseavam, mas as vistas sempre atentas para um lado e outro dos caminhos com medo do homem aparecer de repente e fazer uma desgraça com eles. Portanto, quando um olhava para um lado suspeitando alguma coisa, os outros cortavam o que estavam falando e olhavam ligeiro pro mesmo rumo, e nisso dava pra ver que o povo ali tava mesmo atemorizado com a misteriosa aparição daquele jagunço ali nas matas dos colodinos. Queriam chegar a um entendimento sobre aquele homem rondando a região, será porque, atrás de quem e a mando de quem? Meu Deus do céu! Em suas ideias muitas perguntas, porem nenhuma resposta plausível. Essas eram as razões das conversas se alastrarem entre o povo das colônias. As mães que os filhos pequenos saiam pra escola ou pra levar o almoço dos pais nos serviços, ficavam em casa de corações nas mãos e pedindo à Deus pra que nada de ruim acontecesse, e só sossegavam quando os meninos entravam pra dentro de casa. Os rapazes que saiam a boca da noite pra visitar as namoradinhas em outras colônias, sim, esses é que davam dor de cabeça para os pais, principalmente pra mãe, ela brigava, pelejava de todo jeito pra não sair, mas não havia meios, quando dava fé já tinham tomado banho, trocado de roupa, se perfumado com Lancaster e Cashimir boque, brilhantina nos cabelos, se penteado, pegado a lanterna de pilha e o guarda – chuva, metido na cintura uma peixeira doze polegadas, e no ombro uma espingarda carregada até a tampa. Pulava em cima da bicicleta ou de um animal, chamava um dos cachorros pra ir de companhia, e quando a mãe morta de preocupada espiava já ia lá longe, nem olhava pra trás. Eram uns três ou quatro e saiam cada um para um lado. O desejo de abraçar e beijar a namorada era tão forte que vencia o medo de esbarrar no forasteiro pelas estradas. A coitada da mãe ficava sentada no rabo do fogão cochilando e rezando até tarde da noite ansiosa pelo retorno dos filhos. Só lá pelas onze horas meia noite e que começavam chegar, e sabiam que a mãe estava esperando de coração dolorido e pensamentos chafurdados imaginando tantas coisas ruins, e por isso eles iam chegando e gritando lá de longe, mãe; cheguei, abra a porta pra mim. A mãe corria com coração cheio de alegria, despertava do sono na mesma hora, abria a porta, ia ainda com muito gosto procurar ajeitar alguma coisinha para filho comer, pois sabia que estava com fome a uma hora daquelas. Comia, tomava um golo d’água e ia pra cama, e só depois que o ultimo chegava e ela o agasalhava é que ia dormir sossegada. Durante as conversas de fins de tarde nas vendas, entre uma talagada e outra de cachaça, uns mais afoitos por conta dos efeitos da danada rasgava o verbo em alto e bom som dizendo que o jagunço tinha vindo do norte de Minas a mando de alguém pra acertar contas com um administrador de fazendas que chegou ali fazia muitos anos e os mais antigos sempre contava que esse homem chegou ali de uma maneira muito suspeita; às carreiras, e nunca mais falou em voltar pras suas terras de origem. Ele era pessoa de boa palestra, brincalhão às vezes, todavia nunca quis revelar de onde veio e jamais comentava sobre sua vida onde passou talvez uns trinta anos ou mais, e ninguém ousava perguntar, pois ficaram sabendo que uma pessoa muita amiga dele numa certa ocasião, em conversa com ele quis saber de sua vida lá por onde vivia antes de vir pra li. Pronto, não prestou, pois o homem se irritou de um jeito que transformou noutra pessoa e daí pra frente cortou as regalias dessa pessoa e ficou quase intrigado. Então ninguém tinha coragem de triscar no assunto com ele sobre isso. E povo, é claro, embora não falasse, mas achava isso muito estranho, pois parecia realmente estar querendo esconder alguma coisa. E isso deixava mesmo uma brecha para pensar que ele tivesse feito algo de muito errado com alguém lá onde morava talvez algum crime, tivesse matado uma pessoa, quem sabe uma pessoa de condições remediadas e agora a família do morto descobriu ele por essas bandas e mandou esse jagunço pra vingar a morte do parente. Não podia ser outra coisa. E o jeito dele realmente demonstrava cabimento pra fazer esse tipo de coisas; casa cheia de armas de fogo, revólveres, espingardas, garruchas, trabucos, mosquetão, felobes, enfim, e gostava também de cachorros valentes. E o povo dizia que ele era exímio atirador. Havia um mistério sim, porem sobre o qual as pessoas nessas conversas de fins de tardes pelos caminhos passavam tempo batendo as ideias, e quanto mais elas batiam, mais chafurdadas ficavam, não conseguiam entender nada, e vendo que o sol baixava e começava a turvar procuravam se despedirem, e iam pra casa imaginando o perigo que muita gente ali tava correndo. E sabe se lá quando e como isso ia terminar. De noite quase ninguém saía de casa, com exceção dos jovens doidos pra ir atrás das meninas, mas o resto do povo se aquietava, mesmo de dia procuravam andar de dois ou três em companhia temendo esbarrar no homem. Na verdade era até comum gente das cidades vizinhas como Glória, Ponte Alta, Delfinópolis e outros lugares aparecer de repente ali, e quando ia ver já tinha feito rancho coberto de sapé, limpado o barranco na beira do rio, fincado toco bem firme pra amarrar canoas e até feito ceva colocando em diversos pontos dela espigas de milho e raízes de mandioca pra cevar os peixes no lugar. Mas eles pescavam também de tarrafa, com espinhel, lambadas, mas o principal era o de estender rio à dentro um estirão de redes de malhas maiores pra pescar peixes mais graúdos. Ali na ceva era mais pra pescar com vara de anzol e sentir o prazer das puxadas, a vara envergando feito um botoque, a linha tinindo, fazendo uma zoada por causa da força do peixe fisgado e se batendo que chegava afundar a ponta da vara dentro do rio. Porque no fundo o bicho tinha muita força, mas era fisgado e dominado, vinha se debatendo de todo jeito, mas jogado pra fora, e quando caia no seco ficava pulando no meio da areia quente, de onde era pego, tratado, e à noite caia na panela e logo servido num suculento jantar regado com a deliciosa pinga piracajuba produzida nos alambiques da região. Enfim, estavam muito bem instalados ali nas beiras do rio grande num ponto que o rio fazia uma curva e ficava bastante espraiado, e por causa do rebanho da usina açucareira Passos na repartição administrativa fazenda taquaruçú, todos os dias à tarde descer devagar, pastando aqui e ali, vindo dos pastos gordura e colodinos pra beber ali naquele remanso do rio, o lugar ficou batizado como bebedouro. E ali nas imediações do bebedouro havia abundancia de peixes como o dourado, campineiro, piracanjuba, o peixe relógio e uma infinidade de outras espécies prediletas dos pescadores, e por essa razão eles gostavam de vir pra li, se arrancharem e passar toda a temporada de pesca. A mata iniciava nas encostas do rio e subia ao lado dos trilhos do gado em meio as pastagens de capim Jaraguá e indo ao alto da serra do pasto dos colodinos, e na mata havia muitos bichos, dentre eles havia cachorro do mato, mão pelada, lobos, porco do mato e até onças, e por isso não raro acontecia também de aparecer gente paramentada com espingardas cartucheiras, trazendo consigo matilhas de cães da raça americana treinados pra caçadas e passavam dia inteiro revirando a mata ali na região. Agora uma coisa era certa, essas pessoas eram completamente diferentes, passavam, cumprimentavam, quando nada davam um bom dia ou boa tarde, acenavam com a mão quando iam passando mais longe, muitas vezes aproximavam pra conversar e fazer amizade, principalmente no caso dos pescadores. Tinha o seu Antonio Novato, era do Glória esse, muito cortes esse senhor, quando alguém da colônia vindo da roça ou caçando passarinho por ali, indo pela estradinha beira rio e passando perto do rancho, eles chamavam na mesma hora, as vezes estavam dentro das canoas no meio do rio mexendo com as traias de pesca e gritavam de lá, - vamos chegar um pouco amigo, tomar uma pinguinha e comer um peixe - pois queriam prosear um pouco, ofereciam alguma coisa pra comer ou beber, queriam agradar, muito solícitos, sempre alegres e numa demonstração de gente do bem.

Agora esse troço das matas não, era muito esquisito, sempre embrenhado nas florestas, não se aproximava de ninguém, era difícil aparecer em terreno limpo, mas aparecia, foi visto poucas vezes e as pessoas que chegou a vê-lo dizia que os modos do estranho eram de fazer medo, logo era um monstro de pessoa, parecia um gigante, quando estava em lugar descoberto andava ligeiro, tinha as pernas compridas e seus passos eram longos e por essa razão desaparecia vertiginosamente como se fosse uma visagem embrenhando se dentro das matas fechadas. Tinhoso o sujeito, e realmente de dar pavor em qualquer um. E pra completar a ideia que era gente ruim, o satanás do homem trazia nas costas essa capanga enorme, parecia feita de couro cru, sabe se lá o que tinha dentro, e no ombro uma arma que todos que viram afirmaram ser deveras uma carabina. Quando ele estava em lugar limpo e que podia ser visto por alguém, aí é que as passadas eram rápidas e por precaução ele segurava a arma com as duas mãos na altura do peito, olhando de quando em vez pra trás e pros lados, muito atento e certamente pronto pra fazer fogo se alguém ousasse qualquer movimento no rumo dele.

O povo da roça acostumado a se reunir á noite dentro de casa ao redor de uma lata velha cheia de brasas pra rebater a friagem e ficar conversando, contando causos; os pais contando suas estórias de vidas quando eram pequenos, coisas de gente da roça, enfim, e na esperança do sono chegar pra ir pra cama. Todavia, nessas conversas, ficavam assombrados quando alguém tocava no assunto sobre esse homem. Os meninos ficavam de cabelos espetados e olhinhos estatelados de tão assombrados, e procuravam na mesma hora um lugarzinho se aconchegando perto dos mais velhos ou dos pais. Qualquer barulho que fizesse lá fora e os cachorros latissem já ficavam de alerta, fechavam o bico na mesma horinha e o pressentimento de coisa ruim fazia o coração desandar que faltava sair pela goela. Ajuntavam se num canto da casa, quietinhos e de olhos vidrados nas tramelas das portas e das janelas atentos pra quaisquer movimentos vindos lá de fora. Imaginavam ser o estranho rondando ao redor da casa de carabina em punho e pronto pra atirar em todo mundo ali dentro de casa. Uns criavam coragem, com o dedo em riste pedindo silencio, se atreviam ir pé antes pé até as janelas espiar pelas gretas se viam alguma coisa lá fora. Passava tempo espiando, os outros aguardavam ansiosos e depois de tanta demora voltavam sem trazer qualquer alento, o dedo do mesmo jeito e soprando um psiu bem baixinho querendo silencio absoluto. O olhar era de preocupação e temor, cochichava nos ouvidos dizendo que embora a noite tivesse clara não havia dado pra ver direito por causa das sombras das laranjeiras, mas lá em baixo atrás das moitas de erva cidreira, perto da bica, havia um vulto esquisito que se movimentava de um lugar pra outro e podia sim ser o sujeito da espingarda. Os cachorros acuavam no começo, mas logo sossegavam e caminhavam tranquilos brincando no meio do terreiro, não faziam nenhum alarde, isso não traduzia porem em nenhum sinal de paz, a tensão continuava, pois segundo o povo dizia o estranho era pautado com o demônio, trazia em sua capanga um livro de capa preta que tinha umas rezas brabas que acalmava os bichos de casa e aí andava no meio deles como se nada tivesse acontecendo.

Nos poleiros os galos danavam a cantar fora de hora e o povo dizia que aquilo era um mau agouro anunciando que coisa ruim podia acontecer ali a qualquer momento. Até uma coruja que ninguém tinha visto fazer isso veio e se assentou num pau bem alto rente a porta da sala onde era instalada a antena do rádio e piou triste por diversas vezes, e o povo incutido com essas coisas pensou na mesma hora que ela anunciava eminência de desgraça. Ainda quiseram dar um tiro nela pra espantar dali, mas voltaram atrás na mesma hora porque na certa ia atiçar o homem e a coisa que já tava feia só ia piorar. Naqueles dias, se alguém tivesse dor de barriga e se apertasse com precisão de ir lá fora, mesmo em noites claras e de aparente tranquilidade, só ia ali por perto da porta, e mesmo assim se uns dois ou três fossem juntos. De volta entravam correndo, gritando e empurrando uns aos outros e batendo a porta com força, dizendo terem visto um vulto parecido com gente vindo lá no alto da entrada do caminho, perto do colchete que dava acesso pra casa, e tinham certeza que era o homem da carabina. Um deles conjeturou a situação de perigo que todos estavam correndo ali naquela noite, pois foi ele quem viu o vulto primeiro e avisou aos outros e disse que não tinha como não ser uma pessoa maligna e cheia de má intenção, porque na hora deu pra ver que havia um cigarro aceso e pelo jeito foi apagado no mesmo instante, o que dava pra entender que o homem na hora que deu fé que havia gente pelo lado de fora da casa apagou o cigarro ligeiro pra poder chegar de surpresa, e, quem sabe, chegar de assalto e pegar todo mundo desprevenido e atacar a casa.

E outra coisa, continuou Gerônimo, o que percebeu o vulto lá no alto, se fosse gente de bem tinha gritado um oh de casa, batido na porta, e de qualquer maneira já tinha dado algum sinal, e esse não, tava lá para o rumo da bica, os cachorros que nunca fizeram isso agora acuaram e na mesma hora quietaram se. Essa arrumação não tava certa de jeito nenhum, tinha alguma coisa de errado, com certeza que tinha. Ainda mais que o povo falava que com mais tempo ou menos tempo ele ia atacar as casas pra roubar mantimento e outros meios pra sobrevivência dentro das matas. Ficava todo mundo um tempão de espíritos sobressaltados e morrendo de medo de acontecer alguma coisa ruim ali naquela noite. As crianças não iam pra cama, dormiam no colo ou encostados ali juntos dos pais. O pai tinha a tarefa de jogá-los um a um nas costas e levá-los pra cama. Os maiores iam, mas meio ressabiados, passavam horas acordados pensando sobre o sujeito e assuntando pra ver se davam fé de alguma coisa lá fora.

Esse sujeito era um homenzarrão de quase dois metros de altura, ninguém chegou a abordá-lo e confabular se com ele porque não tinha coragem, vinha logo à imaginação o pressentimento de confusão, de brigas, ou sabe se lá; até morte podia acontecer ali naqueles dias. Sentiam se inseguros e não viam a hora daquilo ter um fim. O homem ser preso, ou pelo menos ouvir notícias de que ele não estava mais ali pela redondeza. Isso era o que todos desejavam. Queriam de volta a paz no lugar, assim como era antes.

Houve morador cheio de crendices que chegou a procurar um velho de fama em macumba que morava numas terras ermas que ficava atrás de uma serra coisa de três léguas distante dali, e foi lá pra encomendar ao mandingueiro um trabalho pra ver se o sujeito das matas desterrava de uma vez por todas da região. Chegou lá e passou o assunto para o homem do jeitinho que tava acontecendo, e assim que terminou, o macumbeiro de nome Zé de França não se fez de rogado, pôs se de pronto na mesma hora, cobrou logo de cara cinco contos de réis; era muito dinheiro esse tanto, mas cobrou de plano feito pra se a reação do Chico Vilela fosse de não concordar baixar pra três, dois, um, ou qualquer quantia, o negocio dele era não perder a empreitada e passar a mão nos cobres, não importava o tanto. Porque era difícil aparecer gente ali pra mandar fazer trabalho. Então tinha que aproveitar, não podia deixar escapulir. Entretanto, ao perceber que Chico concordou facilmente ele não titubeou e mudou o pensamento na mesma hora e pediu mais um tiquinho alegando que era de fora a parte pra comprar umas coisas pra preparar um despacho daqueles que só ele sabia fazer. Mas afirmou categoricamente que podia ir e dormir sossegado, pois na sexta feira meia noite ele iria numa encruzilhada de uma estradinha que passava ao pé da serra ali próximo, bem num ponto onde havia um centenário pé de figueira que o povo o tinha como mal afamado porque era frequente gente a cavalo ou a pé passando a noite por lá e ser surpreendido por visagens das mais terríveis, e é nesse lugar que ele Zé de França, segundo palavras dele, iria se encontrar com o capeta e concluir os trabalhos, e nisso deu todas as garantias que o tinhoso ia dar um baque no sujeito das matas que ele ia se escafeder do lugar esconjurando todo mundo, e nunca mais punha os pés naquelas bandas, e mesmo que resolvesse voltar não conseguiria, pois ia ficar tão desorientado da vida que nunca mais ia achar o rumo do lugar. O feiticeiro falava e batia no peito pra enfatizar a infalibilidade de seus serviços macabros.

Contava vantagens uma atrás da outra, quase não parava de falar, contou uma de um homem que chegou lá quase doido lhe procurando pra fazer chover nas suas plantações, as lavouras estavam comprometidas por falta de chuvas, se num desse um jeito logo não ia ter colheita e o prejuízo era certo. Pagou a quantia de vinte contos de réis pela empreita, disse o macumbeiro olhando de relance pra Chico, como quem diz, estou acostumado pegar aqui é coisa graúda, mas mentindo o velhaco. O serviço foi feito, continuou o velho, e o homem foi embora, e quando chegou lá viu que suas terras estavam molhadas de canto a canto, e o mais intrigante é que nas terras vizinhas não caiu sequer um pingo d’água. Aí veio a estória de outro que sua fazenda estava infestada de cobras venenosas que estavam dando fim no seu rebanho, e veio mandar fazer serviço pra expulsar as serpentes de sua fazenda, e com poucos dias retornou pulando de alegria pra agradecer e trazendo uma gorda gorjeta em dinheiro vivo, pois os resultados foram muito alem do que ele esperava. Outra de uma mãe que a filha disputava com uma moça da cidade o namoro de um negro zarolho, - diziam que o negro tinha um patuá que mandara vir da Bahia e que era infalível pra encantar as moças - e a rival da cidade não era gente que prestasse, tratou logo de mandar fazer um pesado serviço de feitiçaria pra menina da roça desistir do namoro; e nisso a coitada da Dos Anjos ficou toda encalacrada de encostos de maus espíritos e estava à beira da morte. Não comia, não bebia e nem dormia, estava minguando a cada dia, gritava de tormento, o cabelo era um emaranhado só, os olhos eram vidrados e vermelhos como duas bolas de fogo. Isso era o velho macumbeiro inventando pra convencer o coitado do Chico vilela. A mãe apavorada descobriu aqui o Zé de França – bateu no peito de novo essa hora - e veio às carreiras pra encomendar trabalho pra expulsar aquilo do corpo da coitada da mocinha. Ele disse que resolveu a questão na mesma hora e ainda disse que sabia quem tinha feito o feitiço pra mocinha Dos Anjos, e sem perca de tempo indagou dona Natividade mãe da moça se ela tinha condições e se desejava fazer um segundo contrato pra ele fazer outro trabalho e acabar com as vidas das duas pessoas, tanto da que fez, quanto da que mandou fazer. Comigo e assim – disse ele orgulhoso e sentindo se maior que o outro feiticeiro – E outra, fazia mais em conta, primeiro porque eram dois trabalhos juntos e segundo que não era de deixar nada incompleto. Cliente dele tinha que ver o resultado do gasto que fazia. Chico faltava explodir de felicidade ouvindo aquilo, pois estava certo que ia resolver um grande problema na sua comunidade. Só que dona Natividade – continuou o macumbeiro - mulher católica fervorosa, tiradeira de terços e acostumada a fazer novenas pra esse e aquele saanto, as paredes de sua casa eram cobertas de quadros de santos, muitas imagens de santos pelos quartos - isso ele mesmo afirmando querendo se engrandecer dizendo que sua fama era grande e era procurado por gente de todas as religiões. Ela é daquelas católicas fervorosas – disse ele - Mas mesmo assim, depois de tantas rezas e promessas, vendo se naquela situação difícil resolveu aceitar os conselhos de uns vizinhos que já conheciam a minha fama e rumou pras bandas aqui do grotão atrás dos meus serviços, aliás, como qualquer mãe obstinada em salvar a vida da filha faria. Mas a segunda parte não foi feita, pois coitada, primeiro não podia e dizia ela na hora para o homem – numa voz baixa e bem tímida, eu só queria mesmo ver a Dos Anjos boa, não queria de jeito nenhum fazer mal a ninguém. Deus me livre fazer uma coisa dessas, nessa hora falou só com os lábios enquanto benzia se fazendo o nome do Pai. Todavia, temendo a reação do sujeito, talvez pudesse ele não gostar, então quis justificar dizendo que seu dinheirinho era pouco, e pra apurar teve que vender a única porca que tinha no chiqueiro e umas dez galinhas poedeiras. Para o lugar da porca ia deixar uma leitoinha pra criar, mas tava pequena, não dava de apurar quase nada, e ademais, não podia vender porque era a garantia de sustento no futuro. Não tinha mais nada. Mas tava ali muito confiante e satisfeita, e pra salvar sua filha fazia essas coisa, mas repetia, não desejava de jeito nenhum fazer mal a quem quer que seja, mesmo que essa pessoa tenha feito um grande mal a sua filha Dos Anjos. Zé de França acabou por concordar com ela, ate porque viu que ela não tinha como arrumar mais nada.

Enfim, tantas outras estórias. O homem estava radiante, seus olhos brilhavam de felicidade, Chico Vilela estava de queixo caído com a conversa, e sentado num banquinho de junto do velho num quartinho escuro e mal cheiroso, diante de umas três velas acesas, prestava atenção de um jeito que seus olhos nem piscavam, e de quando em vez balançava a cabeça afirmando acreditar piamente em tudo que ouvia. Vez por outra batia no coração de Chico profundo sentimento de orgulho que formigava seu corpo inteiro numa sensação de felicidade, vez que entre tantas pessoas mais graduadas no lugar, veja quem resolveu o grave problema?! Ele Chico, - falava consigo mesmo - um simples operário raso das capinas de cana e que ninguém dava nada por ele. Mas agora ia ter mudança, o povo ia olhar ele com outros olhos. Sua cabeça estava cheia dessas coisas absurdas enquanto prestava atenção na conversa do velho corcunda. O velho de cabeça branca era corcunda e magrelo, e de vez em quando saia se arrastando de um lugar pra outro pra pegar algum troço e incrementar sua velha mesinha de trabalho. A mesa era lotada de coisas esquisitas. Entretanto, Chico nunca imaginava que toda aquela euforia do trambiqueiro rezador fosse por causa dos cinco contos já bem seguros no fundo de sua algibeira. Pra deixar Chico mais impressionado ainda e caçando um meio de comer mais uns cobres do coitado, o corcunda acendeu mais duas velas, uma preta e uma vermelha, uma de cada lado, essas eram mais grossas e na hora ele disse pro Chico que eram também mais caras, obviamente querendo sofisticar e valorizar seus trabalhos.

O velho abaixou se, pegou de sob a mesinha de trabalho um litro, e assim que sacou a rolha o cheiro da cachaça recendeu no ambiente. No litro, alem da cachaça havia também umas cascas de pau, e enroscada nas cascas uma cobra coral que segundo o velho fora colocada viva dentro do recipiente. Fazia o comentário enquanto virava duas copadas da aguardente envenenada. Deixou passar uns segundos pra vir o efeito e em seguida estremeceu o corpo e na mesma hora deu um salto e um grito abafado, os olhos esbugalharam se como fossem saltar das órbitas, retesou os músculos, rangeu os dentes, mudou o semblante e respirou fundo; cerrou os olhos e depois mudou a voz, era uma voz esquisita, pastosa, parecia de gente que já tivesse morrido, ele era mestre nisso, e aí fez uns gestos como se os espíritos que lhe ajudavam nos trabalhos estivessem ali incorporados nele prontos pra entrar na ação que expulsaria o homem lá das matas. Mas era só uma encenação do velho pra impressionar Chico, voltou logo ao normal, e no rosto estampou se um largo sorriso de tanta alegria, pois viu que Chico realmente ficou contente com o que viu. O mandingueiro chegou a pensar em inventar uma desculpa e pedir mais cinco ali na mesma hora, porem, repensou e preferiu deixar para próxima ocasião, até porque já havia extorquido os últimos níqueis do pobre homem. Todavia, não se esqueceu de alertar que deveria voltar ali dentro de uma semana, que o homem tivesse desaparecido ou não, fazia parte dos trabalhos isso, ressaltou o esperto macumbeiro.

Passou se a sexta, sábado, domingo e uma semana inteira, Chico cheio de expectativas, porem nada de resultado, e pior, dias depois souberam noticias que o macumbeiro caiu doente e não tinha beberagem que curasse, já tinha feito de tudo, mas continuava de cama, a garganta irritara se de tal maneira que não conseguia engolir nem água, bateu lhe uma bambeza no corpo, os olhos quase fechados e sem um pingo de brilho, o corpo era só pelanca e ganhou logo uma cor esbranquiçada, o cabelo virou um fuá, o couro do corpo inteiro ficou todo empolado e cheio de bolhas que comichava e coçava tanto que rebentava e soltava um pó parecido com uma massa de fubá de cheiro horrível, perebas em sangue vivo começaram a pipocar pra tudo que era canto no homem. O coitado virou um molambo em cima do colchãozinho de palha num canto da cama e gritava dia e noite de tanta dor. Portanto a notícia não era das boas, e pelo jeito o moribundo não aguentava mais por muitos dias, havia inclusive quem garantisse que sua vida estava por um fio e podia contar suas horas nos dedos da mão. Isso era um péssimo sinal, pois todos deduziam que não tinha nem como comparar a sabedoria do homem das matas com o pobre coitado do Zé de França.

O povo quando ia pras vendas e começava a beber cachaça, parece que por conta da pinga perdia um pouco do medo, aí era só no que falava, falava e mangava o pobre do Chico Vilela, pois o serviço que ele encomendou não serviu de nada, parece que fez foi tornar o forasteiro mais afoito, pois desde sua ida à tenda do Zé de França de quando em vez o homem tava era botando alguém pra correr. Era uma conversa danada, uns diziam; mas também puderas esse homem é um jagunço com toda certeza e esses jagunços são preparados, tem lá suas mandingas também, e principalmente esse daí que o povo diz que além de ter parte com o capeta ele não desapega de um livro de rezas brabas, e dizem que nesse livro tem reza pra tudo enquanto, menos pra fazer o bem. Dizem que até invisível ele fica quando quer. Vira cupim, vira toco. Quem é doido de mexer com um troço desses! Só o Chico e o tal de Zé de França mesmo! E o Chico que ponha suas barbas de molho! Esse homem deve tá sabendo que o Chico tá pelo meio desse negocio e com certeza vai acabar mexendo com ele também. Quem dava essas explicações era Nego Bernal, sujeito comprido, de fala grossa e quanto tomado falava bem alto e gostava de ficar bem no centro da roda de conversa, pois queria que todos o ouvissem com atenção. Os outros caiam na risada mangando o pobre do Chico. Então veja o que aconteceu, o velho macumbeiro comeu os cinco contos do Chico, mas se deu foi muito mal porque a sua viagem para o outro mundo parece que foi adiantada, e muito bem adiantada, pois, ele tá só esperando a hora de descer pelas cordas num buraco de sete palmos de fundura. Ave Maria! Que coisa meu Deus do céu! Esse era Felisberto, sujeito acanhado, de pouca conversa, mas lá num canto da venda sentado num tamborete prestava atenção, e depois de umas três talagadas bem calculadas da caninha resolveu arriscar essas poucas palavras. Mas ficou só nisso, não falou mais nada, parecia uma múmia lá no seu canto. É gente; e o homem tá aí, disse Zé piolho arribando o chapeuzinho de palha e coçando a careca como querendo achar uma solução para o caso. Esse era um sujeito bunda murcha, não valia de nada, mas meio tonto era todo renitente, e por cima de tudo metido a corajoso e valente. Virava e mexia ele fazia menção tirar ligeiro do bolso um canivete velho como querendo enfrentar uma situação de perigo. Tinha hora que as ideias de valentias começavam a revirar dentro de sua cabeça por conta da pinga ai ele não aguentava, surpreendia os companheiros, pois dava um salto como tivesse se livrando de alguem querendo lhe pegar numa gravata, sacava o enferrujado canivete do bolso, abria ligeiro e segurava firme com o braço estirado e olhando pros lados com a cara ruim querendo mostrar que estava pronto pra briga. As vezes dava uma rodopiada no corpo querendo mostra agilidade, entretanto, toda vez que fazia isso, quando não se esborrachava no chão era porque alguém o segurava ou ele se escorava em alguém. Nessa hora Felisberto arribou a cabeça e disse: Virgem Maria, Ze piolho agora endoideceu foi de vez. O povo faltava morrer de rir de tanto achar graça. Mas ele nem ligava e continuava. O homem nem abalou, e se um dia decidir ir embora será por conta e vontade própria. Ninguém vai dar conta de expulsar ele daqui não. Podem ter certeza disso. Agora dona Maria Geralda mulher de Chico é que virou uma arara, falou Zé pretinho depois de virar um copo de pinga, esse era engraçado o jeito dele falar, era meio rouco; parece que tinha engolida alguma coisa quente quando menino e o acidente provocou um calo em algum lugar de sua garganta o deixando fanhoso para sempre. Ela não acredita nessas coisas de jeito nenhum, - disse ele - e logo agora que começou a frequentar uns cultos de crença evangélica, tá bem envolvida, seu jeito de vestir mudou foi muito e é sempre vista com a bíblia debaixo dos braços, e por essa razão Chico fez tudo escondido dela. Mas pro Chico tava se complicando porque os cinco contos eram o ordenado do mês e o dinheiro era a conta certa pra pagar a dívida no armazém do Zé Rita. Pois tiravam os víveres que eram assentados numa caderneta no correr do mês e quando recebia ia lá e pagava e fazia nova compra. As coisas foram acabando, a meninada reclamando que a barriga doía de fome, a mulher começou apertar o Chico pra saber o que tinha acontecido, e ele sem querer dizer, mas por fim ficou sem saída e contou toda a verdade. Maria Geralda quase teve um colapso na hora, deu um grito feio, ao mesmo tempo um pulo desengonçado porque a roupa comprida de frequentar a religião atrapalhou, levou as duas mãos à cabeça e trouxe nas unhas um punhado grande de cabelos, voou no Chico com tanta gana e deixou em trapos sua velha camisa de chita, no pescoço ela meteu as unhas e arranhou pra toda banda, de onde brotava sangue e lambuzava tudo e escorria para o resto do corpo. Estava uma fera a mulher. Gritava enlouquecida e não conteve sua fúria, voou de novo na garganta de Chico, queria esganá-lo a qualquer custo. Mas ele dessa vez viu que a coisa tava feia, saltou de lado e disparou na carreira e ela atrás pega não pega com um cabo de enxada querendo quebrar lhe a cabeça.

Pois nunca imaginava uma coisa daquela. Corria e gritava quase louca de raiva. Parece que não era só por conta dos cinco contos, mas principalmente por ele estar influído com aquelas coisas e ela frequentando outra crença, e para a qual pretendia convertê-lo o mais breve possível. Já tava tudo certo pra levar um povo da religião dela em casa pra conversar com Chico e persuadi-lo a entrar na crença. Meu Deus do céu, que absurdo, isso é um castigo, não consigo acreditar esse homem mexendo logo com macumba, estou morrendo de vergonha e não sei como fazer pra explicar isso aos irmãos lá na igreja. Repetia sem parar e derramava prantos de tanta tristeza.

E ainda o problema da conta no armazém do Zé Rita. Zé Rita não era de dar moleza quando alguém atrasava o pagamento e com certeza ele viria cobrar. E como fazer pra comprar os mantimentos para o mês? Pelo que conhecia o Zé Rita não ia vender enquanto não pagassem o atrasado. Tava difícil. Era muita coisa pra cabeça da coitada de dona Maria Geralda. Vou me enlouquecer dessa vez, gritava ela.

O desmantelo realmente foi dos grandes. Enfim, esse maldito homem das matas trouxe muitos transtornos na vida de muita gente ali, e as poucas pessoas que o avistaram fugiram às carreiras quase botando a alma pela boca. Há inclusive um fato engraçado acontecido com o Bira, morador ali na colônia, sujeito meia idade, mal amanhado e preguiçoso, arrastador de papo e pra se engrandecer vivia contando estórias de valentias em que ele sempre era o vitorioso. E a cada uma que acontecia ele ganhava mais respeito na comunidade onde estivesse morando. No começo o povo o respeitava e tratavam no por seu Bira, mestre Bira ou simplesmente, mestre. Ele adorava esses tratamentos. Depois foram descobrindo que Bira era um grandessíssimo falastrão, contudo, faziam de conta que tava acreditando porque gostavam de ouvir suas estórias. E ele quando tava falando essas coisas procurava assumir uma postura diferente, impecável, ficava todo imperioso, olhar calmo porem firme, que era pra passar a impressão de líder, pessoa respeitada, destemida e muito segura no que tava falando. Gostava de contar estórias sempre nas bocas de noite e o povo fazia uma moa em volta dele pra ouvir. Os casos eram sempre de emboscadas, acertos de contas ou pra defender algum coitadinho sendo humilhado por algum desaforado. Não aguentava ver essas coisas, dizia ele.

Entretanto, nessas confusões que contava ter se envolvido, quando não era no começo era no meio ou no fim, mas podia esperar, estava seu bisavô, o avô e seu pai como jagunços dos mais temidos numa região onde moraram no estado da Bahia. Em meio a rodas de conversas ele dizia que não negava a raça e era valente e corajoso do mesmo jeito dos seus antepassados. Afirmava inclusive que certa vez, num lugar onde morava antes de vir pra li, entrou em grande contenda contra uma família de gente braba que não dava sossego para o povo do lugar. Vivia todo mundo amedrontado com o bando de encrenqueiros. Eram mais de dez contra ele e seu pai nesse dia, todos armados com trabucos, garruchas, porretes, peixeiras e punhais, entretanto, sem falar nas rasteiras baianas e rabos de arraias que levantavam poeira e assobiavam sem parar pelos ares, houve também tiros, porretadas, punhaladas e zunido de peixeiras. Contudo, depois de horas de luta ferrenha uns quatro ficaram estirados no chão, não se soube se mortos ou apenas desacordados, os outros correram quebrados de tanto apanhar enquanto ele e o pai saíram ilesos, sem nenhum arranhão. Concluiu a estória afirmando que para felicidade dos moradores os que sobraram anoiteceram e não amanheceram no povoado, sequer deixaram rastros para onde foram, pois temiam que Bira e seu pai, injuriados do jeito que estavam, fossem em perseguição pra acabar de vez com a raça deles.

Bira contava essas coisas querendo dar a entender que tava começando a se aborrecer com o tal sujeito das matas e a qualquer hora podia acontecer ali a mesma coisa, pois há dias pensava numa maneira de encontrar o forasteiro, travar um duelo peito a peito com o maldito e trazer de volta a paz no lugarejo, o expulsando dali pra bem longe e para sempre, do mesmo jeito que fez com os valentes do lugar onde morava no estado da Bahia.

No auge da conversa ele às vezes pensava que as pessoas estavam mesmo acreditando e se empolgava de tal maneira que chegava a sair de si, parecia em transe, se esforçava e dava uma gingada no seu corpo balofo, querendo imprimir um estilo semelhante ao dos exímios atiradores, levava a mão à cabeça pelada como se houvesse ali um chapéu, e com a outra fazia um gesto rápido do jeito que ele imaginava fazerem os jagunços de verdade. Fazia de conta que sacava o revolver e disparava fogo contra um bando de supostos inimigos tentando lhe pegar à traição ali na hora. Por fim arribava a cabeça pelada, estufava o peito e respirava ares de vitória, pois, no filme que passava no seu imaginário havia derrubado um por um. Ocorria de ele pra ilustrar melhor o que tava contanto, muitas vezes sem perceber, dava um salto de lado com o braço esticado em certa direção, e com a boca emitia fortes sons – tá, ta, ta, semelhantes aos estampidos dos revolveres 38 a que ele tanto gostava de se referir. Depois de vários imaginários disparos ele fazia um gesto como soprasse a boca do cano e em seguida um trejeito também incrivelmente ligeiro com o dedo da mão rodando a arma no ar e mostrando habilidade como devolver ao coldre seu reluzente para belo. Mas isso só na imaginação coitado. Tinha vez de ele fazer isso com as duas mãos como estivesse usando dois revólveres ao mesmo tempo. O povo gostava dessas mentiras e o ouvia silenciosamente e com atenção. Quando ele terminava de contar, aprumava o corpo, estufava o peito, erguia a cabeça e punha as duas mãos no quadril com os cotovelos arrebitados pra trás em busca de semelhanças com gente destemida e acostumada ao manejo com 38. Essas encenações arrancavam risos e gestos de aprovação de alguns desinformados ou mesmo de quem sabia das mentiras, mas as achavam engraçadas e queriam ouvi-las. Ele se empolgava, ficava ofegante e se sentindo vitorioso.

Entretanto, depois o povo ia embora imaginando que não tinha como, pois essas coisas não combinavam vez que Bira era um baixote gorducho que fazia lembrar uma bola mal ajambrada, sua pança impedia que abotoasse a velha camisa cheia de remendos, na hora de movimentar o corpo, embora se esforçasse parecia uma lesma vivia de pés no chão e vestido numa calça pega frango, careca, caolho e cambeta, portanto de estatura esquisita e completamente destoante daquela que passava em seus pensamentos. Beirava ao cúmulo do ridículo. Mas ia pra casa todo empolgado e pensando que o povo o tivesse como um perigoso jagunço ali na redondeza.

E Bira num era da Bahia coisa nenhuma e muito menos valente, quem descobriu isso poucos dias depois foi seu Jeremias, era mascate esse homem, sujeito nos seus cinquenta e tantos anos, gorducho, negro de semblante iluminado e sorriso fácil, e quando sorria mostrava um leve colorido por causa de alguns dentes cinzelados a ouro em sua dentadura. Sempre num chapéu de massa de cor cinza puxando pra azul e de abas estreitas quebradas sobre a testa como querendo cobrir os olhos miúdos cheios de brilhos de tanta malícia ao falar sobre as invencionices bestas de Bira. Na fita do chapéu uma pena de canário enfiada pra dar o tom da sua vaidade. Alegre, conversa agradável e de tempo em tempo aparecia ali em seu velho Jeep azul de capota de matéria plástica de cor preta, vinha pra vender seus aviamentos. E enquanto isso aproveitava pra contar as novidades de outros lugares por onde tinha passado. Quando ele bateu as vistas no Bira disse logo que o conhecia lá do povoado Mandiocal, umas vinte léguas distantes dali. Aí o povo não perdia tempo e apesar de saber das mentiras do Bira, puxaram muitas conversas com o velho mascate dizendo que Bira contava ali pra todo mundo que era da família de uns baianos valentes. Inclusive uns que participavam da coversa ali na hora com o velho procuraram demonstrar com palavras e fazendo gestos sobre as coisas que Bira contava. O velho gordo achava tanta graça que sua pança enorme balançava de tanto sorrir, e aí é que ele procurava mesmo contar em detalhes, e afirmava que lá no Mandiocal tinha mesmo uns baianos, gente direita e trabalhadora, e gostavam de contar estórias do lugar onde eram no estado da Bahia, mas não se tratavam de gente valente.

Mas Bira e sua família são dali do Mandiocal mesmo, tenho certeza, o pai dele se chama Zé Batata, velho opilado, leva a vida cuidando de roças, e a mãe, dona Inocência, é dona de casa, mas muito conhecida e respeitada no lugar porque é uma boa rezadora em crianças com quebrante e outros incômodos. Tá sempre com a cabeça envolvida num lenço colorido e atrás das orelhas, de um lado um cigarro de palha e no outro um galho de alecrim ou qualquer ramo verde, pronta pra exercer seu oficio de benzedeira. Quase todo mundo ali é compadre e comadre dela, mais em respeito às orações milagrosas que ela fez aos filhos quando eram pequenos. Mas é um povo pacato, e olhe que ando ali já faz muito tempo, conheço tudo como a palma da minha mão, num sei de onde o preguiçoso do Bira tira essas coisas, maluquice da cabeça dele mesmo, coisa de quem não tem o que fazer, só pode ser isso. Dizia seu Jeremias com ar de troça.

E por lá também ele tem fama dessas invenções, e de muito mentiroso, isso sim, e quem fala isso é o próprio pai dele, o Zé Batata. Agora tem uma coisa, tirando essas besteiras de inventar essas estórias malucas, é um coitado, num passa de um cagão, nunca fez um dedo de mal a ninguém. O pai dele quando tá bebendo umas pingas lá na venda do Bugio escancara falando dessas coisas do filho. E o Bugio não perde tempo, gosta de puxar conversa com o velho. Bugio é um negro na meia idade, muito engraçado, baixo, grosso, venta chata e pescoço atarracado; nunca tira da cabeça um velho chapéu de pelo amarelado de abas caídas e com diversos furos no topo da cabeça que deixam à mostra partes do cabelo pixaim já bem pintado de branco. Sempre nu da cintura pra cima. O tempo todo mastigando pelo canto da boca um cigarro de palha apagado. Passa o dia todinho ali atrás do balcão ao lado dos rolos de fumo ora sentado num banquinho ou em pé proseando e atendendo os fregueses. Gente fina e de grande simpatia o danado do negro. Todo mundo gosta dele e por isso nos sábados a tarde e aos domingos a venda é cheia. E ele pra ficar animado tanto vende como lá de vez em quando toma seus tragos, apesar da cara feia de sua mulher dona Joanica que de quando em vez aparece no peitoral da porta pra lhe dar uma bronca. Não gosta quando ele bebe muito, fica enjoado, não come direito, ronca feito um porco e não tem quem aguenta o bafo depois, além de não conseguir anotar direito no caderninho de fiado a maioria das coisas que vende e com isso prejuízo na certa, porque os fregueses muitos deles velhacos até via, mas certamente achava era bom, dizia ela esbaforida com uma colher de pau na mão, às vezes ameaçava lascá-la na cabeça do marido, enquanto derramava na outra mão um pouquinho de caldo pra provar se estava bom de tempero um guisado de carne de vaca que cozinhava na trempe do fogão de lenha na cozinha. Uns que gozava de certa regalia com o povo da casa dizia; e tá diacho, pois o almoço tá cheirando que é um colosso!

Agora sobre as coisas de Bira, provavelmente conta isso inspirado nas estórias que ouvia dos baianos sobre jagunços nas fazendas do sertão da Bahia. Isso antigamente era comum nos sertões da Bahia, naquelas fazendas dos coronéis do cacau, faziam isso mesmo, afirmava o velho gorducho dos aviamentos. Nos dias que o velho esteve por ali Bira ficou assuntando tudo de longe. Pulava cedo e caía pras roças e só chegava depois que escurecia coisa que não era lá do seu agrado. Então tudo que ele contava não passava mesmo de cenas produzidas pelo seu subconsciente estimulado pelos falsos sentimentos de bravura, coisas mirabolantes e fantasiosas, e na verdade ele não trazia na cintura sequer um pequeno canivete. Alguém de passagem por ali antes do velho mascate já havia dito conhecer Bira e afirmado também que as estórias de valentias que contava ele as plagiava de acontecidos que ouviu falar sobre jagunços em fazendas do sertão da Bahia ou dos filmes dos cinemas da cidade que alguém lhe havia contado, ele não perdia essas chances, entretanto, ele mesmo era um palerma, não passava de uma lesma e não ofendia a boia que comia. Era apenas mero contador de anedotas e grandessíssimo mentiroso.

Domingos Andrade
Enviado por Domingos Andrade em 21/08/2019
Código do texto: T6725902
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