A hora da saudade
Mais uma vez ela ouviu o tic-tac do relógio, conseguindo, mesmo com os olhos fechados, saber que a terceira hora da madrugada havia findado. O comprimido para dormir não lhe servia mais e essa situação, nos últimos tempos rotineira, causava-lhe um grande desconforto, especialmente porque seu marido, o homem a quem amava e com quem contava para tudo, dormia pesadamente ao seu lado e não merecia acordar e preocupar-se com ela. Era seu companheiro por inteiro e, apesar de buscar constantemente contornar as preocupações que nela reconhecia, tentava driblá-las com uma rotina entercalada por trabalho, lazer e amor. Não! não merecia! ela sabia disso. Tentou manter-se imóvel, permanecer com os olhos fechados e dissipar todo e qualquer pensamento que a levasse para o abismo que tinha virado a sua família. Desde a morte de sua mãe que ela sentia-se órfã de tudo e de todos. O seu lado camaleoa, tão reconhecido pela sua trajetória de vida, não conseguiu fazê-la entender o porquê de tanto distanciamento.
Subitamente a cadela latiu. Isso sempre ocorria com a proximidade do caminhão do lixo na madrugada. Tentou retornar à noite anterior e confirmar mentalmente que o vaso quebrado havia sido envolto por muito jornal antes de ir para a lixeira. Sempre que algo similar acontecia ela preocupava-se com a possibilidade de qualquer corte por parte dos lixeiros. Muitas vezes chegou a pensar que era muito melhor recolher lixo na madrugada do que recolher sentimentos pouco nobres, com os quais passou a conviver nos últimos anos, justamente nos anos em que a vida lhe deu um pouco mais de tempo para aproveitar a casa, o pátio, as plantas e até mesmo a companheira canina que aprendeu a amar.
O tic-tac do relógio a fez adormecer. Sonhou pela segunda vez, como se o sonho tivesse durado a noite inteira. Nele reportou-se à varanda da casa de sua vó, ornada por ladrilhos bordôs com filetes brancos e, no limiar com o gramado, duas floreiras recheadas de calanchoês coloridos. Sentiu o cheiro da terra molhada, já que uma chuva fina acabara de cessar. Naquela varanda, especialmente nos finais de tarde dos sábados o seu melhor sorriso se instalava. Alí ela, sua vó e algumas pessoas da família sentavam para o chimarrão e uma boa e amena conversa. Ao seu lado, invariavelmente, uma outra vó, não de sangue; mas de alma, aproveitava a prosa e, com sua simplicidade, falava, já naquela época, de espíritos, de almas e de amores. Perto dela os dissabores eram invariavelmente subtraídos com uma astúcia mágica e, quando começava a tardar, ela punha-se a olhar o céu e, com as mãos unidas, falava na “hora da saudade”. A sensação era de que, sem qualquer combinação, todos ficavam quietos, elevavam o olhar ao céu da mesma forma e respiravam fundo uma boa quantidade de saudade de alguém ou de alguma coisa.
Serenamente acordou, mas com o coração apertado. Sentiu o quanto sua vida andava vazia, apesar dos inúmeros projetos nos quais se envolvia e no quão inteira ela era, mesmo no tempo em que tinha metade de sua família próxima, pois parte dela resolveu tomar outros rumos. Assim como em outras noites insones, era normal esquecer do mundo quando lembrava do que vivera. Era demasiadamente comum. Tudo era muito claro. Ainda sentia o cheiro do talco que sua mãe polvilhava no seu travesseiro, adornado por uma caixinha de BIS, toda vez que ela chegava.
A essa altura já conseguia enxergar a claridade de um poste atravessar algumas frestas da janela do seu quarto. Resolveu levantar-se com cuidado e, mesmo com os pés no chão, caminhar lentamente em direção à cozinha em busca de uma xícara de chá. No caminho, no corredor que organizara toda a sua parafernalha de trabalhos, leituras e escritos, em uma prateleira central três porta-retratos enfileirados sorriram prá ela. Neles seis olhos brilhantes fizeram-na entender, pela milésima vez, que o seu mundo residia alí. Parou, sorriu e, logo em seguida lágrimas se acumulavam nos cantos dos seus olhos contra a sua vontade. E ela sabia porquê. Porque faltava mais um porta-retrato, com mais dois olhos brilhantes. E ela sabia que não teria previsão de quando o veria.
E como esperado, não dormiu mais.
Publicado no livro PROSA NA VARANDA 5, lançado em 17/09/2019