COLODINOS - CAPÍTULO 05

Zé, de tantas estórias que tinha ouvido, assimilou o episodio sobre aquela criatura estranha que viu há poucas horas sobre a rocha como se fosse um relâmpago em sua cabeça, e pelo fato do animal ter caído n’água e não voltado mais, aquelas cenas intrigantes, talvez por conta do seu entusiasmo pela pescaria, elas foram se dissipando e ele já nem se lembrava de mais nada, e sua concentração era apenas na pescaria. Daí por diante parecia esquecido do mundo, pois os enormes lambaris pratas e o de cauda vermelha vinham em cardumes à flor da água, estavam famintos, saltavam em dezenas ao mesmo tempo fora d’água para pegar o farelo de milho que Zé jogava com certa economia, mas os coitados dos peixes não chegavam saborear o alimento, pois caiam na cilada que Zé inventou e iam direto para o interior da embarcação.

Estava entretido, satisfeito e usando esse modo fácil de pescá-los que aprendera com o pai levantando do assento e se sentando de arranco, e com o impulso os lambaris vinham em meio a água para o interior da canoa. O lastro estava forrado de lambaris, e isso lhe produzia imensa sensação de prazer que não estava nem dando fé do tempo, e quando olhou rio abaixo viu os reflexos avermelhados do sol batendo no espelho d’água numa curva do rio grande abaixo do porto do Glória anunciando que não tardava pra começar a escurecer. Nuvens de pernilongos sobrevoavam incessantes e pousavam pra tudo que era banda do seu corpo, e nem isso lhe incomodava, pois estava insaciável e continuava firme no serviço de pescar.

De repente uma coisa estranha começou a acontecer, não dava pra ver direito porque já estava escuro, no céu havia algumas estrelas, e a lua minguante também estava lá no alto, contudo pouquíssima iluminação, portanto dava apenas pra sentir os efeitos dos movimentos anormais que estavam acontecendo, porem não dava pra enxergar absolutamente nada.

Uns solavancos bruscos começaram a jogar a canoa de arranco de um lado para o outro muito barulho dentro da água, e de quando em vez um vulto escuro vinha a flor d’água, e aí a situação ficou deveras de fazer medo. Xavante acuava e avançava enlouquecido, mas em uma de suas avançadas o bicho d’água que pelo jeito tinha unhas afiadas e enormes lhe deu um pescoção e rasgou lhe parte da cara. O coitado gritou tanto que parecia que ia morrer, entretanto, levantou se e continuou atacando com ferocidade, todavia não quis mais saber de aproximar vendo a eminência de perigo. De quando em vez ele parava de latir e olhava para o dono e depois para o barranco do rio e uivava quase chorando, certamente clamando por socorro pra sair dali. Zé estava transtornado, esforçou se pra ver o que era, mas não houve como, pois era impedido pela água suja e revolta misturada ao turvo da noite que a essa altura já fazia se presente. Lembrou de novo da espingarda de dois canos, se tivesse com ela, como era de costume, lascava uns dois tiros, e acertaria mesmo com escuro, e ainda mais que a espingarda estava com os dois canos carregados com esferas de rolimãs de roda de caminhão e o bicho ia se lascar e morrer na mesma hora e servir de banquete pra outros bichos e peixes lá no fundo das águas do rio.

Lá fora nem sinal de gente pra gritar por socorro, apenas zoadas no meio das matas adjacentes ao rio, bichos gritavam, pássaros noturnos faziam barulhos e piavam muitos deles de cantiga lúgubre, a cauã, o curiango, corujas e corujões de orelha, e tudo isso só servia pra tornar o lugar ainda mais tenebroso.

Estava apavorado, mas pra sua sorte de repente os movimentos cessaram se e tudo voltou à calmaria de antes. Mas mesmo assim tava de coração na mão, as estórias de antigamente que seu Ataliba contava, e agora aquela criatura esquisita vista poucas horas atrás sobre as rochas e aquilo que tava acontecendo ali agora lhe deixou sobressaltado. Ademais, seu anjo de guarda pedia que fosse embora o mais depressa possível. Chegou a passar por sua cabeça que o bicho tivesse ido de vez e não oferecesse nenhum perigo mais, contudo, não quis saber de perder tempo, e na mesma hora começou arrumação pra sair. Remou com força, mas foi aí que viu que a coisa não tava de brincadeira, pois a canoa nem aluiu, pois, por mais que ele remava, ela balançava para os lados e não arredava do lugar. Uma coisa estranha estava acontecendo, pois a canoa sem estar agarrada em nada estava empacada ali sobre a superfície das águas. O coração palpitava coisas ruins, mais uma vez teve vontade de gritar pedindo por socorro, mas olhou para os lados e viu que era em vão, pois, o lugar naquelas horas era sombrio e de escuridão, e com exceção da zoada dentro da mata o resto era tudo deserto.

A criatura das águas pareceu lhe estratégica, pois atacava de forma planejada e eficiente, e no mesmo instante começou de novo os movimentos dentro d’água, pois havia retornado e dessa vez estava enlouquecida, batia de todo jeito, não fez qualquer menção de ir embora, continuou ali batendo e segurando firme na beirada da embarcação. Zé ficou estarrecido de medo, pois começou ouvir uns gemidos esquisitos como se ele tivesse retesando os músculos e rangendo os dentes de tanto fazer força, Xavante latia e chorava ao mesmo tempo, apadrinhava se com o dono em busca de segurança, estava amedrontado, principalmente porque a água começou a correr pra dentro da canoa que começou a encher e não ia demorar pra afundar com eles dentro.

Momentos de pavor, a noite já era um breu de escura, e a ideia recorrente não era outra senão a do nego que viu em cima da pedra. Lembrou de novo das estórias sinistras que os mais velhos contavam quando ele tivesse talvez uns cinco anos de idade sobre um negro rechonchudo que vivia nas águas do rio grande. Era musculoso, astuto, forte, e muito perverso, quando menos se esperava ele atacava as canoas, e era infalível quando atacava, agarrava ali um dos pescadores e arrastava para as águas profundas. Esses pescadores nunca mais voltavam, desapareciam pra sempre e ficavam nos anais das tristes estórias do rio grande.

Acontecia de dias depois da tragédia gente que morava na beira do rio ver canoas descendo rio abaixo sozinhas emborcadas sendo levadas pelas correntezas. Quando viam canoas descendo solitárias emborcadas daquele jeito esconjurava logo o negro d’água, faziam o sinal da cruz pra se benzer e assumiam gestos de consternação, pois imaginavam logo que de certo seus ocupantes tinham sido atacados, passado muita agonia pelejando pra escapar, mas eram arrastados a força e levados pra lugar bem fundo e devorados pelo monstro daquelas águas. As famílias iam às loucuras, as mulheres descabelavam se, as crianças choravam e pulavam aos gritos de pavor pedindo para os pais voltarem, mas o tempo passava e acabavam perdendo as esperanças e ficando apenas com lembranças tristes da tragédia, e restando lhes muito sofrimento e desgosto até o fim de suas vidas.

Lembrar essas estórias que imaginava ser apenas uma lenda o deixou mais apreensivo, pois veio lhe na mesma hora um sentimento ruim e medo de morrer, assim como morreu o menino Joubert da estória que o velho Ataliba contou, e também desses outros pescadores que foram atacados pelo negro das estórias que tanto ouvia quando era menino.

Naquela hora viu que a canoa tava enchendo d’água e começava a querer afundar, todavia, apesar da situação de pavor, sentiu que tinha que manter a calma, pois percebeu o perigo que tava correndo e devia cuidar ligeiro e de um jeito que não errasse, porque senão em poucos instantes seria mais um a fazer parte naquelas estórias de pavor de final trágico que ouvia nos tempos de criança.

Lá no começo dos movimentos ele pensou que a canoa tivesse daquele jeito por causa do peso dos peixes e da água que escorreram para o interior da mesma, mas qual era mesmo o monstro do rio agarrado firme na beirada da embarcação. Mas Zé era sujeito esperto, reconheceu na mesma hora o perigo que corria e agiu eficientemente rápido, conseguiu lembrar se e se salvou valendo se da lanterna de pilha para alumiar, e ver direito, e também do Collins afiado que trazia na gaveta de baixo do banco da canoa. Foi ligeiro, desferiu vários golpes certeiros, um atrás do outro, cada um mais forte do que o outro e quando viu, tinha conseguido cortar bem na junta, e apartou a munheca enorme de unhas horrendas e longas do misterioso habitante das águas do rio grande. Xavante encorajou se pegando a munheca, mordendo a com muita raiva e ao mesmo tempo avançava pra morder o negro, mas a essas alturas o monstro já havia fugido e grunhidos assustadores eram ouvidos, ele descendo rio abaixo sem uma das patas que havia ficado dentro da canoa esvaindo esguichos de sangue pra todo lado.

Zé pegou aquela coisa nojenta, seu estomago entojou, virou a cara para um lado e ia arremessando lá no meio do rio, mas conteve se, pois lembrou que tinha que dar um jeito de levá-la para mostrar e provar pra todo mundo na colônia que havia debatido com o famoso e lendário nego d’água, pois senão ninguém ia acreditar e essa seria entre muitas, apenas mais outra estória de pescador ali do rio grande.

Pegou um galão de debaixo do banco da canoa, jogou mais da metade da água pra fora pra não correr o risco de afundar e saiu remando com tanta força que a canoa, apesar de ainda pesada, saiu voando sobre as águas, e mal chegou ao barranco, saltou fora, puxou a cordinha de nylon e amarrou bem amarrada como de costume no pezinho de ingá. Nem percebeu, mas quando viu Xavante já havia pulado e tava lá distante olhando assustando.

Ficou parado ali por alguns instantes, sem saber o que fazer, sem tino, pensamentos confusos, imaginava sendo agarrado e levado pelo monstro lá para o meio do rio, não adiantava gritar por socorro, enfim, mas afinal caiu em si, tirou o chapeuzinho de crina da cabeça, olhou para o céu de mãos estendidas e começou a chorar de emoção. Ajoelhou se e elevou os pensamentos às alturas em fervorosas orações de agradecimento ao Pai pelo milagre de estar ali vivo e completamente fora de perigo.

Ainda assustado, como se ainda em perigo, volveu os olhos pra trás enquanto pensava naquelas cenas horríveis, cenas de terror, cenas que o fizera refletir profundamente o quão frágil é a vida de uma pessoa. Não somos nada nessa vida! Concluiu finalmente! Aí abaixou se, pegou o saco de aniagem que era pra levar os lambaris, mas nessa hora nem lembrava mais dos lambaris, colocou dentro do saco a munheca do nego, jogou nas costas e com Xavante no seu encalço caminhou quase correndo pelos tortuosos trilhos das ladeiras do pasto colodino indo para o rumo de casa. Quando chegou lá e contou o que tinha acontecido e mostrou a pata do monstro, virgem Maria foi um reboliço danado a noite inteira, e daí pra frente o que era lenda sobre o nego do rio, passou a ser coisa de verdade, pelo menos na cabeça do povinho ali dos colodinos.

Domingos Andrade
Enviado por Domingos Andrade em 09/08/2019
Código do texto: T6715906
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