COLODINOS - CAPÍTULO 04

Na última noite foram rodadas e rodadas de prosas agradáveis, ambiente descontraído, e muita animação, e de quando em quando lembranças comoventes, coisas passadas há mais de cinquenta anos, e dentre elas haviam episódios de deixar as pessoas de cabelos arrepiados. Eram estórias de assombrações, de coisas encantadas, de gente ruim que fazia perversidade com os outros e quando morria virava corpo seco e era pendurado nas árvores das florestas da região, de feras que vinham das matas, rodeavam os terreiros e pegavam criação nos poleiros das galinhas ou nos mangueiros dos porcos, havia também de cachaceiro que num passava de merda, mas enchia a cara de pinga, botava uma faca na cintura e ficava arrastando papo e caçando briga dizendo se valente e perigoso fazendo feiuras nas vendas aos finais de semana. No outro dia ficava de cara no chão de tanta vergonha. Uma de um forasteiro que apareceu na região e vivia embrenhado dentro das matas, e algumas pessoas que chegou a vê-lo dizia que era um sujeito de uns dois metros de altura, modos muito estranhos, usava chapéu de pelo quebrado de um lado, cabelo e barba grandes e desgrenhados não falava com ninguém e trazia sobre as costas uma imensa capanga de couro, no ombro uma arma que parecia ser uma carabina. A suspeita era que fosse jagunço em missão escusa, a mando de alguém pra acertar conta com algum morador do lugar. Estórias de ladrões de galinhas; e uma muito engraçada de um sujeito que tinha como oficio roubar besteiras nas casas das vizinhanças e quando dava certo de ele ir preso se soltava a hora que queria e sorria das caras dos soldados porque sabia fazer feitiço pra destrancar e abrir a porta da cadeia sem a chave e quando os soldados corriam atrás dele pra pegar ele zombava, deixava alcançá-lo de propósito, mas quando levavam as mãos nas costas dele pega num pega ele virava um toco ou um cupim, os deixando de cara pra cima feito cachorro caído de mudança. Enfim, além dessas havia outras como lendas ou fatos verídicos acontecidos com alguém nas matas ou nas barrancas do rio grande.

Inclusive uma que aconteceu com Zé sobre um nego d’água numa certa boca de noite, numa volta do rio grande conhecida como bebedouro, dia de águas mansas e silencio absoluto, ar parado, tudo quieto; exceção apenas de barulhos na água lá de vez em quando feitos por peixes pulando para pegar flores, algumas folhas ou frutas que caiam de maduras lá pra cima de árvores na beira do rio cujos galhos se estendiam sobre as águas e caiam, e aí vinham descendo serenamente ao sabor das correntezas e faziam a festa dos peixes. Principalmente dos cardumes de lambaris.

Zé contou que estava satisfeito, a promessa de levar naquele dia uns peixes pra casa era das melhores, contudo, não foi isso que aconteceu, pois ainda cedo da tarde começou uma coisa que mudou completamente o rumo dos acontecimentos, e a principio ele não deu muita importância porque realmente não lhe parecia preocupante, porem no fim da tarde foi virando um pesadelo e na boca da noite a coisa ia transformando numa grande tragédia, foi por pouco, só não aconteceu graças às benções de Deus e porque ele foi muito ligeiro na hora pra se safar daquela situação de grandes apuros.

Era rapazinho de dezesseis pra dezessete anos nessa época, gostava muito de pescaria, disse inclusive que relembrar junto com a família ali no encontro esse fato ocorrido há mais de cinquenta anos o havia deixado tão emocionado que conseguiu contar tudo com tanta riqueza de detalhes que parecia ter acontecido ainda ontem. Lembrava em pormenores. Disse que chegou da roça, tava morrendo de sede, foi na tália, abriu a torneira encheu umas duas canecadas d’água fria e bebeu. Foi no quarto contiguo a cozinha e sentou por alguns instantes no catre onde dormia á pretexto de descansar um pouco. Começou a mexer numas coisas, mas não lhe saia da cabeça a ideia de dar um pulo na beira do rio pra pescar. Portanto caminhou ao quarto da sala, remexeu numa velha capanga de couro pra procurar umas linhadas de anzol, a lanterna de pilha; pegou o facão Collins que estava embainhado e pendurado num prego fincado na parede do quarto, voltou à cozinha e pegou o surrado e inseparável chapeuzinho de crina que havia deixado há pouco sobre a mesa e o colocou de novo na cabeça. Já ia saindo, mas resolveu voltar pra ver se tinha café, pegou uma xícara esmaltada verde e foi ao bule que tava no canto do fogão e tomou o restinho de café morno que havia sobrado do café da manhã. Tava de plano feito de dar uma pescada desde manhã, e o engraçado é que sempre levava sua espingarda de dois canos e o embornal com pólvora, chumbos, buchas e escorvas pra recarregá-la se fosse preciso e também nunca deixava de chamar uma pessoa pra ir de companhia. Mas nesse dia se esqueceu da espingarda e na hora não havia ninguém pra chamar, portanto, desceu sozinho pra beira do rio. Aliás, não foi sozinho, estava acompanhado do Xavante, cachorrinho amarelo admirável por ser de grande sabedoria, e que o acompanhava pra todo lado que ia.

Chegou lá, pegou a canoa; a canoa era grande que parecia um batelão. A canoa estava amarrada num pezinho de ingá às margens do rio e assim que Zé começou a desatar a cordinha de nylon Xavante pulou pra dentro e sentou se num cantinho da canoa, os olhos fitados no horizonte brilhavam de felicidade contemplando as águas do rio que desciam serenamente. Abanou a calda mostrando alegria quando viu o companheiro entrar e se agasalhar dentro da embarcação. Zé remou mais ou menos trinta metros do barranco, não precisou muito esforço, pois as águas estavam mansas e cada remada que dava a canoa deslizava fácil indo quase sozinha. Procurou um lugar mais fundo, e lá ficou sossegado e entretido na pescaria, porque ele jogou uns punhados de farelo de milho na água e peixe começou a pular pra tudo que era banda, pequenos, mas a promessa de levar um bocado deles pra casa era boa. Lambaris, campineiros, piaus, canivetes, e outras espécies, principalmente peixes de porte pequeno, porque tava difícil peixe grande naqueles dias devido as águas rasas por conta da estiagem.

Isso foi num ano de seca extrema, a estiagem era das grandes, as águas do rio estavam baixas, e em muitos lugares dava pra ver a areia e os pedregulhos no fundo do rio. Uns quarenta metros abaixo via se umas pedras negras enormes que pareciam existir ali há milênios, mas sempre estiveram submersas, ninguém sabia delas, porem estavam agora expostas, todo mundo que ia pra beira do rio ficava impressionado com aquilo, nunca imaginava uma coisa daquelas, tinha umas que eram achatadas e formavam planícies imensas, parecia uma mesa em tamanho gigante, outras de aspectos pontiagudos, certamente lapidadas pelas correntes das águas durante séculos, delas de pontas enormes semelhantes às torres das igrejas, e assim como as torres, elas subiam majestosas em direção ao firmamento e pareciam em silenciosas orações comunicando se com o céu. Enfim, um cenário impressionante formado por aquele conjunto de rochas negras de formatos os mais irregulares e excêntricos que olhando bem parecia o esqueleto do rio grande. Obra da natureza.

Zé estava admirado daquele cenário jamais visto, e por isso, de vez em quando desviava a vista do que tava fazendo e ficava tempo contemplando a irreverência da natureza ali naquele lugar. Estava entretido olhando para os rochedos quando de repende Xavante começou a latir. Latia muito e se esbravejava, ficou em pé na beira da canoa, rosnava com ferocidade, os pelos das costas até a ponta do rabo estavam ouriçados, os dentes à mostra e o corpo esticado como se quisesse pular na água e rumar pra uma das pedras onde estava vendo alguma coisa. Era uma base de três pra quatro da tarde, sol quente ainda, Zé arrepiou os cabelos dos pés à cabeça, ficou pasmo com o que tava vendo, não queria acreditar, pois uma criatura esquisita, corpulenta, preta, parte do corpo cabeludo, forte, a cara parecia de gente, e tava deitada sobre uma daquelas pedras planas tomando descontraidamente seu banho de sol. Foi um susto, pois, a criatura, cujo aspecto pavoroso causava realmente muita estranheza, e na mesma hora foi tirado da cabeça tratar se de gente pescando ou nadando ali naquelas horas. Zé ficou emocionado e entendeu no mesmo instante tratar se do nego d’água, personagem lendária de muitas estórias encantadas que ouviu dos mais velhos quando ele era menino talvez com uns cinco anos de idade. O povo ali dos colodinos contava muitas estórias desse nego d’água. Acontecia de gente lá do tope do morrinho acima do pé de jenipapo avistar lá no meio do rio algo nadando só com a cabeça de fora, e já chegava alarmando que tinha acabado de ver o nego d’água. Mas ali agora havia uma diferença, pois o monstro que ilustrava as estórias que marcou sua infância e permanecem indeléveis em sua imaginação agora estava ali na sua frente, não era estória de pescador, era algo palpável, concreto, coisa de verdade. O monstro arribou a cabeça lentamente, olhou para os lados, não fez conta da presença do canoeiro e tampouco do cachorro que continuava esbravejando, deu uma espreguiçada e aí pereceu realmente encantado assim como era nas estórias que ouviu nos tempos de criança. Num piscar de olho ele astutamente deslizou se para dentro do rio, e aí Zé se encabulou de vez, pois mesmo sem ter desgrudado a vista dele pra nada não conseguiu ver a hora que entrou, não ouviu qualquer barulho e sequer percebeu qualquer vertigem de seus movimentos. Simplesmente desapareceu, e desapareceu de uma forma muito misteriosa. Zé ficou aborrecido por não ter se lembrado de trazer como sempre fazia a sua espingarda de dois canos, pois se tivesse com ela ali, daquela distancia teria acertado em cheio um tiro naquele bicho.

Nessa hora Zé lembrou se de uma que um velho pescador contou, fazia mais de dez anos isso, o velho já tinha até morrido fazia tempo, sobre três jovens nadando num córrego que desaguava no rio grande logo depois do bebedouro. O córrego era imenso e no encontro com o rio o local ficava largo, bem espraiado, todavia, por causa do embocar do rio rasgão à dentro havia lugares de águas profundas e a uns quatro metros da beira desse córrego havia uma rocha alta e enorme. Essa rocha tomava conta de um pedaço grande do rio ali naquele lugar, e ela era tão grande que dava pra pessoa andar em cima dela, e alta, lá do finalzinho até bater na água dava de sete pra oito metros. Realmente um lugar bom pra quem gosta de aventuras, e quem gostava de dizer isso era o finado seu Ataliba, o velho pescador que gostava de ir lá pra casa nas noites de luas claras e sentar num velho banco de madeira debaixo de um pé de laranja, rodeado de gente, e passar horas e horas contando causos sobre coisas do lugar.

Todo mundo falava a mesma coisa sobre a exuberância e a beleza daquela rocha solitária ali no meio daquele ermo d’água formado pelo rio grande e seu afluente. O povo gostava de banhar ali, principalmente por conta dessa pedra, subiam lá em cima e saltavam a adrenalina ia a mil, e os gritos de alegria ecoavam ao longe.

Entretanto, foi ali que ocorreu uma tragédia horrível que abalou o lugar, comoveu muita gente e deixou os familiares e amigos de um desses jovens de corações sangrando, tristes e amargos pelo resto de suas vidas. Foi numa tarde linda, muito sol, os três jovens faziam algazarras, brincavam, pulavam, mergulhavam, enfim, estavam vibrantes e felizes da vida. De vez em quando de corpos úmidos aproveitavam pra descansar, tomar um pouco de sol e conversar lá no alto da pedra; os olhares circunvagavam ao longe em contemplação enquanto falavam sobre a beleza das árvores, os perfumes das flores, o mistérios das águas, a firmeza das rochas, enfim, o quão sublime, belo e místico são as obras da natureza. E foi num desses olhares que um deles avistou lá em baixo numa curva do córrego onde havia outra pedra bem menor, e o povo nunca ia pra lá, gostava mesmo era dessa da boca do rio. Todavia, nessa hora algo em cima dessa outra chamou a atenção de Brígido. Brígido ficou curioso com o que tava vendo, botou a mão direita sobre os olhos e passou tempo reparando pra ver se dava de entender o que era aquilo. Chamou os outros dois, mostrou, eles também pelejaram pra ver se enxergava o que era, contudo, sobre a rocha escura batiam os raios do sol quente daquelas horas, as vistas embaralhavam se, e ninguém conseguiu ver nada direito. Mas concordaram tratar se de algo estranho, talvez um bicho tomando banho de sol ali sobre a rocha. Enfim, deixaram pra lá e voltaram aos mergulhos.

Passaram se horas aproveitando o máximo do passeio. Houve uma hora que os três numa euforia extasiante subiram correndo e foram até no finalzinho, num cantinho bem espremido e de acesso difícil, esse talvez o mais ousado dos mergulhos. Lá se ajeitaram e se abraçaram, pois dali onde iam pular agora requeria cuidados, pois corria o perigo de baterem em outras partes da rocha e se machucarem e por isso procuraram sintonizar bem o salto, e com espírito de irmandade, explodindo de alegria, lá se foram de ponta cabeça num mergulho bem longo. Até aí correu tudo bem. Entretanto nunca pensaram numa fatalidade daquela. Aquele mergulho foi a coisa mais trágica que podia acontecer, uma coisa horrível até de se imaginar, pois um deles deu ali naquele momento o último mergulho de sua vida, e foi se embora pra nunca mais voltar à esse mundo.

Contudo, os outros dois enquanto não perceberam a trágica situação, depois de terem caídos na água e se separarem, deram mais umas braçadas enquanto comentavam a delicia daquele salto. Estavam empolgados com a adrenalina daquela aventura e no mesmo instante combinaram de repetir, e gritaram, vamos de novo, é bom demais da conta, e voltaram correndo e subiram para o topo da pedra, para o mesmo lugar de onde haviam saltado antes. Na hora nem perceberam, mas logo notaram que tinha alguma coisa de errado, pois o mais jovem deles não estava ali. Pensaram que tivesse de brincadeira, fazendo gaiatice, mas infelizmente não era nada disso e o tempo começou a passar e dar preocupação. Foram ficando angustiados, tudo parecia sombrio, o coração começou a palpitar coisa ruim e de repente um desespero danado. E aí não aguentaram, danaram se a gritar - Joubert! Joubert! Jooooubert! Pelo amor de Deus Joubert, para de brincadeira, responde logo. Gritavam sem parar e ao mesmo tempo, e gritavam o mais alto que podiam. Todavia, como reposta apenas os ecos tristes dos próprios gritos lá atrás duma serra na outra banda do rio. Às vezes paravam e ficavam quietinhos na esperança de ouvir alguma coisa que acabasse com aquela aflição horrível, mas nada, até as águas pareciam denotar algo trágico e suas correntes murmuravam silenciosas e com tristeza. Ouviram de repente um barulho dentro d’água, olharam ligeiro na esperança de Joubert aparecer, mas qual era um Martinho pescador alheio ao sofrimento deles e saindo alegre de um mergulho com um peixe nas unhas e se assentando na ponta de um pau seco no meio do rio que se balançava por causa das correntezas e começou ali a devorar sua presa. Quase na mesma hora, lá mais na frente num garrancho seco enganchado no meio do rio, suas pontas balançavam por causa das correntezas e assentado num de seus galhos um socó olhava atento para os lados, invejou se do Martinho pescador e voou feito uma bala e fez seu mergulho e retornou com uma piaba nas unhas, se ajeitou novamente no garrancho e começou tranquilamente fazer ali sua refeição. O sol deu sinais que ia se por e uma penumbra escura acompanhada de um ventinho frio batia sobre as águas, e isso deixou os meninos de corações abafados. Estavam quase roucos de tanto gritar, pararam um pouco e aflitos ficaram prestando atenção pra ver se ouvia alguma coisa que denunciasse qualquer sinal do companheiro. Olharam pra todo lado, mas nada, e foi nesse justo momento que Brígido, o mais velho dos três, sentia se o responsável por aquele passeio às escondidas dos pais e estava apreensivo, olhava pra toda banda com muita atenção, e ao olhar pra baixo, bem no pé da rocha, deu um grito tão medonho e estarrecedor que o outro se espantou de um jeito que por um trisco de nada teria caído dentro d’água. Pensou que alguma fera o tivesse atacando, estava pálido, tremia muito, o semblante era de horror, não queria acreditar, mas infelizmente ali beirando a rocha, apesar da pouca claridade, ainda deu pra ver, a água estava vermelha de sangue e coberta de tiras do calção que Joubert vestia. Não queriam acreditar, a situação era angustiante, porem deixava claro que o companheiro que instantes atrás estava abraçado com eles, alegre e cheio de vida, agora não estava mais nesse mundo, havia sido morto de uma maneira horrível por algum monstro ali dentro das águas. Tantas imaginações angustiantes e só em pensar que antes dele morrer passou por momentos horríveis, sem forças pra se debater, sendo levado para o fundo do rio, agonizando se ao afogar, meu Deus, quanta aflição e dor ao ser estrangulado e morto por algum monstro ali dentro das águas. Foram às loucuras, não sabiam o que fazer, e já era tarde, seus corações dispararam, estavam profundamente infelizes, arrasados, e infelizmente não havia nada que pudessem fazer. Em meio aquele momento de pavor, de novo Brigido se espantou, era outra situação de desespero, olhava horrorizado e ao mesmo tempo mostrava para o companheiro um bicho esquisito ali pertinho virando cambalhotas dentro d’água. Ia ao fundo e voltava à superfície e quando voltava abria a boca e dava um urro medonho mostrando se agitado e furioso como querendo atacá-los. Na mesma hora veio lhe a mente o vulto que tinha visto poucas horas atrás sobre a pedra lá na curva do córrego, pois, embora na hora não tivesse falado, mas imaginou tratar se de um nego d’água. O bicho era ágil, fazia manobras indo ao fundo e voltando à superfície. Entraram em pânico, pois não havia mais dúvidas que aquele monstro havia pegado Joubert, levado para algum lugar fundo e o matado de uma forma horrível. E o bicho era astuto, fez aqueles movimentos ali e de repente sumiu.

Todavia ficaram desconfiados e continuaram assombrados, não sabiam o que fazer, e nisso começou a escurecer, a noite não tardava, temia ficar ali em cima da rocha e quando anoitecesse o monstro viesse pra atacar, e havia a outra situação não menos desconfortável e perigosa, a de ter que criar coragem e pular na água e nadar a distancia de uns quatro metros da pedra até o barranco. Pra sair dali não tinham outra escolha a não ser essa de pular na água, não havia outro meio, ainda gritaram desesperados por socorro numa vã tentativa de ser ouvido por alguém que os transportassem da pedra até o barranco numa canoa, mas infelizmente de novo ficaram incomodados com o tormento de suas próprias vozes que ecoavam tristes lá atrás da serra na outra banda do rio.

A situação dava lhes calafrios e pressentimentos de morte, pois só imaginavam que quando pulassem dentro d’água pra fazer a travessia o monstro vinha e acabava com eles na mesma hora. Os pensamentos confusos sem saber se ia ou não ia e nisso o tempo escureceu, e não vendo outra saída Brigido gritou; vamos embora, e saltou logo, o outro ainda quis se esquivar, mas veio na mesma hora o pensamento do sufoco que ia passar se ficasse ali sozinho e não contou coversa, saltou em seguida. Meteram os braços, sempre com a sensação ruim de que o bicho estava atrás deles e podiam ser pegos e arrastados para o fundo do rio e estraçalhados no mesmo instante, do mesmo jeito que o bicho fez com o companheiro pouco tempo antes. Mas foram ligeiros e nesse ponto pode se dizer que foram felizes, pois chegaram à margem e subiram no barranco sem nenhum incidente. Ajoelharam se em cima de uma graminha e se benzeram fervorosamente fazendo o nome do Pai agradecendo por estarem vivos. Vestiram se e saíram às carreiras, estavam de corações partidos, conversavam de vez em quando pelo caminho, mas as conversas eram de apreensão, lamentos e tristeza profunda. E sem falar na missão difícil que tinham de dar a notícia para os parentes de Joubert. Chegaram, rodearam, rodearam sem querer dizer, todavia estavam de um jeito que o povo percebeu logo que tinha acontecido alguma coisa e perguntaram logo pelo menino e aí tiveram que contar tudo que tinha acontecido. Foram gritos e choros pra toda banda, a mãe e umas irmãs do menino não aguentaram e desmaiaram se, um dos irmãos começou a dar murro no ar de tanto desespero, e logo juntou se a uns amigos, se armaram e correram apavorados pra beira do rio. Chegaram lá e vasculharam tudo, mas o lugar era calmo, as águas desciam serenas e tudo parecia normal. Alumiaram bem pra ver se encontravam alguma coisa, porém sem êxito, pois não havia mais as marcas de sangue e tampouco os pedaços da roupa do menino. As correntezas tinham se encarregado de levá-los pra bem longe dali. E não viram também quaisquer vertigens do monstro assassino. Sobre as águas pairavam grandes mistérios e deixavam marcas profundas de tristezas aos parentes e amigos do menino Joubert que deixou muitas saudades, pois ainda na flor da idade foi para nunca mais voltar.

Berias, o irmão mais velho e os amigos voltaram pra casa frustrados e com tanta tristeza que quase não conversavam, mas o coitado do irmão que por sinal era padrinho de batismo de Joubert e a quem era carinhosamente muito apegado, chorava tanto que dava dó. Todo mundo que ficou sabendo do acontecido falava pela mesma boca tratar se do nego d’água que virava e mexia fazia coisas assim nas beiradas do rio grande. Só podia ser ele, afirmavam.

Seu Ataliba passou a vida toda ali nas beiradas do rio grande e gostava muito de contar essas estórias e quando ele morreu o povo sentiu foi muito a falta dele por conta disso.

Mas o importante é que as estórias vão indo de gerações a gerações e sempre vivíssimas mesmo com o passar do tempo.

Domingos Andrade
Enviado por Domingos Andrade em 06/08/2019
Código do texto: T6714104
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