COLODINOS - CAPÍTULO 02

Todavia, a partir do começo dos anos sessenta começaram a se mudar dali, e de lá pra cá passou se mais de meio século, e ao longo desse tempo ocorreram mudanças profundas nos mais variados aspectos, entretanto, todos continuam amando e jamais esquecem o cantinho onde passaram uma boa parte de suas vidas. Apesar da saudade do lugar, nunca mais tinham voltado ali pra reunirem se, e juntos contar as tantas estórias sobre coisas que aconteceram lá naqueles tempos.

O lugar fica ao extremo sul do estado de Minas Gerais, às margens do rio grande, encravado entre morros e serras, e na época era rodeado por matas pântanos, córregos e lagoas, e muitas vegetações nativas, entre elas o capim gordura e o Jaraguá que havia em abundancia e formavam as pastagens para criação do imenso rebanho da Usina açucareira Passos na repartição administrativa fazenda taquarussu. Mas a principal cultura era a cana de açúcar; nos morros, nos baixadões, às margens das matas, nas encostas do rio grande, enfim, pra todas as bandas que se olhasse eram canaviais a perder de vistas, áreas imensas eram densamente cobertas de um verde escuro ou verde mesclado com o tom esbranquiçado por conta dos pendões de cana esvoaçando se pelos ares e indicando as partes onde havia lotes maduros e no ponto de corte. Havia diversas variedades de espécies, e a mais comum, e a que havia em abundancia era a cana branca, bem rústica, dura, resistente às brocas e palhas mais trabalhosas pra soltar na hora do corte. Porém, de excelentes resultados nas moendas, e por essa justa razão ganhava destaque ocupando maior área plantada com relação às demais. Depois as outras, a POJ 27, essa era roxa, encorpada, bonita, e preferida dos cortadores na hora do corte porque era macia e suas palhas ao contrário da cana branca se soltavam facilmente. Tinha também a POJ branca, mais rara essa, de porte pequeno e não muito grossa, porem ainda mais macia do que a roxa e doce como mel. Quando alguém vindo à tarde do serviço com o estomago roncando e via uma moita delas na beira da estrada, não resistia, pegava umas duas ou três e se na hora não tivesse outro meio a descascava mesmo com os dentes, porque era macia, e tocava a viagem matando a fome e se deliciando com o sabor diferenciado que ela tinha das outras.

Muitos diziam que o sabor dela parecia com o da cana caiana, embora essa última fosse difícil de vê-la, lá de quando e vez alguém aparecia com algumas delas, mas trazidas de plantações em fazendas vizinhas porque ela não era realmente cultivada nas terras da usina.

Pois esse lugarzinho tem muitas estórias que continuam vivíssimas nas imaginações e vão mexer sempre com os sentimentos de todos dessa família mineira, bem como de seus parentes e amigos, não obstante passado todo esse tempo, mais de cinquenta anos, obviamente muitos já partiram se, e outros tantos daquela época hoje em idades bem avançadas, entretanto, quando vem à lembrança, são todos tomados por profundo sentimento de nostalgia, muita vontade de sentir de novo aqueles mesmos doces momentos de felicidades que viveram lá quando eram crianças.

Contudo, a partir dessa época foram se dispersando, primeiro os maiores, logo os outros, e por fim quase todos, e indo pra outros lugares, pra cidade de Passos, pra barragem de Furnas em construção naquela época, ou pra lugares bem longe dali, onde houvesse obras no ramo da construção civil, geralmente nas barragens hidrelétricas, ou então outros seguimentos de prestações de serviços, e almejando naturalmente engajarem se em trabalhos que aprendessem ofícios que lhes proporcionassem obviamente dignas e melhores condições em suas vidas.

Durante os contatos para planejar o encontro todos sem única exceção mostraram se plenamente de acordo e sempre manifestando efusivo desejo pela realização do evento.

Logo no inicio da semana santa começaram a chegar, uns primeiros, outros depois, mas quase não paravam dentro de casa, iam se entrosando e saindo de turmas em conversas animadas, reviravam todos os cantos e recantos do lugar, uns pra conhecer, outros pra matar a saudade dos tempos que moraram ali. E à noite, depois do jantar, deles exaustos, pois embora agradável, a rotina naqueles dias era intensa e muito cansativa. Entretanto, permaneciam firme pra participar, pois era notável haver em todos eles ardente desejo de relembrar as estórias do lugar. Os jovens ouviam atentos, faziam muitas perguntas, estavam cheios de curiosidades, e enquanto isso os mais velhos procuravam lembrar coisas engraçadas acontecidas naqueles tempos antigos.

Uns permaneciam sentados à mesa grande onde havia sido servido o jantar, mas havia aqueles vindos de outras regiões, não acostumados ao frio que procuravam se sentar no rabo do fogão de lenha pra se aquecerem, mas a maioria se ajeitava era sobre o banco de madeira de uma enorme prancha rústica que os mais velhos diziam que era feita de uma imensurável arvore de ipê roxo; e ela transformava se em banco porque estava sobre dois toros bem espessos, numa altura aproximada de setenta centímetros e recostada à parede da cozinha.

Naqueles fins de tardes o tempo ficava ameno, e à noite o frio apertava por causa de uma brisa que caia lá fora. Todavia, dentro de casa o clima era sempre aconchegante, pois alem dos tições de fogo queimando lentamente na boca do fogão, havia também uma vasilha velha grande no meio da cozinha, repleta de brasas e ajudava aquecer o ambiente, e o adequando agradavelmente praquela conversa gostosa que se iniciava à boca da noite, logo depois da janta, e não tinha hora certa pra acabar. Aqueles vindos de regiões áridas sentiam a mudança de clima, pra aguentar ficar ali durante a noite procuravam se agasalhar embrulhando se em cobertores, deles que deixavam só a cara de fora, mas não iam pra cama, pois estavam ávidos pelos detalhes das estórias de seus pais e antepassados.

Passavam noites inteiras em rodas de conversas contando os causos, falando sobre os parentes, amigos e os vizinhos da época; o avô Benedito, a avo Joaquina, os tios, Manelzinho, Divino, Vicente, Vardinho, Sebastião Lé, Pedro Lé, Altino, Juca Aleixo, as tias Lezinha, Eliza, Cidinha, tia Ana, dezenas de sobrinhos e primos e outros familiares dessa estória; assim como há também boas recordações das pessoas conhecidas, eram: Zé do Bernardo, Gasparzinho, Zé Pedro, Zé Vicente, Messias e o Orlando do Bento, Lica do Bento, Onofra, dona Esperança, Sabino, Dona Maricota, João Machado, João Biano, Joaquim Biano, Seu Quinzinho, Seu Joãozico, Joaquim Afonso, Tião Luciano, dona Maria Brígida, João Brígido, Seu Ponciano, Nadir filho do seu Ponciano, João Ponciano, seu Bernardo e dona Margarida, enfim, essas e tantas outras pessoas, inclusive de muitas das quais imaginava se que nunca ia se separar, no entanto, desde então não mais se viram ou sequer tiveram noticias sobre pra onde foram, ou mesmo se ainda vivas ou não.

Lá pelas nove, dez da noite, todos alegres com tantas estórias, de repente as mulheres pararam de conversar e começaram a cochichar umas com as outras, pois estavam atentas pra necessidade de fazer alguma coisa para o povo comer, combinaram e começaram a pegar logo seus aventais feitos de pano de sacos de açúcar alvejados com anil e de bordados interessantes, amarraram lenços nas cabeças e puseram se de novo na labuta. Pegavam cuias e bacias, os ingredientes; açúcar, sal, fermento, cravo, canela e erva doce, galhinhos de funcho, quebravam muitos ovos que eram tirados de uma velha cesta de taquara que estava debaixo de uma cama no quarto adjacente à cozinha e preparavam baciadas de massas pra quitandas.

Depois de pronta, a massa de bolo era derramada dentro das formas feitas de latas de querosene, porem antes forradas com folhas de bananeiras e untadas com gordura de porco para que as massas não agarrassem no fundo das vasilhas. Já as de biscoitos, broas e os pães de queijo, era a mesma coisa, mas antes pegavam mão cheia de massa, davam mais uma amassadinha e com um jeitinho especial cada qual ia ficando nos seus respectivos formatos e sendo também levados ao forno que estava bem aquecido e pronto pra recebê-los. E não demorava começavam a tirar fornadas de biscoitos de polvilho, pães de queijo, bolos e broas de fubá, todos quentinhos e cheirando, e sendo colocados dentro de uma peneira de escolher arroz, cobertos com um pano alvíssimo de várias estampas em cores alegres bordadas à mão. Punha a peneira recheada de quitandas em cima da mesa acompanhada do café moído e coado ali na hora, exalava fumegante aroma agradável pelo bico do bule esmaltado na cor branca com bonitas estampas coloridas em ramalhetes de flores azuis e vermelhas. Tudo simples ao estilo da roça, e a mesa contribuía muito pra isso por causa da toalha grande que a encobria, era alva e em vários pontos dela haviam diversos desenhos feitos de bordados em cores vivas reproduzindo muitas mesas, e sobre estas havia cestas de frutas, bandejas com quitandas, vasilhas de leite, de café, e ao redor uma família grande, muitas crianças, eram pessoas simples, mas pareciam felizes da vida reunidos ali tomando o café da manhã. O cenário lembrava uma bela manhã de domingo.

O povo do encontro não aguentava o cheiro delicioso das quitandas e começava a se mexer indo à bandeja retangular repleta de xícaras e canecas igualmente esmaltadas e nas cores e estampas combinando ao estilo do bule de café que estava no centro da mesa. Todos deliciavam, o sono desaparecia; e a conversa continuava sempre comovente e entabulada para falar desses conhecidos e tantos outros, e também pra relembrar as estórias, entre inúmeras delas estão as do rio grande, das matas, das roças, das pescarias, das caçadas, das arapucas, as brincadeiras dos tempos de infância; pular corda, rodar pião, rodar piorra entro de uma bacia, juntar gravetos e fazer debaixo de uma sombra no terreiro da cozinha um curral de brinquedo e colocar dentro dele melão de são Caetano ou sabugos de milho, esses eram os bois, as vacas acompanhadas dos bezerrinhos, enfim, onde menino se esquecia do tempo passando tardes inteiras entretido naquela brincadeira gostosa. Outros pegavam uma colher velha dessas de sopa, amassava deixando parecida com uma colher de pedreiro, fazia uma massa de barro, juntava cacos de telhas e passava tempos e tempos construindo casas de brinquedo semelhantes as de verdade que viam os pedreiros fazerem. Preparavam água de sabão dentro de uma caneca, cortava um talo de abobora ou de mamona e perdia se no tempo soltando bolas coloridas ao ar. Delas enormes e multicoloridas que se desprendiam do canudinho e iam por longas distancias. Ficavam maravilhados. Faziam e brincavam com peteca, bolinhas de vidro, andavam de tamancos – pernas de pau –, rodavam corre pio, jogavam biloque ou brincavam de correr pelos terreiros montado num cabo de vassoura encabrestado com tiras de pano ou de embira, segurando firme na mão direita um chicote feito de tiras de casca de pés de bananeiras, mas trançado à semelhança dos relhos de verdade, correndo e fazendo uma zoada semelhante ao tropel de cavalo, galopando, assobiando e gritando como se a tanger um rebanho, imitando Zé modesto, Antonio neca e outros cavaleiros do lugar. Preparavam grude e recortavam pedaços de papel em forma de hélices, as prendiam em lascas finas de taboca e o resultado seria um papa vento e com os quais corriam por longas distancias brincando de avião.

Outros rodavam arcos de ferro com uma manivela feita de um arame grosso ou pneus velhos indo se e voltando por longas distancias fazendo uma zoada semelhante aos carros e os caminhões carregados de cana. Brincavam de pique, jogar bolinhas de vidro, o jogo de pedrinhas ou o de disputar partidas de futebol no terreiro da sala às bocas de noite ao clarão da lua com uma bola engraçada feita de meia de algodão, velha, cheia de trapos e amarrada pela boca. Também a brincadeira de cada um pegar durante a noite um tição de fogo e balançá-lo de um lado pra outro no ar e chamando “vagalume tem - tem seu pai tá aqui e tua mãe já em vem” para atrair os vagalumes de luzes verdes em meio a milhares de lacrais com luzes amareladas intermitentes voando no meio da escuridão da noite. Os vagalumes surgiam no meio da escuridão lá nos altos dos pastos, ou do meio das matas, mas vinham realmente atraídos pela claridade dos tições em movimento, e ao chegarem se descontrolavam e eram pegos pelos meninos que iam alegres brincar fazendo deles automóveis de luxo.

Muitas vezes, já tarde da noite, todo mundo lá fora pelejando pra pegar vagalumes, quando de repente riscava no céu uma bola amarela de brilho intenso, descia veloz e caía lá atrás da serra nas matas dos colodinos. Corriam pra dentro de casa pra falar para os outros que tinham acabado de ver a mãe do ouro. Muitas vezes acontecia de cair estrelas, mas todo mundo ficava murcho, não dizia nada, pois segundo a lenda ali no interior se falasse, no outro dia já amanhecia com uma verruga bem grande e aí pra tirar dava trabalho.

Lembranças também da meninada às tardes de domingo numa sombra ao canto do terreiro da sala assistindo com alegria os adultos entretidos jogando peteca ou no jogo de maias! Quando não eram esses, era o jogo de baralho, de onde se ouvia pancadas na mesa da sala, gritos desafiadores “truco ladrão” e às vezes os outros armados com cartas de peso como o sape, sete copas e a espadía, retrucavam e em seguida risadas de satisfação puxando os grãos de milho para o seu monte ou marcando mais um jogo e completando a queda.

Recordações dos animados bailes de sanfona nas roças aos finais de semanas, bem como dos encontros entre moradores do lugar aos fins de tarde depois dos serviços e indo até certas horas da noite em conversas animadas regadas a goles de pinga, doses de capilé nas vendas às margens da rodovia que ia de Passos pra Furnas, dos vendeiros Antonio Borges e o Manoel Cardoso. Ou nessa outra, a do Nivaldo da dona Janete que ficava num lugar, depois da colônia casas secas e já fora das terras da usina.

Havia diversas fazendas vizinhas às terras da usina, delas centenárias, a da família Soares que ficava na beira da rodovia e era predominantemente dedicada ao cultivo de café, a Borges e a do Diu, focadas à época a criação de gado, principalmente o leiteiro, e a do Eloi que ficava ao pé de uma serra e à margem de um córrego cheio de pedras, assim outras mais, do Baldini, do Clareta, do Alvino, enfim, e nelas, principalmente nas casas de seus colonos aconteciam grandes festas, a maioria comemorando celebrações de casamentos, e nesses casos o dono da casa corria com antecedência de moradia em moradia de toda a redondeza convidando o povo com vistas a garantir o sucesso do baile que era animado noite inteira pelas musicas da época, tocadas pelo sanfoneiro que fazia se acompanhar de bateria, pandeiro, chocalho e outros instrumentos improvisados. Serviam jantar a vontade nessas festas, matavam capados e galinhas, e quando era de gente remediada matavam até de duas vacas. Havia muitos doces, bolos e outras iguarias, mas o principal eram os licores e os quentões que serviam pra rebater a friagem e fazer o povo perder a vergonha e se soltar na dança.

Com uma lona de encerado ou pano de colher arroz era armado de improviso um grande toldo, e o palco de dança era o terreiro de chão batido que recebia iluminação de dois ou três lampiões a querosene pendurados nos esteios do toldo. Casais de namorados procuravam os cantos mais distantes, onde as luzes dos lampiões não os alcançassem, ocultando se no escurinho e passavam horas e horas, às vezes a noite inteira, agarrados em beijos e abraços e fazendo planos de serem os próximos a darem uma bela festa de seus próprios casamentos. Enquanto isso, animado ao som do batuque o povo requebrava o esqueleto e ia até o dia clarear.

Enfim; boas lembranças daquela época que proporcionam prosa agradável no encontro, e resgatam tantos momentos de felicidades que todos viveram naquele lugar há muitos anos atrás.

Domingos Andrade
Enviado por Domingos Andrade em 30/07/2019
Reeditado em 30/07/2019
Código do texto: T6708278
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