COLODINOS - O ENCONTRO (CAPÍTULO 01)

Eram fins dos anos sessenta quando uma família mineira que vivia num recanto do interior de minas começou a se dispersar, a maioria jovem, eram muitos, saiam indo pra lugares onde tinha noticias de emprego, muitos desses lugares em terras distantes, as condições quase sempre difíceis, viajando de trem de ferro ou mesmo em carrocerias de caminhões, pouco dinheiro, muitas das vezes levando matulas pra comer durante a viagem, sem nenhuma garantia de êxito, mas aventurando se em busca de trabalhos que pudessem aprender ofícios que lhes proporcionassem melhores condições de vida. Não queriam passar a vida toda pelejando ali na roça. A mãe pedia pra não irem, reclamava, sofria muito, chorava, mas apesar de muita dor no coração deixava tudo pra trás e partiam, despedindo se com tristeza e prometendo escrever carta mandando noticias assim que pudessem.

Muitos anos se passaram; mais de cinquenta, e não obstante o passar de tanto tempo, nunca deixaram de acalentar o sonho de um dia voltar a se reunir todo mundo lá na fazenda taquarussu pra visitar o lugar às margens do rio grande, os colodinos, recanto querido ao sul do interior mineiro onde viveram seus belos tempos de criança.

Entretanto, num domingo de inverno, tarde da noite, durante uma longa conversa a distancia entre dois dos irmãos dessa enorme família mineira que há anos não se viam, surgiu a ideia do encontro. Falaram longamente sobre todos da família, que seria uma alegria imensa se um dia pudessem reunir todos lá no pacato lugarzinho onde moraram por tanto tempo, visitar os parentes, os conhecidos da época, a maioria deles já velhos, e outros de certeza já falecidos; a vontade de rever todo mundo, abraçar, contar as estórias dos tempos de criança, falar das exuberantes estórias de suas próprias vidas por onde andou durante todo esse tempo, relembrar causos e lendas que os mais velhos contavam, bem como episódios relevantes acontecidos de fato com alguém na época, e que ficou nos anais das estórias do lugar. Enfim, falaram muito também sobre o desejo de irem aos inúmeros lugares onde viveram grandes momentos de alegria, momentos que permanecerão indeléveis em suas memórias pelo resto de suas vidas.

Quando foram ver já era de madrugada, concordaram em se despedir e desligarem pra dormir porque já era muito tarde. Durante a conversa ambos disseram que chovia copiosamente há dias, e no momento da conversa chovia tanto de um lado como do outro, porem no final, quando desligaram, ela havia afinado, mas apesar da chuva fina que ainda caía sobre o telhado e seria um acalento pra ajudar a embalar o sono, eles não conseguiram sequer colar os olhos. Pois ficaram pensando na ideia do encontro que os havia deixados emocionados sobre maneira, e bastante entusiasmados. Portanto, ficaram pensando que deveriam articular sobre a possibilidade de tornar a ideia real, e o quanto antes possível, assim como havia prometido pra si mesmos durante a conversa. Jamais deixá-la cair no esquecimento, jamais. A partir daquele dia foram conversando e envolvendo os demais, não houve resistências, todos gostaram e aderiram com alegria, começaram a conversar muito pelas redes sociais, contudo não deixava de haver algumas peculiaridades sinalizando dificuldades, mas eram superadas porque o tema mexeu com todo mundo, ganhou força, falou alto o sentimento de família e todos começaram a se esforçar para encontrar uma maneira de conseguir participar; chegando se por unanimidade a conclusão de estabelecerem a programação do encontro para os dias da semana da páscoa daquele mesmo ano. Era inicio do mês de janeiro de 2015.

Seria a reunião de uma adorável família mineira que morou num lugarzinho pacato ao sul do interior mineiro e todos sentiam imenso desejo de voltar lá depois de passado mais de cinquenta anos para relembrarem momentos felizes que viveram ali nos seus memoráveis tempos de infância.

A princípio uns argumentavam que o tempo era muito pouco, porque estavam morando longe, deveria ser pelo menos uns quinze dias, mas por causa de compromissos pessoais de alguns, procuraram harmonizar de uma forma que findou prevalecendo mesmo à ideia de uma semana.

Mas tudo ocorreu de maneira excelentemente organizada e o tempo que parecia pouco foi o suficiente para planejamentos e organização para que ninguém ficasse de fora. E foi muito interessante, pois, acabou mexendo sobremaneira com os sentimentos de todos, e daquele dia por diante começaram a se comunicar pra falar dos preparativos, e à medida que iam se interando sobre como seria tornava se mais emocionante, pois o assunto sem duvida não era mesmo pra ser diferente, vez tratar se de algo inusitado, uma família grande que sentia imensa saudade de se ver, abraçar e conversar sobre tantas coisas da época, e quando menos se esperava, depois de passado tanto tempo, resolver se preparar e voltar com filhos e netos lá no pacato lugarzinho onde moraram, pra se reunirem durante o período daquela semana santa, poder visitar tantas coisas, irem aos inúmeros lugares que sentiam vontade de visitar, contar as estórias do lugar, e principalmente, relembrar os doces momentos de alegrias dos tempos de criança que viveram juntos ali.

O importante é que o encontro aconteceu realmente e tudo se cumpriu como haviam previstos, inclusive o período de duração estabelecido de no máximo uma semana, medida tomada consensualmente visando respeitar compromissos pessoais óbvios nos labores da vida de toda essa turma de parentes e amigos. O tempo que parecia escasso, no entanto foi o suficiente para a numerosa família de JJ Geduei deslocar se de suas moradas, muitas vindas de lugares longínquos para retornar ao sul de Minas Gerais e tornar concreto o sonho que a família inteira tinha de se reunir lá na fazenda taquarussu e ir visitar os colodinos, lugarzinho querido num recanto ao sul do interior mineiro, ás margens do rio grande, onde moraram por muitos anos “os Martimiano de Andrade” seus parentes próximos como avos, tias, tios, primas e primos, bem como tantos outros conhecidos da época.

No começo do encontro a surpresa foi muito agradável, pois todos que moraram lá naqueles anos já tão distantes revelaram guardar no fundo de seus corações doces lembranças, lembranças que permanecerão em suas memórias pelo resto de suas vidas, uma vez terem passados ali naquele lugar seus belos tempos de criança e adolescência.

E agora, depois de passado mais de cinquenta anos, a delicia de poder se reunir e passar noites inteiras acordados, sentados nos velhos bancos de madeira ao redor de uma imensa mesa rústica feita de uma prancha de jacarandá muito antiga, certamente tirada de uma árvore centenária tombada na região há mais cem anos, e ali naquele jeito mineiro bem descontraído reviverem momentos inesquecíveis de tempos atrás.

Todos alegres tomando café com biscoito de polvilho, pão de queijo, broas e bolos de fubá tirados quentinhos do forno ali na hora. Era engraçado, pois alem dos aposentos aconchegantes, o velho fogão de lenha era uma das coisas imprescindíveis e de suma importância para o conforto do povo no casarão onde todos estavam hospedados, pois ele ia sendo alimentado sempre com os tições de fogo, gravetos e muitos sabugos de milho, e ele além de aquecer o forno para assar as deliciosas quitandas, manter na trempe uma enorme chaleira de ferro com água quente, esquentava a rabina d’água para preparar o café moído ali na hora de aroma irradiante, servia também pra trazer um calorzinho agradável ao ambiente e produzir muitas brasas pra serem colocadas numas formas velhas de flandres no meio da cozinha pra aquecer e tornar o lugar bem apropriado para o povo ficar mais confortável praquela maravilhosa noite de prosa.

Conversa animada relembrando tudo que acontecia naqueles tempos, e principalmente matando as saudades contando os causos engraçados, as lendas que existiam sobre o rio grande e as matas ali do lugar, enfim, e também coisas que de fato aconteceram com algumas pessoas dali. Eram muitas estórias, e um mal terminava de contar a sua, outro já estava ansioso e a espera pra contar uma que acabara de se lembrar. Eram muitos causos; de fantasmas, assombrações, de casas e galpões antigos e mal assombrados, de caçadas, de pescarias, enfim, porem existia muitas coisas verídicas acontecidas com alguém dali na época e mexeu com o lugar naquele tempo e ficou pra sempre na estória da fazenda Taquarussu.

Ainda na fase de preparativos conversavam muito, cheios de curiosidades, muitas alegrias, boas expectativas, pois tratava se de algo inusitado, diferente, e lógico, muito; mas muito agradável. Muitos diziam emocionados que às vésperas do encontro não estavam nem dormindo direito de tanta vontade de ver chegar o dia pra arrumar as malas e viajar pra rever tanta gente querida, pois essa ideia de poder reviver as coisas do lugarzinho onde viveram há tanto tempo atrás era realmente comovente! Eram muitas risadas, bastante euforia, autêntico sentimento de alegria manifestado com muito entusiasmo entre todos da família, coisas do coração, e isso também entre aqueles que não se viam desde a tenra infância, e também entre tantos outros já nos seus mais de quarenta anos e que por questões do acaso infelizmente nunca tiveram a oportunidade de se conhecerem.

Pois os episódios em sua grande maioria tratam se de fatos interessantes que aconteceram entre o começo dos anos cinquenta até o finalzinho da década de sessenta, e sobre os quais todos certamente adorariam falar durante esse encontro, vez que ficaram indelevelmente marcados nas memórias dos mais velhos dessa grande e adorável família mineira e despertam nos jovens das gerações recentes, alem de muitas curiosidades, um forte desejo de visitar o lugar, indo aos vários pontos interessantes, conversar com os mais velhos, e conhecer as estórias dos seus pais e de seus antepassados.

Muitas risadas gostosas ao relembrarem as inúmeras adversidades do cotidiano daqueles tempos, das árduas jornadas de trabalhos, quando viviam descalços, vestidos em roupas bem humildes, muitas vezes de camisas cheias de remendos ou então rasgadas e os deixando com as costas quase toda expostas ao tempo, isso era o dia inteirinho, quando não era debaixo de chuvas era sob o sol escaldante, ensopados de suor tirando tarefas em capinas de lavouras, roçando os pastos, queimando, destocando e encoivarando as roças que eram feitas em capões de terras às beiras das matas, ou então agarrados numa enxada duas caras, bem amolada e encabada com guatambu, e fora a horinha do almoço o resto era metendo o maio o dia inteiro nas capinas dos grandes arrozais ou nas roças de feijão. Tinham as mãos grossas e calejadas pelo manejo das ferramentas. Outras vezes arriavam animais com carpideiras, pra revirar mais ligeiro e matar as ervas daninhas que por conta da força da terra vinham danadas, e se as deixassem comprometeria a colheita, e advindo com isso prejuízos incalculáveis.

Trabalhavam também com juntas de bois de carro puxando arado, nesse caso com vara de ferrão nas mãos e o dia todo gritando, afasta boneco, vem penacho, vamos boi, chocalhava firme a vara de ferrão e a boiada aprumava e ia numa distancia de umas duzentas e cinquenta braças mais ou menos, eram mais de dez juntas em cangas, os bois eram fortes e tinha muita força, o arado revirava a terra que era uma beleza. Moradores debaixo do chão como minhocas e tantos outros bichinhos pulando e correndo apavorados pra não morrerem, mesmo assim muitos morriam e quando não morriam esmagados pelo arado eram devorados por pássaros carnívoros como os gaviões carcarás, rebita rabo, bem ti vi e nuvens de outros pássaros em voos curtos vindo logo atrás brigando na disputa pela fartura de alimentos que vinha do fundo do solo. Os outros pássaros, embora famintos, alertados pela luzinha de seus instintos de sobrevivência, vinham desconfiados e mantinha boa distancia dos carcarás, pegando apenas sobras que eles deixavam pra trás, pois, na comunidade dos pássaros esses estavam no topo da cadeia alimentar e representavam ali na hora grande perigo aos demais. Acontecia de surgia cobras, muitas das quais venenosas, entretanto, os carcarás não perdiam tempo, com maestria e garras afiadas as pegavam; elas davam rabanadas pra todo lado, mas eles voavam para o topo de alguma árvore ali por perto com elas nas unhas e as devoravam com paciência. De quando em quando, lá do topo da árvore, arribava a cabeça meio enviesada olhando todo o entorno e dava gritos selvagens impondo respeito ao mundo à sua volta. Muitos passarinhos pequenos vendo aquilo pensavam bem e caiam fora de barrigas vazias, pois temiam escassear a comida ali ao pé do arado e eles revoarem pra cima deles de unhas e bicos e promover grande desgraça, ate porque eram muitos e seus ataques mortalmente infalíveis. Não valia a pena arriscar, avaliavam e se mandavam pra bem longe. Bandeavam em busca de sementes e frutas maduras num estirão verde de mata fechada existente sobre as altas montanhas rochosas no outro lado do rio grande.

Os camaradas, assim como os bois, indiferentes a tudo que acontecia, iam em frente, os candeeiros balançavam as varas de ferrão pra chocalhar as argolas presas na ponta do ferrão e produzir um tinido estridente que chamava a atenção dos bois de guia, e ao mesmo tempo gritava, afasta penacho, vem boneco, dessa vez era chamado o boi do outro lado porque era pra fazer a manobra pra esquerda e voltar. Os dois bois de guia, o boneco e o penacho eram bem calejados nos serviços, agiam em sintonia e harmonicamente, portanto eram poupados de qualquer judiação com as varas de ferrão. O máximo era o candeeiro levar a vara de ferrão de uma forma carinhosa na nuca próximo aos chifres daquele que tava fazendo a manobra. Eram tratados com excelência. Entretanto, com as outras juntas já não era a mesma coisa, principalmente com alguns novatos que davam trabalho, e nesse caso os candeeiros metia o ferrão sem dó pra eles aprenderem e também pra não prejudicar o rendimento do serviço. Quando chegava ao fim da terra que tava sendo preparada pra fazer a plantação, chamava de novo, porem agora era o boneco, pois desta vez era ele o responsável pela manobra, fazia com habilidade e virava de volta e o arado deixando pra trás toda revirada a terra escura e fértil nas várzeas à beira do rio grande no ponto um pouco abaixo do bebedouro. Esses bois faziam num dia de serviço o que nem trinta homens dos mais sacudidos conseguiam fazer. Os bois de guia eram mais experientes, e justamente por isso era a junta que vinha na frente pra guiar os outros, por isso o nome bois de guia. Eles eram fortes, na hora que eram chamados para fazerem a manobra arribavam as cabeças olhando de relance pros candeeiros como querendo dizer que haviam entendido a mensagem, ouvia se barulho de madeira contra madeira esbarrando nos canzis das gangas por causa da força que botavam nos pescoços pra puxar as juntas novatas e tocavam pra frente. No meio do percurso por vezes os candeeiros tinham que ferroar algum boi dos novatos que incomodados com todas aquelas traias em cima deles e ainda tendo que botar muita força por causa do arado sulcando fundo o chão, não era acostumado com aquilo, portanto não tinha jeito, estranhavam, pulavam e berravam de um jeito que parecia que tava morrendo davam cabeçadas nos outros pra tentar se livrar, caiam de propósito, mas qual, não adiantava nada, os carreadores acostumados a amansar bois para essa lida, nem se preocupavam, era o oficio deles, se valiam das varas de ferrão e davam sem piedade umas boas ferroadas no couro deles pra se levantar que chegava marejar sangue, alguém que visse e não fosse acostumado com aquilo ficava morrendo de dó, mas os bois tinham que aprender o ofício, os administradores da fazenda cobravam empenho dos carreadores porque esses bois de carro eram de grande utilidade nos diversos serviços na fazenda; puxar rolos de arame farpado, esticadores e mourões pra fazer cercas, puxar pedras para construções, madeiras pra construir pontes, mata burros e pinguelas, puxar adubos e olhas de cana para renovar plantio nos canaviais, enfim, eram inúmeras as serventias dessas juntas de bois, sem duvida um dos principais meios na época de alavancar muitos trabalhos, portanto não havia outra maneira, tinha que adestra-los e nisso os bois de guia exerciam grande função, eram fortes e acostumados ao trabalho, se os outros fizessem manha e não quisesse ir, eles arrastavam e ia se embora, não tinha choro. Os outros podiam estrebuchar, mas tinha que ir. Só que os novatos acabavam aprendendo o oficio e tempos depois iam ser bois de guia e acabavam fazendo a mesma coisa com outros novatos.

Os coitados dos candeeiros viviam descalços, muitas vezes entretidos e atentos aos serviços quando menos esperavam tropeçavam numa pedra e iam ao chão, ora lascava a cabeça de um dedo ou estrepavam o pé na ponta de um toco; saiam gritando e pulando de dor, sangue escorria, mas se ajeitavam como podia e o serviço continuava. A noite, em casa, lavava o machucado numa bacia de água morna com sal, fazia emplasto com folhas de alguma planta medicinal, amarava o pé com pedaços de trapos e no outro dia saltava cedo e tocava pra roça mancando de um pé. E dessa forma todos os anos preparava se uma área grande de terreno nas várzeas pantanosas às margens do rio grande para plantio de arrozais imensos, aproveitando ainda naquelas partes mais arenosas para plantar um capão de amendoim, esse era a alegria da meninada e servia também pra fazer no correr do ano os deliciosos doces, pé de moleque.

Quando não era nessa lida de preparar o terreno, era no plantio ou na colheita das lavouras, e nas colheitas era interessante, pois usavam de um expediente popular juntando vários moradores da redondeza em mutirões animados trocando dias de serviço pra fazerem de forma mais rápida e alternadamente suas colheitas. Lidavam também com o gado, pastoravam nas invernadas, curavam rês machucadas nas cercas de arame farpado ou chamavam os cachorros pra ajudarem e passavam dias inteiros a cavalo dentro das matas ou nas beiras de lagoas e brejos campeando alguma rês parida, ou desgarrada do rebanho. Tiravam leite, faziam ou concertavam as cercas dos pastos, bem como enfiavam se nos eitos dos imensos canaviais cortando canas de açúcar e as organizando em leiras para serem depois colocadas pelos homens do carregamento em altas cargas sobre as carrocerias dos caminhões Ford e o Chevrolet Brasil. Os caminhões eram de cores interessantes, havia uns Fords bonitos fabricados no ano de 1966, suas boleias eram de cor amarelo trigo e na frente uma grade imponente de cor branca com quatro lindos faróis retangulares. Eram na época os mais modernos. Havia também e não menos interessantes os Chevrolets, muitos deles com mais tempo de fabricação, suas boleias muito engraçadas, pintadas predominantemente na cor branca e com os tetos e os para lamas em cores vivas como vermelho, marron, verde escuro, cinza, vinho, enfim, cores alegres e as mais diversificadas. Tinha também os de uma cor só, havia vermelho, porem mais raros esses, a maioria era numa cor azul escuro, eram os mais antigos, mas igualmente aos outros sempre firmes e valentes no batente. O povo conhecia os choferes, entre tantos outros eram Zé bolão, seu Chico pai de Bolão, João Paulino, Zé Gomes, Zé Necó, Tião Duque, Toinzim Afonso, Geraldo Ribeiro, e muitos outros. Eram animados, os caminhões saiam carregados, um atrás do outro, deixavam os eitos devagar com cuidado pra não cortar e estourar os pneus nalguma pedra, ou pra não tombar em alguma ribanceira quando a puxada era de ladeira abaixo. Saiam devagar, mas esfumaçando as bocas dos canos da descarga por causa dos motores roncando forte por conta do peso das cargas.

Meninos indo pra escola aproveitavam os caminhões pesados e devagar, corriam de um jeito que os choferes não os percebessem e pegavam rabeiras, e iam por longas distancias agarrados nas traseiras das carrocerias. Enchiam se de felicidade quando apontava um caminhão carregado de cana, pois chegavam mais cedo com tempo de brincar um pouco com a meninada debaixo da sombra do enorme e centenário pé de figueira existente no pátio da escola e, ademais, a jornada de mais de légua de casa até a escola tornava se menos cansativa. Aproveitavam esse tempo pra brincar de pique, de jogar bola, de pular corda, de esconder, corriam pra todo lado, isso os meninos, as meninas brincavam de roda, de maré, maré, enfim, e só quando a professora com uma vara de marmelo debaixo do braço lá no alto do pedestal da comprida escada rente à sala de aula batia o sino anunciando a hora de começar, é que a meninada se intimidava e corria pra lavar as mãos nos dois bueiros de tampa de madeira existentes no vasto terreiro da fazenda. Esse canal vinha de uma boa distancia correndo por debaixo do chão, e sob os bueiros a água passava forte e barulhenta, a meninada se tumultuava cada um querendo lavar primeiro porque tinha medo da professora raiar se demorasse, mas tinha que ter muito cuidado pra não ser arrastado pela correnteza forte. Esse canal d’água descia subterraneamente, passava por debaixo do enorme casarão amarelo claro de imensas portas e janelas azuis claros, o casarão era a sede da fazenda, e uma das salas enorme dele foi separada pra ser a sala de aula, e o canal d’água quando saia do outro lado dando para o imenso quintal da fazenda, ele percorria forte e tortuosamente uma longa distancia movimentando o monjolo que socava cereais como milho e arroz dia e noite abastecia também os coxos dos chiqueiros dos porcos e lá mais embaixo, no fim do quintal da sede ele aguava laranjais, pés de mexericas, pitangueiras, jabuticabeiras e por fim regava diversos canteiros de hortaliças, mas continuava descendo forte e barulhento até se despejar num córrego ao fundo das dependências da sede da fazenda taquaruçu. E esse córrego por sua vez cortava uma distancia longa, passando por canaviais, florestas, sob muitos sopés de serras até se despejar na cabeceira do rio grande.

É nesses bueiros que os meninos lavavam as mãos e enxugavam ligeiros nas próprias roupas e corriam pra formarem as duas filas, uma das meninas e a outra dos meninos, pela ordem de tamanhos, menores na frente e maiores atrás, passando sob o sério olhar auspicioso da professora, ela às vezes raiava com algum desleixado por causa do uniforme sujo ou amarrotado, brigava sério com algum se tivesse sem uniforme, queria saber o motivo, dizia que podia estar velho e remendado, conquanto que tivessem sido passados no ferro à brasa e impecavelmente limpos. Tinha menino que ficava cabisbaixo e com vergonha dos outros, principalmente das meninas e daqueles de pais que tinha uma condiçãozinha melhor e estavam bem arrumados e de uniforme novo. Passavam vergonha nesses casos, mas a professora era rigorosa. Todavia, iam todos em silencio entrando na sala e cada um procurando sua posição de costume nas velhas carteiras da escola. A professora fazia a chamada e anotava num caderno a presença de cada aluno e depois pegava o giz e ia para o quadro negro, começava escrever; primeiro escrevia o nome da escola, “ESCOLA RURAL TOMAZ GALHARDO” e em seguida os trabalhos para serem copiados, passava contas, sempre falando numa voz firme, essa é para os alunos do primeiro ano, essa agora é para o primeiro ano adiantado, essa outra para o segundo ano e assim sucessivamente. Nas altas paredes da sala havia muitos cartazes com interessantes ilustrações, de bichos, de rios, de paisagens, enfim, e a finalidade deles era os alunos fazerem composições inspirados em suas gravuras para desenvolver aprendizado sobre gramática. Os alunos, do primeiro ao quarto ano estudavam todos juntos na mesma sala.

Entretanto, sobre os caminhões de cana, os meninos faziam essas artes de pegar rabeira, mas escondido e os pais não podiam nem sonhar, pois se soubessem era coça na certa, pois morriam de medo que quebrassem braços, pernas ou machucados grave se caíssem do caminhão em movimento. Porem, ao saírem nas estradas plainadas saltava, pois os caminhões ganhavam velocidades, deixavam nuvens de poeira vermelha pra trás, as moitas de canas dos dois lados da estrada ficavam avermelhadas de tanta poeira, e os caminhões sumiam indo quase voando pras usinas, pois tinham pressa, principalmente aqueles que eram donos dos seus próprios caminhões e ganhavam pela quantidade de toneladas transportadas no correr do mês.

Durante os quase seis meses de safra essa era a rotina pra não deixar parar as enormes moendas das duas usinas, Açucareira Passos e a Rio grande. Nesse período os serviços nas usinas começavam cedo da madrugada e iam até tarde da noite. A usina Rio Grande era de outros donos na época e o povo da repartição Fazenda Taquaruçu, colonos da Açucareira Passos, sabia das coisas de lá só de ouvir falar, mas depois ela foi adquirida pelos proprietários da Açucareira Passos e virou uma só.

Ainda cedo da madrugada o povo da roça acordava com latidos de cachorros, reflexo de faróis entrando pelas frestas do telhado e das janelas e clareando o interior da casa, bem como muita zoada de caminhões e tratores com carretas chegando com escuro e debaixo das cerrações e friagem intensa trazendo as turmas da cidade para o corte de cana. Os caminhões entravam nos carreadores, subiam ladeiras, desciam dentro de grotas, às vezes atolavam em lamaçais, patinavam muito, se não desse de sair vinham os tratores, amarravam num cabo de aço e puxavam ate desatolar e aí os caminhões tocavam para os lotes designados para o corte naquele dia; onde finalmente paravam e o povo descia. As carrocerias vinham apinhadas, um falatório danado, eram homens, mulheres e meninos; pois naqueles tempos meninos nos dez pra doze anos os pais já os levavam para os serviços de roça, e deles que diziam que “serviço de menino é pouco, mas serve muito e quem perde é louco”. No meio da turma tinham cortadores de cana de nomes afamados por serem mais sacudidos; entre eles estavam Antonio Aleixo, Miguinho, Gaspar da Efigênia, Lili do patrimônio, João Capoeira, nego Dário; Deosmar Mane gato, Antonio Carlos e tantos outros. Esses, por conta dos seus rendimentos no serviço eram respeitados pelos chefes de turmas. Esse povo, na sua maioria vinha vestido em agasalhos de frio e com mangas com elástico nos braços, bem como chapéus de palha e carapuças na cabeça para se protegerem do sol na volta do dia, ou também das cinzas e o carvão quando o corte era em lotes de cana queimada. As moças se valiam de águas canforadas, pomadas e cremes os passando nos rostos e nos braços e ainda usavam chapéus de abas imensas para se protegerem contra as ações das intempéries, pois caçavam meios pra manterem a silhueta que as deixavam sempre belas durante voltas e voltas ao redor das praças das igrejas aos finais de semana em busca de pretendentes a namoros e com certeza casórios felizes o mais breve que pudessem. E aconteciam muitos, até porque havia muitas moças bonitas, e acontecia também de muitos desses iniciarem ali mesmo nos serviços por meio de pequenos flertes e virar coisa séria, e quando menos se esperava tava marcado o dia do casamento com direito a doces, licores e o sanfoneiro pra fazer a batucada e alegrar os convidados. Então, por isso todo cuidado era pouco para manter a tez bonita e macia.

Sim, agora de novo aos lotes de cana, os caminhões chagavam aos pés dos lotes, paravam, desligavam um pouquinho ali os motores pra esfriar, a turma descia ligeiro, saiam andando, no ombro uma cabaça ou moringa d’água, um embornal com a boia, uma garrafinha com café amanhecido pra fazer boca de pito, um vidro de álcool, caixa de fósforos, e um fogareiro feito de lata de massa de tomate pra esquentar a boia mais tarde. Nas mãos, um podão bem amolado, geralmente marca matão, lima k&f com cabo feito de um pedaço de pau de areia prata ou guatambu, e ainda o esmeril ou pedaço de pedra pra afiar a ferramenta de vez em quando. Desciam e se espalhavam pra esticar as pernas prestes a entrevarem se por conta do tempo sentados de mau jeito dentro das carrocerias. Deles com a bexiga a ponto de estourar desciam e saiam quase correndo, olhando pros lados meio desconfiados e se ocultando dentro do canavial pra aliviar a situação de desconforto. Logo encaminhavam se em fila indiana atrás do fiscal pra pegar o eito. Havia uns sabidos que corriam na frente e usavam a artimanha de só pegar um eito onde as canas não fossem tombadas pelo vento, pois essas se entrançavam uma nas outras e o sujeito batia o dia inteiro, ficava moído de cansaço, mas o rendimento coitado, quase nada. Muitas vezes acontecia de duas turmas pegarem uma em cada lado do lote, e nesses casos quando chegava a tarde aqueles cortadores mais sacudidos topavam os seus eitos e deixavam apenas uma cana em pé para separar a produção de cada um, deixando um descampado grande e tornando o horizonte claro onde antes só se via o escuro do canavial fechado com pendões esbranquiçados esvoaçando pelos ares numa demonstração que aquele lote estava realmente no ponto de corte. Via se leiras infinitas de um lado ao outro do lote.

Os cortadores; ressalvada a parada para o almoço debaixo de uma sombra, quando aproveitavam pra dar uma cochilada na hora do quilo, ou de vez em quando na volta do dia pra descascar e chupar um pedaço de cana, o resto era malhando; a camisa ensopava, mas só largavam no finalzinho da tarde quando os apontadores mediam as produções, as anotavam numa caderneta e repassava para os gatos – chefes de turmas – que programavam para fazer o pagamento de cada um no fim da semana. Entre esses gatos – eram chamados assim - estavam Seu João Cesário, José Modesto, Tião Braga, Gaspar Ribeiro, e outros mais. Mas eram pessoas responsáveis e direitas, tratavam as coisas com seriedade acertando tudo direitinho nos finais de semana ou da quinzena conforme fosse o caso. Inclusive quase todos eles por suas maneiras de tratar o povo, conquistavam a simpatia e eram admirados pelos cortadores de cana. Feito isso e já no final do dia, o sol já baixo, vinham devagar para um ponto onde faziam uma moa na sobra de alguma árvore na beira da estrada, de onde se ouvia teimas e muitas risadas, pois estavam sempre discutindo sobre alguma questão, contando piadas ou conversando lorotas pra passar o tempo enquanto esperavam os caminhões que retornavam da puxada e vinham buscar pra deixá-los nos vários pontos de diversas ruas dos bairros Santa Luzia, Ultimo gole, Bela Vista Candeias, Canjeranus, São Francisco, bairro da Penha, Nossa Senhora Aparecida, Nossa Senhora das Graças ou então no Patrimônio da cidade Passos.

Na Usina, as cinco da madrugada uma sirene soava um apito longo anunciando o inicio da moagem, e nessa hora começava um formigar de gente pra tudo que era banda, de braçais carregando coisas, aos apontadores e fiscais tomando anotações, e lá num certo ponto uma coisa feita de ferro parecida com gente ia a um montão de lenha, abraçava um feixe enorme, caminhava pra dentro de uma fornalha e o despejava pra manter o fogaréu que alimentava a caldeira da usina. (O povo o chamava de “o homem de ferro”) Ás dez da noite o mesmo apito – nesse caso os operários cansados esperavam ansiosos por ele - se repetia para indicar o encerramento dos trabalhos. Mal ele terminava de soar os operários exaustos se desvencilhavam das ferramentas de serviço, corriam e pulavam em cima das carrocerias dos caminhões que os aguardavam pra levá-los de volta pra casa. Aos chefes de turmas, fiscais e apontadores eram reservados lugares nas boleias. Essa era a rotina. Todavia respeitava se os dias de domingos, feriados e os dias santos, exceção de paradas eventuais causadas por motivos de defeitos ou quebra em algum conjunto mecânico de vital importância pra fazer girar rodas e engrenagens enormes e movimentar mandíbulas que formavam as moendas propriamente ditas. Nesses casos de enguiços imprevisíveis o Chicão, chefe da oficina, juntava os mecânicos, largavam tudo que estavam fazendo e corriam com as ferramentas pra caçar onde era o defeito e corrigir as avarias pra restaurar o perfeito funcionamento dos equipamentos. Às vezes ocorria de paralisar por problemas de maior complexidade e quando isso acontecia os próprios diretores e até mesmo os donos se envolviam no meio dos técnicos pra encontrar a solução e fazer a usina funcionar, pois, estavam sempre preocupados em cumprir as metas de produção e atender as demandas de pedidos vindos de várias partes do país. O povo do serviço geral não dava um pio nessas horas, mas por dentro morria de felicidade, pois, aproveitava pra descansar enquanto os maquinários eram concertados.

Essas situações em geral ocasionavam sérias preocupações, e assim que a normalidade era restabelecida os cronogramas eram refeitos e ao turno de trabalho eram acrescentadas horas extraordinárias pra compensação do tempo perdido. A verdade é que nesse período de mais de quinze horas ininterruptas, toneladas e toneladas de canas eram esmagadas e transformadas em bagaço, melaço e outros subprodutos, mas o principal era o açúcar cristal que era ensacado e despachado em cargas fechadas nas jamantas que saiam todos os dias, uma atrás da outra, roncando forte e cortando estradas pra abastecer distantes centros comerciais em diversas capitais e outras importantes cidades país afora. Contudo, a despeito de tantas labutas ali nos colodinos naqueles tempos, levavam vida simples, porem eram muito felizes. Ademais, é de grande importância destacar aqui entre as tantas recordações sobre coisas boas daqueles tempos uma que será sempre muito especial, “o predominante e inabalável espírito de união, de amor e ternura” entre os membros da família Martimiano de Andrade e parentes, de uma forma que até hoje, quando qualquer um dessa família volve o olhar para trás e vê a longa estrada percorrida, apesar dos percalços inúmeros e inevitáveis, um profundo sentimento de bem estar lhe invade o peito, a alma é maravilhosamente absorvida por uma sensação de harmonia, muita paz, e embora a imensa nostalgia, seus corações experimentam o prazer de sentir o gostinho daqueles mesmos doces momentos de vida de muitos anos atrás. Tão bom relembrar essas coisas!

Domingos Andrade
Enviado por Domingos Andrade em 29/07/2019
Reeditado em 06/08/2019
Código do texto: T6707577
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