A Poesia de coração rasgado e a cachaça
A tarde estava suave e risonha, e o crepúsculo já ensaiava os seus primeiros risos, quando a Poesia e o Poeta se encontraram. Um entardecer navarriano à la “Love Story”. Sob o qual, o Poeta dar cabo ao seu relacionamento com a Poesia, transformando-o em um entardecer picassiano à la “E o vento levou”. Os seus passos que sempre o levavam à Poesia, agora o levam para longe, deixando-a sob um entardecer, que alheio as suas lágrimas, se dispõe no horizonte como um amante nos braços de sua amada.
A Poesia segura seu coração rasgado, fecha os olhos para o crepuscular, e corre para o mar, onde deita a sua tristeza, deixando as ondas que chicoteiam a praia, maiores e fortes, o que faz com que a maré se eleve e invada o horizonte, o deixando cabisbaixo, e o sol sem ter para onde voltar. A lua escurece-se, o céu desbota-se, as estrelas fecham o riso, a natureza se fecha em si, e a Poesia ferida, termina numa mesa de bar.
- Garçom, traga-me uma dose de cachaça!
O garçom que estava de costas, vira-se em direção da voz. A sua surpresa foi tanta, que o seu queixo despenca, tamanha era beleza da dona da voz. E a sua imaginação voa...
- O que Deus estava pensando quando criou uma mulher tão perfeita, e ao mesmo tempo, imperfeita e complexa?
- E quem teria sido o “sacripanta” que a machucou tanto? Que a sua beleza perfeita agora está desfigurada, por um olhar morto de tristeza?
- Garçom?!
A Poesia o chama, tirando-o de seus devaneios, e diz: - Não quero mais só uma dose de cachaça, agora quero que me traga duas garrafas!
O garçom, que mal tinha se levantado de seus devaneios, pergunta:
- Você tem certeza?
E a Poesia responde com outra pergunta: - Que parte do que eu quero duas garrafas de cachaça, você não entendeu?!
- Desculpe-me, só queria ter certeza.
E a Poesia o apressa com um movimento de mão como se estivesse a tirar poeira do vento. E girando sobre os próprios pés, ele sai apressadamente para pegar o pedido. Após passado algumas horas, a Poesia o chama novamente.
- Garçom?! Por favor, mais duas garrafas.
Isso, já completamente, bêbeda!
- O quê?! - Pergunta o garçom surpreso.
- Qual é problema?
- Não fui clara?
E a Poesia continua...
- E também quero cantar!
- Eu vou cantar uma música da Inezita Barroso. Você a conhece?
- Não. Responde o garçom.
Nesse momento, a Poesia se levanta, se aproxima do garçom, e usa as duas mãos entrelaçadas para apoia-se em seu ombro, mal conseguindo ficar de pé, e fala: - Vou cantar uma música do Vinicius de Moraes então, mas só depois que eu cantar a música da Inezita, aí eu canto, a do Vinícius, certo?
O garçom: - Por favor! Os outros clientes já estão reclamando. Tem alguém para quem possa ligar para vim lhe buscar?
A Poesia levanta a cabeça, olha bem para o garçom e pergunta: - Você sabe quem sou eu?! - Eu sou Poesia!
- E quando, e somente quando, a cachaça tiver tirado todas as minhas forças, e o meu corpo, não mais me sustentar, aí você pode chamar qualquer um para me levar para casa!
- Qualquer um?! - Pergunta o garçom assustado.
- Sim, qualquer um. Romancista, realista, simbolista, modernista. Pode ser qualquer deles, só não me deixe no chão!
E sem entender o que dizia a Poesia, o garçom: - Você pode ser mais clara, por favor.
Nessa hora a Poesia grita: - Eu sou Poesia!
- A que veste amor! A que veste tristeza! A que chora a dor nas palavras, a que morre de amor nos versos de poetas mortos! A que veste a nudez! A que a paixão desvela sem medo, a que a morte beija!
- Eu sou Poesia! Eu sou Poesia!
- A Poesia que agora chora...
- Tudo de mim foi tirado, tudo!
- Entendeu?! - E soluça alto.
O garçom fica estupefato e sem saber o que fazer diante daquela tempestade de tristeza.
E a Poesia continua a falar de sua dor...
- Então, não me peça para ser clara, quando nem para mim está. Por isso, pouca importa quem vai me levar para casa, hoje; se Álvares de Azevedo ou Machado de Assis, se Cruz e Souza ou Manoel Bandeira. Já que sou uma Poesia de poesia morta! Mas não se apresse em chamar nenhum deles, ainda não terminei de beber a minha cachaça!
O garçom respira fundo, e decide não mais questiona-la. O melhor a fazer é pedir o serviço de “Táxi/Uber literário”. Uma Poesia de poesia morta precisa de versos e de lírios, ainda mais, quando perdida e sozinha numa mesa de bar, e com a noite fria lá fora, a abraçar o dia.
Camaçari/BA, 27 de julho de 2019, 17hs22min