Voz de um anjo

Sou Amélia Cruz, cozinheira de mão cheia, cada alimento que faço é uma obra a ser degustada minuciosamente, quem provou do meu tempero entende do que estou falando.

Nunca me preocupei com medidas, não sou professora de matemática. Tudo aqui na cozinha é em excesso, em fartura. Coisa de nordestino, né? Meu caro leitor. Eu gosto é do banquete com todos os vizinhos, amigos, parentes e gatos. Não posso me esquecer de que Platão sairia satisfeito da minha mesa de jantar.

Certo dia me veio um pensamento sobre como fazer um fígado bem temperado, era de por volta das onze da noite e tinha uma vela acesa na minha cômoda para nossa senhora da Aparecida, eu como devota que sou sempre rezo a ela para proteger os meus entes queridos. Mas eu queria fazer um fígado acebolado com vinho branco e chamar toda a vizinhança, porém faz dias que estou sem dormir pensando nessa tão aclamada festa, pois eu já tinha matutado a respeito disso em outra época bem distante e agora reverberou de uma forma estridente na minha mente: “preciso fazer esse banquete”. Vou chamar até os que não conheço, quero ser aclamada pelos os meus dotes culinários, quero ser reconhecida nacionalmente. Logo, eu que vim da Paraíba, lugar que há calor humano e sinceridade no olhar de muita gente. Eu estou aqui a pensar também na Valéria Lins, minha vizinha que não fala comigo há meses, será que eu fiz algo de errado para ela? Ou será neurose da minha cabeça? Ela passa na rua e nem me cumprimenta mais, parece bicho com medo do caçador. Embora eu seja boa, não faça mal a ninguém. Sou só feiticeira das comidas, essa é minha especialidade — vou começar a rezar para nossa senhora sobre Valéria Lins, ela que sempre fora minha amiga do coração, amiga do peito. Qual mal fiz a ela que nem me responde mais quando digo um simples: oi!

Passei a noite em inquietude, estava tão aflita a ponto de suar frio, tudo por causa do bendito banquete. Quem me ajudaria nessa? O padeiro poderia me emprestar alguns pães, a mulher do mercado poderia estar doando alguns alimentos para a tão aclamada festa. Ah, Jesus, será que estou pedindo mais do que posso dar? Às vezes eu peço tanto e nada me acontece. Às vezes eu peço nada e você me manda um dilúvio de bençãos. Por isso eu te amo tanto meu Deus, por isso estou sempre na sua presença.

Tenho um olhar distante. O que seria esse olhar distante? Vejo coisas que as outras pessoas não veem. Pode parecer coisa de místico ou de vidente, mas eu sinto as vibrações de energia de uma pessoa quando ela é boa ou quando ela é má. As minhas pernas começam a fraquejar, as articulações dos joelhos começam a esmorecer e eu começo a rezar no meu inconsciente que isso é algo para destruir. Outro dia vi uma moça passar na rua, era rica cheia das joias, mas que não tinha sequer o respeito de dizer bom dia ou boa noite, era arrogante, prepotente. Tinha tudo na vida, mas era pobre do sentir. O que adiantava? O que isso lhe acrescentaria? Bem que eu poderia jogar uma pitada de açúcar no seu coração para tirar aquele quebranto de maldade que havia ali.

Já amanheceu e eu estou aqui a fazer a lista do que preciso para comprar para o tal banquete, já chamei todo mundo que eu conheço, espero que venham todos. Segue a ordem da lista: um pacote de alecrim, um pacote de sal do himalaia, um coentro e um cinco quilos de fígado. Primeira vez na vida que estou fazendo isso será que vai dar certo? Vou pedir para alguém ir comprar as coisas em meu lugar, pois, não posso ir comprar do jeito que estou. Ainda estou com os cabelos despenteados e de pijamas, vou ligar no interfone e pedir para o porteiro pedir para alguém ir buscar. Será que o meu plano irá dar certo? Estou toda alegre e periclitante de estar sozinha em casa. A coragem é algo que move as pessoas, e eu como sou mulher, tenho a coragem instalada em mim. Preciso ser forte e guerreira para o que irei enfrentar.

Liguei no porteiro e ele desacatou a minha ordem, como pode algo disso? Eu sou uma mulher! Ninguém desacata a minha ordem, vou ligar para minha mãe, mas se eu ligar para ela vai ficar suspeito de eu ter faltado na escola sem justificativa. A melhor coisa a se fazer é procurar outra brincadeira, sou só uma criança, embora a babá esqueça-se de cuidar de mim e vai passear com seus pretendentes. Vou brincar que agora sou astronauta.

Sou Amélia Cruz e sou astronauta, posso tocar as estrelas com os dedos da minha mão esquerda e direita. Um dia ouvi na rádio que as estrelas morrem e depois nascem de novo. Assim como eu serei mãe um dia ou não, sabe se lá?! O futuro dá rasteiras na gente que deixa a gente embasbacada. Estava lendo o pequeno príncipe e queria encontrar alguém que me cativasse como a rosa tinha o cativado. E no fim encontrei, era a imagem de nossa senhora aparecida, tão radiante, tão luzidia. Eu rezava dia e noite com a vela acesa, ela era minha melhor amiga e minha mãe do coração. Deus um dia há de reservar um lugar no céu para mim, pois eu peço tanto a gratidão e agradeço o dom da vida e do de poder brincar que ele me trará um pedaço no céu aqui na terra. Quando ele chegar eu não sei, mas eu tenho certeza que será um dia de muitas estrelas no céu aqui em São Paulo, a capital irá apagar-se em sua completude e ficará o luar e as estrelas a iluminar as casas e as pessoas que ali passarem. Será um porto seguro para os poetas e escritores, pois ali encontrarão inspiração. Encontrarão Deus, e sua magnanimidade, a sua onipotência, a sua grandiosidade.

Estou ficando cansada de tanto pensar e olha que nem brinquei tanto hoje. Está chegando a hora de dormir e tudo de novo começar. Espero ter bons sonhos e escutar a voz dos anjos nos meus sonhos para assim acordar uma Amélia Cruz mais radiante, mais alegre e com a imaginação leve que possa existir na face da terra. Uma ressurreição em própria vida, em própria alma.