DOIS SONHOS
1---TESOURO SOB O TRAVESSEIRO - A AVÓ juntava moedas correntes, novas ou semi gastas, numa vasilha de louça, redonda, bonitinha, com tampa. Implicava à toa com aparelho televisivo, era bastante idosa, talvez não quisesse assumir alguma falha de visão ou audição, nunca foi esclarecido. Como em casa não tinham televisão, ótimo para ELA que, em visita a amigos ou familiares, dava sempre um jeito de sentar longe e de costas para o aparelho. Certa vez, distraída, visitando a FILHA mais velha, não teve como escapar de assistir por minutos a uma cena interessante. Filme, talvez - praia, banhista, a onda trouxe uma destas garrafas com um papel dentro e também pequena arca de madeira. O banhista abria, apareciam moedas e mais moedas de ouro. Levantou-se e foi para a varanda, furiosa, se dizendo "traída" pois não avisaram sobre a tevê ligada. Não aceitou desculpas, brigou, exigiu que a levassem embora imediatamente; talvez pela ira momentânea é que as imagens ficaram gravadas dentro dela. A NETA precisava de moedas todo dia, trocava notas pelas 'redondinhas' com a AVÓ. Casa pequena, dormiam na sala, cada uma em sua poltrona de armar - a senhora perto de um móvel baixo, a moça perto da estante de livros. A NETA lembrou à noite a permuta, uma não mexia no que pertencesse a outra; assim pediu moedas. Ora, a AVÓ já estava deitada, esticou a mão na direção do tal móvel, vasilha retornou ao lugar, contou, deu as moedas necessárias, mas ainda sobraram algumas. Achou mais fácil botar embaixo do travesseiro e logo adormeceu. ----- Sonhou. Estava na praia com as irmãs, tempo ainda do maiô comprido, além do joelho, praia era somente questão de saúde... Acontece que, de repente, aparecia um navio grande e alguém jogava na praia uma garrafa com um papel e uma pequena arca de madeira que uma onda logo arrastou para a areia. No papel, um anúncio comercial de xarope da época - Rhum Creosotado (aquele que, nos folhetos de publicidade nos bondes de antigamente, salvou "o belo tipo faceiro"). A arca, ah, a arca! Pequena, porém muito pesada. Ora, as três meninas (no sonho!) não tinham sacola grande e saco plástico ainda não existia com a atual facilidade. Elas logo abriram, possivelmente um tesouro de pirata, moedas e mais moedas de ouro. Não sonho absurdo, non sense - tudo parecendo bem real. Enterraram as moedas na areia e cobriram com uma pedra branca, não muito alta, que amoleceu e /agora o 'não-pode-ser'.../ virou uma pedra acolchoada, a seguir um travesseiro bem molenga... Terminou o sonho. /Inconsciente, subconsciente?... sei lá/. Acordou um tanto atarantada e num gesto casual meteu a mão sob o travesseiro. Bruto susto. As moedas (do pirata?) estavam lá... Uma, duas, três, todas douradinhas. Por certo recém cunhadas. Hoje, EU tentaria "traduzir" o estranhamento da AVÓ através da física quântica, quem sabe? A dúvida durou segundos, bem menos que um minuto, impossível que tal coisa se tivesse concretizado. Acordou de todo, percebeu que nada daquilo era verdade, aquietou-se, era muito cedo, mais meia hora deitada.
2---O CIGANO - Por sua vez, a NETA deitara com o radinho de pilha ligado. Programa cultural, um professor explicando sobre a palavra "athinganoi", evoluindo para "cigano" etc. etc. etc. Logo adormeceu e os pensamentos ficaram ofuscados. Viu um homem alto, corpo não magro, ar sedutor, pano de cetim vermelho cobrindo a cabeça, argola dourada na orelha esquerda. Sorriu para ELA, amistoso, e sugeriu (ELA, eterna rebelde e desobediente que diz fazer exatamente o contrário do palpite alheio) que não saísse de casa... "pois será inútil". E o homem foi embora (no sonho!), tocando um violino. ----- Saiu de casa cedo, como todas as manhãs, pequena fila, entrou no ônibus. Quem disse que o veículo saiu do lugar? Enguiçado. Veio um ônibus substituto, passageiros transferidos. Até aí, normal ainda nas ruas internas do bairro suburbano. Quando atingiu a avenida principal que levava ao centro da cidade, um engarrafamento monstro, acidente entre um caminhão de refrigerantes e outro que carregava galinhas - garrafas quebradas, cheiro adocicado no ar, aves assustadas, algumas em tentativa desesperada de voo para a liberdade e muito som de có-có-có. 'Horas' perdidas. Venceram com grande dificuldade esta etapa. Já no centro, passeata monstro em que uma qualquer classe de trabalhadores (ELA preferiu ignorar...), com cartazes de sindicato, reivindicava (só podia ser!) aumento de salário. Em outra passeata na direção contrária, as pessoas se abraçavam, todas vestidas em azul claro, um grupo monossilábico uníssono e intraduzível. Trânsito desviado para uma rua mais estreita, por sorte mais próxima à faculdade. Já perdera as duas primeiras horas de aula, que não houve, todo mundo alvoroçado, rostos interrogativos porque o tumulto era geral e intraduzível, aulas suspensas, agora só no dia seguinte. O jeito era voltar para casa. Conseguiu atravessar a multidão. Ônibus no sentido contrário. Guardas apitavam, polícia auxiliando as passeatas (tempo sem cassetetes e bombas de gás). Saíram do tumulto. ELA sentada à janela, ônibus quase vazio. Sinal vermelho, fechado. Com o canto do olho, percebeu na calçada uma figura incomum - homem alto, corpo não magro, ar sedutor, pano de......... (leitor já sabe!). Aproximou-se. Tamborilou na janela de vidro, chamando, ELA abriu, ELE sorriu para ELA, amistoso, porém agora testa franzida com ar severo de repreensão. Apenas três palavrinhas: "Avisei, não avisei?" E o homem foi embora, tocando o violino. À noite, reportagem na tevê, assistiu na casa ao lado, esclarecendo motivos simpáticos.
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NOTA DO AUTOR:
PRAIA DE SANTA LUZIA - Rio de Janeiro Antigo - Localizada no centro da cidade, em frente à igreja com o mesmo nome, foi até 1905 uma opção da lazer do carioca, que a usava para banho de mar - naquele ano, o prefeito Pereira Passos mandou colocar ali garagens para os barcos dos clubes a remo. Com a derrubada do Morro do Castelo, ainda um restinho de praia em 1922, mesmo com a diminuição da faixa de areia, mas extinta em 1940, um aterro para construção do Aeroporto Santos Dumont. --- RUM - Bebida secular apreciada no século XVII, alto teor alcoólico, encorajando piratas para o combate - serviu como moeda de troca para aquisição de escravos africanos - como bebida medicinal, curava todas (?) as doenças e "expulsava todos os demônios do corpo" (metáfora). --- RHUM - Do tempo em que pharmácia, do grego 'pharmacón', se iniciava com 'ph'. --- O poeta parnasiano OLAVO BILAC (1865/1918), o homem das rimas perfeitas, paquerador na porta da Confeitaria Colombo, era o principal marqueteiro da época: "Veja ilustre / o belo tipo faceiro / que o senhor tem a seu lado. / E no entanto, acredite, / quase morreu de bronquite, salvou-o RHUM CREOSOTADO." --- Versão também de BASTOS TIGRE (1882/1957), autor. Outra versão de publicidade do xarope somente nos anos 50, porém 'permitida fusão (e confusão) temporal no sonho.
F I M