NÃO EXISTEM HEROIS
E era tarde, muito tarde, e a criança precisava dormir.O pai cuidava em cobri-lo com o cobertor até o pescoço, e apesar das janelas fechadas, sentia-se a friagem rondando como a penumbra do só abajur na cabeceira ligado.
Mas pai, mas pai, queria dizer o menino de olhos tão arregalados, eu não estou com som sono, quero ouvir uma história.
E se o pai te desse um livro com gravuras – o pai pensara, mas sem coragem de propor.
O menino queria ouvir a história do cabo de vassoura, que ele prometeu logo assim a historinhas das letras falantes.
O pai podia enveredar pelo caminho fácil de dizer que era tarde, só que o menino reclamava um pouco da sua atenção como se a noite devesse de vez em quando ser um pouco longa.
O menino já lera o livro, porém queria ouvi-la da boca do pai.Imaginar como sairia a historia.Já ansiava, vendo nos lábios do pai, a historinha começar.Antes de começar o pai tentaria: você não gostaria de ver as gravuras?
O menino, na verdade, já se enjoara das gravuras, ou bem não gostara delas.Preferia tudo a sua maneira, no campo dos seus pensamentos.Pedia a historia com o mesmo sorriso insistente que pedia a Papai do céu que prolongasse a noite.Atendido o pedido: o menino não tinha sono.Sentia-se alegre por não ter sono.
As revistas em quadrinhos, o pai pensava nas revistas em quadrinhos...Estavam debaixo do colchão, estavam empoeiradas.o pai ainda não sabia, o menino deliciava-se em poder esconder.o menino fingia preguiça de ler, com seus olhinhos negros e um pouco vesgos, e tinha o pai tão forte, ao forte bem perto.Na escola, quando sentia o perigo do rival o ameaçando com cascudo, era no pai que pensava.E era a mãe, com seu cabelo comprido e arco de pano na testa, que o levava para o colégio.
O colégio cheirava a mirabel, como assim cheirava toda manhã.E seu quarto cheirava a livro novo como assim acabava cheirando a noite, e até agora cheirava o pai; este calor dele que estava próximo.
O menino passou a língua sobre os lábios, umedecendo-os.O menino ouvia o som das páginas se virando nos dedos do pai: a historinha vai começar.
O menino deliciava cada palavra ouvida, cada palavra dita da boca do pai que vinha do livro.E juntando as palavras, as frases, e a oração, o menino tinha a ação no campo dos seus pensamentos.
O pai sentia o sorriso do menino antes de tirar os olhos, rápido, do livro.Até que valia a pena sacrificar uma hora de sono, embora amanhã o trabalho, o patrão e a máquina o esperasse implacáveis e secos.
O menino sentia que a atmosfera era nova, embora a história fosse bem conhecida.O menino era curioso, e ele procurava ter com as coisas bem perto antes que lhe fossem reveladas.Assim seguiria andando em terreno seguro.
O pai disse, com cuidado marcando o livro com uma pena que a peteca perdera, que já era tarde e continuaria amanhã.
O menino pareceu, um certo instante, evanescer em seus sonhos, até que pediu doce como uma musica de harpa: só mais um pouquinho pai, só mais um pouquinho...
O pai pensava, já entreabrindo o livro, em dizer que estava cansado, que havia de acordar cedo amanhã.Poderia usar o próprio fato de o menino ter que acordar cedo para o colégio.Só que não resistiu ao pedido que era como um som que nunca antes ouvira, mas sabia lindo como de uma harpa, e o envolvia num enlevo de se entregar...
E a história recomeçava da onde acabou.O menino sentia a luz do abajur no seu rosto, nas mãos do pai onde estava o livro.O menino até se via naquela cozinha onde o cabo de vassoura vivia sempre atrás da porta.
A mãe era tão linda, enquanto passava pó de arroz nas faces coradas do sol.À tarde toda pendurando roupas no varal do fundo do quintal.Não havia tempo para se lembrar de um cabo de vassoura.E no descambar da tarde era o fogão que a ocupava, e o pai que procurava um tempo para ambos enquanto se achava mesmo em casa, corria para um banho.Livrar-se da poeira da rua!Dizia a mãe num sorriso cansado num canto só da boca.
O menino era tão feliz a cada mês que o pai recebia e trazia para ele um livro novo.E o lia primeiro, saboreando devagar cada palavra, ou na sua cama, ou no quintal enquanto a mãe no tanque esfregando roupa; depois pedia que o pai lesse para ele, antes de dormir.E conhecendo a história seguiria o caminho em terreno seguro.
E agora, com certo suspiro cansado, o pai queria dizer ao menino que estava bom por está noite, por está noite.
O menino concordava, assim um pouco resignado, confiante no beijo do pai em sua testa, e na luz do abajur que ele sempre deixava acesa.Assim o menino via o sono toma-lo.O sono o tomava como quem pega de raiva mesmo.E o livro embaixo do travesseiro como um amuleto para bons sonhos.Fazia o sinal da cruz como ensinara a mãe.Papai do céu entendia que ele era pequeno ainda para rezar e para orar.No entanto, logo assim que der os primeiros sinais que já é homem, ele vai ganhar as palavras e leva-los para Papai do céu.
Amanhecia tão rápido, embora o menino sonhasse estar acordando, tendo que escovar os dentes no tanque.Parecia tão real, sentira até o gosto do creme dental., e a boca acordando, realmente, cheia de saliva.
Bom-dia, e o pai já foi, espavorido e assustado com a velocidade das horas, com a bolsa pendurada no ombro onde a marmita fazia barulho se chocando.E para o menino o dia se ia aos goles, arrastando-se nos ponteiros.E a mãe que já parecia acordar pronta até com o arco de pano na testa, cuidava em vesti-lo, de fazer que ele se alimentasse direitinho, bebesse todo chocolate com leite; conferia o material escolar dentro de sua pasta: livros, cadernos, lápis, apontador, borracha, giz de cera, etc...
O menino ajuntava muito mais bagulhos na sua pasta escolar.Guardava todos os rabiscos que desenhava no recreio, onde ficava sempre só sem sair da sala.
A professora, mulher negra, forte e amorosa com os alunos, perguntava se ele não preferia brincar no pátio com os amiguinhos.Dizia pusilânime, com um incompreensível medo de não ser compreendido, que não, queria mesmo é estar ali rabiscando.A professora embevecia-se emocionada.Guardava o segredo de ama-lo um pouquinho a mais que os outros.Ver-se-ia que ele era especial, era um nome grifado entre tantos não.
E o menino rabiscava, no silêncio das aulas, as extremidades do caderno.o menino desenhava um sol entre nuvens, desenhava flores, a lua ou a chuva caindo.Assim o menino associava as aulas ao tempo que devia ser consumido...Sonhava e ansiava: o pai, o livro novo quem sabe, o carrinho de plástico azul, o Sitio do Pica-pau amarelo na televisão, o mingau de farinha láctea que a mãe preparava com tanto carinho, o canto do galo no terreiro do quintal vizinho.
Na extremidade da mesa com o parto de arroz, feijão, couve-flor e carne moída o menino olhava ocupada no organizar de tudo, na mesma velocidade assustada do pai durante a manhã.
E o menino queria saber se hoje era dia do pai trazer livro novo.Já poderia saber disto se durante a tardinha não tivesse farinha láctea.
Na hora do Sitio do pica-pau amarelo, o menino descobriu, porém guardou para si...numa expectativa mais doce que o mingau que não veio.De frente a televisão ele se embevecia com as historinhas que a dona benta contava aos netos, sentada naquela cadeira de vime que balançava.O menino sentava-se enrodilhado entre as pernas num tapete oval.Absorvia toda felicidade, que de uma xícara era tomada a leves goles.
O menino aos poucos compreendia que a ação eram palavras se encontrando.Haveria um jeito de se chegar intimo à elas.E o menino, embora tão menino ainda, já se sentia muito próximo.
A mãe às vezes esquecia... Assoviando para distrair.
E quando a noite começava a chegar era que tudo tombava no patrimônio da paz.Havia um estandarte no céu que avisava que a noite era para o menino ficar dentro de casa.O menino era de uma obediência, às vezes, resignada a paz.E o pai chegaria e procuraria espaço, ao afago de chegar, a sensação de estar mesmo em casa.E o menino adivinhava no rosto do pai, procurando-o disfarçadamente, lá onde estava com a mãe.E a mãe falava da farinha Láctea, o pai sabia.
E antes do jantar, logo depois que o pai saiu do banho ainda secando os cabelos com a toalha, que tinha...
O menino tentou conter a alegria como que com medo que ela explodisse como aconteceu com a bola de aniversário de uma coleginha.E viu, receber das mãos do pai, o livro de capa colorida que jamais sonhou ganhar: “As aventuras de Pinochio”.
O olhar do pai como que mais de felicidade do que do próprio menino; porém se o menino já se explodia de felicidade, então como descrever a felicidade do pai?
E antes do menino deitar o pai perguntaria sobre ler histórias, e o menino diria com um sorriso bobo e frágil que deixasse para amanhã, afinal, afinal...o menino queria curtir seu livro só.
Assim sucedeu: na penumbra, debaixo da luz do abajur, o menino deitado com as pernas cruzadas e o livro nas mãos que sentia trêmulas pela emoção; cheirava o livro: o cheiro de felicidade da noite.E era um ritual consigo mesmo aceso à meia-luz, feliz.Era tão bom estar feliz e não acabar.
Um dia desses disse isto à mãe, e ela falou que ele aproveitasse enquanto criança que depois que crescia...
E se ele disser agora para sua mãe que quase tem a formula de como eternizar...Se ele disser ela pode não acreditar, porque ele como menino não sabe dizer tão claro em palavras como fazer isto, mas ele sabe e vai fazer.
Na sala de aula, silencioso, lá no final da fileira de carteiras ele já acabara de copiar a lição do quadro-negro que na verdade é verde, e rabiscava as extremidades do caderno fingindo que não acabara ainda.Evitava ver a professora, que ele sabia prestar atenção nele.E ela sabia – acreditava ele – o que ele fazia realmente.o menino apressava-se para somente ter o prazer de ocupar-se com seus rabiscos.E na verdade ele pretendia encontrar as palavras, em seguida as frases e até que as orações e todo conjunto dizer algo logo.
O menino seguia crescendo assim: gigante pela própria natureza!
E havia o sol se escondendo entre nuvens, logo em seguida a chuva caindo da nuvem, e depois – como o antes do sol se escondendo entre nuvens – havia apenas o sol; flores brotavam na extremidade debaixo, junto com um pingado capim.Ou seria relva?Era o que o menino queria imaginar.
E a mãe reclamaria mais tarde, com doçura, paciência e compreensão ao ver seus cadernos rabiscados pelas margens.Ela ria entendendo-lhe, e o menino se descobria ainda mais.Descobria, sabia que podia, devia crescer mesmo nos pequenos vacilos e formar-se o caráter.
E a mãe pendurava roupas no varal, e o menino sentado num tijolo à um canto descobria Pinochio; rindo, não sozinho, com o livro.
E já conhecendo o caminho ele chamaria o pai.Sem susto veria que o pai era forte, e as revistas em quadrinhos estavam esquecidas debaixo do colchão.O pai perguntaria de novo, e ele num silêncio sorridente pediria a leitura sem nem mais um risco, apenas o calor forte da aproximação do pai, e o momento mágico do campo dos seus pensamentos, de imaginar como bem queria.
O menino ouvia o pai no seu silêncio sereno de quem imagina a história.o pai mostra cansaço no falar, mas sabe que mal começou e não arrefece ainda, embora pense na pena da peteca.
O pai então colocava a pena perdida da peteca dentro do livro e dizia com suavidade e autoridade que estava bom por está noite, e menino perguntaria numa melancolia natural porque a noite era tão curta.
A noite foi feita para dormir, descansar, só para isto.Só para isto, pensava o menino que não entendia e não questionava mais nada.O pai, antes de sair, bem gostaria de saber das revistas em quadrinhos: as de Super-homem, Homem-aranha, Batmam...Que ele acreditava que o menino gostasse.o menino nunca disse nada, e não gostava, as guardava de si mesmo.As protegia apenas por ser de quem lhes dera.
Mas o pai prometia-se amanhã o interrogar sobre as revistas.E o menino deitava com o livro debaixo do travesseiro, lamentava por a noite ser tão fugaz, embora tão etérea.Assim nascia a idéia, em consciência tão jovem, sobre os sentimentos, os delineamentos.
E na sala de aula, naquela manhã que começara ensolarada, o menino quando terminou de copiar a lição teve uma idéia sobre rabiscos a borda do caderno: o menino fez a lua crescente e as estrelas.E deixou que a borda de baixo esperasse...
O futuro homem, um poço profundo...
E à tardinha, com a casa escurecendo no crepúsculo, a luz da televisão ligada iluminava tudo; e o menino na frente desta, absorvido nas histórias de D.Benta.A mãe, na cozinha, preparava o mingau à luz acesa.e o menino, quando terminara o programa, desligara a televisão e fora para cozinha, onde a mãe já tinha tudo pronto: o prato de mingau o esperava na mesa, junto a cadeira onde devia se sentar.Só que o menino hesitava com um sorriso reforçado.A mãe o olhou admirada, vendo-o do vão da porta.Ele não parecia o mesmo de ontem.E nem um pouco assustada ela procurava aquele menino de ontem; nem bem aquele de ontem, mas aquele de hoje de manhã.Algo havia mudado na criança sem que mexesse em sua estrutura física e psicológica.
O menino parecia um homem jovem demais.E a mãe estava assustada e fascinada, embora lhe ocorresse ser tão normal.
Tentando mostrar a naturalidade habitual do cotidiano, a mãe, espalmou a mão na mesa, indicando com doçura de sempre.
E por que o menino hesitava?O menino pensava, pensava intensamente...E já sabia que isto não tinha hora certa para acontecer.E acontecia assim inédito de uma vez; é que os fragmentos juntaram-se, pondo-se até, nos seus devidos lugares.
E o menino chegou mais perto da mesa.Intenso e aceso como a lâmpada incandescente, e divertia-se no que certo modo parecia assustar a mãe: embora não fosse bem um susto!
O menino perguntou se o pai demoraria, e a mãe avisou que não, e já batia ele chegando na reação espavorida de logo estar presente.
O menino ia contar logo que já sabia como ser feliz até não acabar mais...
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21 de agosto de 2004
AUTOR: RODNEY ARAGÃO