VIAGEM, PENSAMENTOS, CASTIGO...

1 - VIAGEM - Viajaram. Quem so-zi-nho carregou a mala grande do casal, também 'dele' uma sacola de mão e a frasqueira 'dela'?... Ah, e um exibido e incoerente guarda-chuva japonês, com absurdos desenhos de gatos (palavra "neko", no idioma) bicolores que nunca usariam? Quem dirigiu sem poder se cansar? Quem abriu a porta do carro para 'madame cansadinha' não se cansar (de quê?) mais ainda? "Porta pesada!" Segunda vez que iria ver familiares do marido - a primeira, às pressas, por menos de três horas, no dia do casamento. Estranharam. Só civil, ELA escolheu assim, pragmática. "É... menos fantasia, mais realidade..." Pouquíssimas pessoas, almoço no restaurante, bolo branco de confeitaria, champanhe, bombons de cereja ao licor (não, não teve brigadeiro nem quindim miúdo). A casa dele já existia - foi só ELA trazer as roupas, os calçados, cabides, 'mil' formas e pirex para bolos e docinhos, lotadíssima caixa de papelão com receitas e ensinamentos úteis, outros recortes culturais, coleção de sapinhos, corujas e duas bonequinhas japonesas /gueixas?/ em porcelana colorida, louça inglesa de chá do século XIX, um monte de livros e dicionários......... Prateleira extra na cozinha e duas grandes num cantinho da sala que pomposamente passou a se chamar Biblioteca Particular Machado de Assis, Mário de Andrade e Guimarães Rosa, alcunha "Mamagui", homenageando três estados brasileiros. Brasil dela é 'encolhido'.

2 - PENSAMENTOS - Todos simpáticos, agradáveis, amistosos, receptivos, ELA muito falou meio a meio e muito ouviu, porém......... "Esses tais 'sobrinhos', filhos de uma prima de décimo grau (ELA já exagera...), divorciada duas vezes, huuummm... não serão filhos dele?" O menino brincava com carrinhos e latas - DNA metalúrgico? Pensou educada, sem falar as 'dúvidas'. Lembrou-se de uma aula. Sociologia. O professor disse entusiasticamente que, tirando a lourice e os olhos azuis do pessoal das telenovelas, o brasileiro "tem uma cara só" - todos morenos ou negros, muito parecidos - aí, ELA inventou a expressão "feliz Brasil coloridinho". "Em que as crianças se parecem com ELE? Não interessa... Tenho razão até - e principalmente - quando não tenho razão." ELA "não é" (?) n-a-d-a ciumenta e aprendeu com ELE a dizer: "EU apenas cuido, isto sim, do que me pertence." Achava que, ao redor, as mulheres da família achavam (nenhuma falou-insinuou nada disso) que casara com ELE por interesse. Pelo carro nada novo, pode? Bom, na verdade, precisava mesmo de um secretário-motorista-comprador-carregador-acompanhante-faxineiro-jardineiro-advogado-arquivista etc. etc. etc. "Ah, isto ELE é, sim." Tudo num só homem amoroso é prêmio de loteria! Antes, ELE não era nada disso: tornou-se! E com a maior paciência e boa vontade do mundo. ELA reuniu as mulheres, ensinou um único tipo de bordado (não sabe outro), um tal de bainha aberta desfiando tecido e preenchendo o espaço vazio com fita; aprendeu bonequinho de retalho - riu muito: "Vodu? Nunca!" - fez rirem. ----- Viagem curta, cidade nada longínqua, férias diminutas, intranquilidade muita, saudades de casa: travesseiro, fogão, geladeira livre, jornaleiro amigo e padaria na esquina, dormida romântica nas tardes de domingo (se não houver interesse no futebol da tevê...), cabeça sobre o peito dele, chazinho ou chocolate quente perto das 23 horas... Lar doce lar. ELE fala exibido: "Home sweet home. Zuhause........." (Até alemão? ELA foge.) Voltaram antes do sol de domingo.

3 - CASTIGO - "Castigo! Castigo como, de quê, por quê, o que foi que o Anjinho fez??? Nada. Filhos dele ou não? Inocentinho. Inocente? Réu suspeito 'é' geralmente réu culpado." Pela dúvida, lembrou-se da canção infantil, jardim de infância no Campo de Santana : "Teresinha de Jesus, deu uma queda, foi ao chão (...) eu te dou meu coração (...) quero um beijo e um abraço." Simulou tonteira, um tombo ("Como é que se desmaia?") e atirou-se no mini tapete solto, de ráfia azul (ELA pesquisa tudo: "nome dado às fibras de uma certa palmeira"), entrada da sala. Não era tapetão vermelho. não precisaria beijar (onde aprendeu isto? supra máximo sacerdote viajante?): mesmo porque não era momento de humildade. Assustado, ELE carregou-a no colo, semi "desmaiada", e colocou na cama com o maior cuidado. E se ELA dormisse cem anos? Quem assaria para ELE o bolo, rechear com abacaxi e creme de leite, depois gelar? Fez cheirar (vinagre é ruim, ácido, até Jesus recusou beber) direto do frasco um perfume de sândalo. Gemeu. "Estou tão fraquinha..." Manhã de domingo. Leite quente, café solúvel, torradas alemãs compradas ainda na outra cidade, geleia caseira de morango, creme gelado de chocolate (para restaurar forças) com avelãs. Gulosa sempre. Camisola comprida de cetim azul-céu e robe idem. Deitou-se novamente, "exausta". Almoço leve e colorido pedido por telefone. O coitado recebeu na porta, entregadora nissei de moto (ai, se ELA visse o inocente aperto de mão!), pagou; dividiram a comida, comeram, agora verbos no plural a dois; singular de novo, marido lavou pratos e talheres. "Ainda não melhorei." O coitadinho desfez a mala grande e a frasqueira dela - separar a roupa suja, por cor e tipo de tecido; depois, sabão em pó, ligar a máquina; água de colônia, batom, sabonete etc. voltando a seus lugares no armariozinho do banheiro... Reparou canivetinho dobrável de 3cm, antigo de abrir cartas na adolescência, querendo enferrujar (não descascou fruta na estrada nem fez ponta em lápis). "Onde ELA guarda esta arma violenta, perigosíssima?!" - colocou em Mamagui, aos cuidados da Capitu enigmática ou da Diadorim guerreira. Marido pensou com ironia: "E se Capitu resolver castrar o idiota Bentinho?" - receoso, afastou a ideia. Roupa no secador elétrico, tipo armário de metal - vigiar nos intervalos do futebol na tevê. Cochilou, cansado, inúmeras vezes - não viu entrega da taça ao São Paulo, clube do coração: faltou luz no bairro inteiro. No escuro, deixou cair o rádio de pilha, certamente quebrou. Cama grande, ELA atravessada, dormindo. Ou não? Beijou-a, sem o efeito natural dos contos de fadas. ELA resmungou algo no sono que vaga ou imaginariamente ELE escutou vaidoso: "O maior e melhor marido do mundo;" O do sonho ou o real?

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LEIAM meus trabalhos "Campo de Santana", "Casal empreendedor", "Desaparecida" e "Exibida rainha das palavras cruzadas".

NOTA DO AUTOR:

PRAGMATISMO - Vem desde Sócrates e metodicamente Aristóteles. Escola filosófica do final do século XIX, com origem num clube de especulação metafísica, liderado por Charles Sanders, lógico, William James, psicólogo, Oliver Wendell Holmes Jr., jurista, e acadêmicos importantes dos States - ideia de "conjunto de desdobramentos práticos": crença na verdade, desde os efeitos mais prosaicos até as condutas mentais mais remotas (aspectos úteis, necessários, a prática sem teorizações).

F I M

Rubemar Alves
Enviado por Rubemar Alves em 10/07/2019
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