Apenas Luísa

Em 31 de dezembro de 1999, às 23h59, o mundo inteiro se preparava para a grande virada do século. Em contrapartida, no mesmo instante, Luísa vinha ao mundo. Quando já se entendia por gente e se deu conta do dia que havia nascido, colocou na cabeça a ideia de que teria habilidades especiais e se diferia das outras crianças. Costumava dizer às amigas que tinha os ossos mais duros do mundo e, não sendo o bastante, podia voar a altura que quisesse. Infelizmente para ela, seu sonho acabou no dia em que tentou pular do primeiro andar do prédio onde seus pais moravam. A queda acabou por quebrar as suas duas pernas, mas não sua imaginação. Na mesma semana que saiu do hospital, ao ser colocado em debate a veracidade de suas habilidades pelas amigas, simplesmente disse que as havia perdido naquele dia. Segundo ela, era uma espécie de sinal. Isso explicava as duas pernas.

- Duas pernas, duas habilidades. É tão obvio! – disse Luísa às amigas.

Um tempo depois, após ter a movimentação completa dos membros, contou aos pais que se sentia mais forte e que queria ser velocista. “Eu me sinto mais rápida. Vocês vão ver, vou ser a número um do mundo! Mais rápida até que um raio”. O pai, que não era muito familiarizado com analogias, naquele mesmo dia pesquisou na internet a velocidade que um raio poderia atingir. 300.00 km por hora.

- Filha, você sabe qual a velocidade de um raio? – perguntou certa noite.

- Não, mas quero ser mais rápida que ele! – disse Luísa.

O pobre pai de Luísa dormiu confuso aquela noite. Eram tempos difíceis para os sonhadores, como diria Amelie.

Na primeira corrida em que participou, Luísa chegou em último lugar. Ops, desculpa, estou contando os fatos de maneira errada. Ela nem sequer terminou a prova. “Você não pode correr, suas pernas passaram por um sério trauma recentemente”, disse o doutor Anastácio, médico particular dos Ferreira. Luísa Ferreira, Mário Ferreira e Júlia Ferreira. Já deu para entender quem são, não é? Ok, prosseguindo.

Desconsolada pela notícia dada por doutor Anastácio, Luísa decidiu inventar uma nova modalidade: corrida com as mãos. “É assim que se faz, Mãe” e saiu andando com os braços ao invés das pernas. Sua vizinha, Dona Marlene, achou aquela situação estranhíssima.

- Isso é obra do Diabo. Leva essa menina na minha igreja, Júlia, que eu dou jeito nela.

- Minha filha não tem problema algum- disse a mãe.

Porém, por insistência do pai e da velha Marlene, naquela tarde os Ferreira fizeram uma visita à Igreja dos Curadores. Luísa sentiu vontade de rir ao ver o nome estampado bem alto no letreiro, mas sua mãe deu um tapa de lado da orelha e mandou-a ficar quieta. O pai, mais uma vez, sequer notou nada. Entraram de fininho, meio tímidos com a situação.

O culto começou e o pastor falava sobre todas as obras que realizou, pessoas subiam no púlpito e davam testemunho sobre as curas que obtiveram e todas assistiam maravilhadas. Menos Luísa, ela apenas queria correr como bem entendesse. Já no meio do culto, como uma última tentativa de convencer os pais a deixá-la correr à sua maneira, amarrou a saia que vestia e saiu correndo utilizando os braços. Ao perceber a situação inusitada, um membro da igreja, que estava lá na penúltima fileira, gritou: “NOSSO DEUS ESTÁ PRESENTE HOJE, IRMÃOS! ” E todos os que estavam até então apenas observando, começaram a andar da mesma forma que Luísa. Até dona Marlene que havia dito anteriormente que tudo aquilo seria obra do diabo se rendeu aos seus encantos. Naquela noite, todos se divertiram e dançaram bastante. Menos Luísa. Após se despedir dos membros da igreja e pegar uma carona de volta para casa, os Ferreira iam tranquilamente sentados no carro, até que, em um ataque súbito de fúria, Júlia olhou para o motorista e baixou a ordem:

- Encosta perto dessa árvore aí, seu moço!

Olhou para Luísa e disse:

- Você vai daqui até em casa a pé! Quer dizer, quase a pé- E a obrigou a ir andando daquele jeito estranho até em casa.

Luísa viu todos os seus colegas rindo e fazendo piadas, mas não deu mínima atenção a qualquer um deles, pois sabia que precisava ser forte.

Muitas coisas ainda estavam por vir.