JOÃO JOHN
Ele entrou com a Rover no pequeno estacionamento, procurava um lugar onde parar. Depois de manobrar com dificuldade, parou atrás de um carro menor. O segurança interpelou:
Senhor, por gentileza, aí atrás não pode, é o carro do diretor da unidade.
Mas eu conheço o Miragaya, ele que vai me receber e me acompanhar durante a minha palestra. Então, acho que posso.
Não senhor, infelizmente. Nós não temos autorização para permitir que ninguém deixe atrás do carro de um diretor de unidade.
E se eu falar com ele?
Ok, mas primeiro o senhor tem que tirar daí.
E aonde eu guardo?
Acho que não tem lugar, senhor. Seu veículo terá que ficar estacionado do lado de fora.
Porra, e por que você não me avisou antes de entrar? Eu não teria perdido esse tempo todo.
Eu não tenho como saber, senhor.
Vocês não conferem quantos carros entram aqui?
Não, senhor!
E o que você anota, afinal?
Só os nomes e as placas.
E quantos carros cabem nesse estacionamento?
Não sei não, senhor.
Ele respirou fundo, ligou o carro novamente, saiu e estacionou do lado de fora, sob uma árvore de copa baixa mas de sombra espessa.
Ao passar a portaria, observou o nome do segurança, Makenzo. Achou estranho, decidiu perguntar.
Por gentileza, qual o seu nome?
Meu nome?
Sim, seu nome.
Makenzo, senhor.
Makenzo? Isso não é sobrenome?
Nome, senhor. Foi ideia do meu pai, minha mãe falava que ele gostava dessas coisas do Japão.
Ele olhou novamente o crachá do outro. Tinha simpatizado com aquele segurança falador e cordial, mas mesmo assim iria reclamar com o Miragaya, amigo desde os tempos da faculdade; onde já se viu deixar um carrão daqueles do lado de fora? Dirigiu-se à porta central, identificou-se, aguardou a liberação, observando a recepcionista através da fresta quadrada na porta de ferro. Os olhos iam acostumando-se à penumbra enquanto ele tentava seguir a linha imprecisa dos seios dela. O tecido escuro de corte reto e o botão no alto do colo impediram-no de fantasiar. O crachá estava visível, Kátia o nome dela. Admissão em junho de 2003. Dezesseis anos de instituição.
Depois de uma longa espera e responder muitas perguntas da moça, a porta destravou, ela indicou como empurrar a pesada folha de ferro e ele entrou.
Avançou devagar, acostumando-se com a escuridão. Miragaya vinha ao seu encontro. Vestido de calça jeans apertada, sapatos escuros, camisa branca e blazer, parecia um cantor sertanejo. Recebeu-o com um aperto de mão formal.
Salve, amigo.
Opa, como você está? – E estendeu a mão, cumprimentaram-se.
Tudo bem. Foi muito difícil chegar até aqui?
Nada. Tranquilo. Com GPS ninguém mais se perde nos dias de hoje.
É que por aqui o sinal é ruim, geralmente cai.
Se falhou nem notei. Mas, enfim, cá estou. O que você tem pra mim?
Eu que pergunto. O que você tem pra mim, que dizer, pra essa molecada? Acha que dá conta?
Tranquilo. Desde aqueles tempos de faculdade que descobri que levo jeito para esse negócio de dar palestra motivacional. É com isso que to livrando um dinheirinho.
Mas e a igreja?
Ah, a igreja tá bem. Mas tava melhor. Faz uns três anos que deu uma travada. Não diminuiu mas também não cresce.
Mas o pessoal vive dizendo que esse lance é tiro-e-queda...
Era. Aliás, verdade seja dita, só lá mais ou menos nos tempos do Lula é que a coisa foi boa, mas depois foi ficando um miserê desgraçado e agora o pessoal tá sem dinheiro e não rola dízimo, oferta, essas coisas todas, sabe? Tá foda,Mas, mudando de assunto, e você? Como está? Deu uma engordada, hein? Conta aí... como veio parar aqui no meio desses marginaizinhos “di menor”?
Para, caralho! Pode parar! – E bufou de raiva. Depois emendou, falando baixo - Caramba meu, já não te expliquei pelo telefone e mais de uma vez como deve se proceder aqui? Então... presta atenção nos termos que você vai usar! – olhou de lado. - Aqui é foda meu; só na brutalidade, entendeu?
Caramba, mas não tem ninguém aqui nesse corredor, só nós.
Aqui, caralho, as paredes têm olhos e ouvidos. Se você prestar atenção, disfarçadamente, vai ver que tem câmera pra tudo quanto é lado. E todo mundo desconfia de todo mundo. E... espera um pouco. Fica aí. Não! Isso! Isso isso isso. Fica aí. Isso. Para aí e fica quieto e meu ouve. Vou te explicar uma coisa e bem rápido: presta atenção! Aqui a gente não se conhece. Você “apenas” me procurou para dar uma palestra, oficina, qualquer coisa, pra esses maloqueiros. E como você tem um currículo, eu o contatei, entendeu?
Tendi...
Então ta. Vem comigo!
O outro não gostou da frieza. Depois de tanto tempo!... Mesmo assim seguiu o diretor pelo corredor frio. Passaram pelos agentes e entraram em uma pequena saleta. Miragaya ia apresentando Luís a todos que encontrava, até que chegaram à última saleta.
Esta é a minha sala. Entre, fique à vontade.
Uau! Belo espaço o seu. Nossa! Tudo organizadinho, bem o seu jeito.
É! É!
Tá, entendi. Onde tem um banheiro aqui?
Ali, à direita.
Beleza.
Luís entrou no pequeno toalete e Miragaya ficou arrumando sua mesa. Quando o outro voltou, ambos se dirigiram à sala onde os jovens os aguardavam. Foram passando nos diversos bloqueios de segurança, o diretor o apresentando a todos como o palestrante contratado, até chegar junto a uma porta entreaberta, onde estacaram. Miragaya o encarou.
Esqueci de falar, tem um moleque aí, um moreninho baixinho, que é um terror.
Como assim?
Ele parece com os outros. Geralmente fica bem calado. Mas quando fala, toca o terror. Toca o terror mesmo!
Porra, meu. Você está me assustando. Como assim?
Ele é muito, muito inteligente. Cuidado as respostas que vai dar se ele fizer alguma pergunta pra você.
Aaahhhh... fala sério. Inteligente? Aqui?
Eu tô falando. E não duvide do que estou falando. E presta atenção. O nome dele é João John. Quando ele abre a boca, geralmente bota todo mundo em pânico.
Como é que é? Jo...
João John. Isso mesmo. Na verdade o nome completo do moleque é João Batista John. Uma maluquice do pai, que já morreu. Ele já saiu mas sempre volta. Já fez de tudo, Acho que só não fez tráfico, é tipo bandidinho zona sul, refinado, fala mansa, encara a gente olho no olho. Por isso to avisando antes. Tome cuidado.
Caramba! Você está me assustando.
Não, não precisa se assustar. Só precisa tomar cuidado. Nunca vi alguém assim como ele. Nem na faculdade nem em lugar nenhum. Mas vai lá, senão atrasa.
E você? Não vai comigo?
Não. Quem vai te acompanhar é a Janete, assistente social da unidade. Janete, vem cá! Este é o Luís, o palestrante. Apresenta ele pros meninos. Boa sorte!
Mas...
Boa sorte. Janete, cuida dele! Obrigado.
Entraram.
Parte 2
Luís passou entre os jovens sentados em silêncio. Sentiu que os olhos cabisbaixos mas curiosos seguiam-no enquanto se aproximava da mesa. Pousou a pasta e virou-se. Dois agentes tinham entrado e se sentaram junto à porta. Janete, que o seguira e se posicionara ao seu lado, o encarava com os olhos vivazes por trás dos óculos.
Podemos começar?
Sim, podemos.
Vai rolar vídeo ou alguma interação?
Não não não! Será só uma palestra mesmo. No gogó. E riu amarelo.
Janete cumprimentou a todos e iniciou a apresentação. Os olhos dele, intimidados, procuravam sorrateiros o moreno baixinho. José John. José não, João. Quem era? Por que o Mira tinha insistido tanto nos cuidados com esse pequeno bandido com nome esquisito? Era uma pegadinha? Por que não avisara antes?
Quando se deu conta, os meninos o encaravam com ar quase risonho. Olhou de lado. Janete o encarava, prestes a explodir num sorriso também.
Sim?
Eles estão aguardando para ouvi-lo.
E uma ruidosa gargalhada enfim explodiu no ambiente. As maçãs de seu rosto queimaram. Olhou. Até os seguranças sorriam lá no fundo.
Bem, pessoal, bom dia.
Bom dia, a pequena multidão respondeu.
Bem, antes de tudo, é um prazer estar aqui com vocês. Eu sei muito bem a situação que é viver aqui. E sei também que aqui não é bem o melhor lugar do mundo. Mas o que vim oferecer para vocês é um paliativo para suportar as dores maiores que o mundo há de oferecer quando ultrapassarem estas grades lá fora, e forem para a liberdade. Quando eu era menino, também cometi os meus errozinhos, sabe? A diferença é que consegui me esquivar – vocês sabem o que é esquivar? Quem aqui sabe o que é esquivar? Ninguém? Então, esquivar significa desviar, sair de lado, entenderam? – e com isso consegui vencer na vida. Na verdade, vocês todos vão vencer na vida, quem crê nisso? Eu creio... mas para isso é preciso dar um pequeno passo. Jesus Cristo disse um dia...
E ele continuou sua parola por quase vinte minutos ininterruptos. Quando percebeu os primeiros sinais de desatenção dos meninos, iniciou uma pequena atividade interativa com os adolescentes. Brincava, questionava, absorvia a atenção de todos ali, conseguindo arrancar até alguns sorrisos tímidos de um número reduzido de interessados. Circulou pela sala com desenvoltura, tocava com sutileza a ponta dos ombros de alguns garotos, garantia a empatia e até uma certa intimidade, até que viu Miragaya junto à porta, que o observava com atenção. Suas vistas turvaram, as faces esquentaram, gaguejou. Calou-se por um breve momento. Depois retomou a fala. Os pensamentos se dispersaram. Não ousou olhar novamente para o lado do amigo antigo, preferiu se concentrar no assunto que estava sendo abordado. Até que seus olhos esbarraram no olhar frio e penetrante do garoto que estava sentado na fila do meio. Um sorriso lacônico fulgia no rosto sereno e calmo da quase criança. É ele!
E ele novamente perdeu-se no emaranhado de seus pensamentos. O que estava falando? Arranhou a garganta e voltou para pegar um copo dágua sobre a mesa. Não tinha água. Virou-se para a frente. Encontrou o olhar de Janete atento aos seus movimentos, esboçou uma mímica pedindo água. Ela saiu da sala. Mira tinha saído também. Melhor assim. Voltou sua atenção para a platéia. A maioria dos meninos estava dispersa, cochichando, mas alguns prestavam atenção aos seus movimentos. Precisava retomar o assunto abordado, mas... que diabo mesmo estava falando até perder-se no labirinto?
É… bem.... e coçava as mãos, uma na outra. Vício incontrolável quando ficava nervoso. Como eu estava falando…
Nisso Janete surgiu à porta, trazendo uma garrafinha dágua. Mira voltava também, logo atrás. Luís avançou até ela, pegou a garrafa. Obrigado.
Sorveu rápido, enquanto tentava processar o que iria falar. Agonizava sem saber o que fazer no segundo seguinte. Nesses anos todos, aprendera a ganhar dinheiro usando alguns atributos que a vida lhe presenteara, a sagacidade para os negócios, as palavras doces e bem adequadas para ouvidos famintos, a facilidade em transitar nos mais distintos campos do amor, os discursos sempre carregados com o verniz de emoção simplória. Plantado ali no meio daquela sala fria, súbito levantou a cabeça, encarou a pequena plateia, correu os olhos, encontrou os olhos do “pequeno polegar”. Apontou o dedo.
Você aí, me responde uma coisa.
Quem? Eu?
Sim. Você. Quando você tinha uns 5, 6 anos, qual era o seu sonho? Que tipo de brinquedo queria ganhar?
Silêncio na sala por breves segundos. O garoto estava vermelho, desconcertado. Virava os olhos procurando uma resposta no fundo amargo de sua memória. Aos poucos um alarido começa a crescer como se fosse uma gradação aumentando de volume. Luís já quase sorria, feliz por ter dado um xeque - quem sabe um mate? - no pirralho sabe-tudo. Não conseguia antever a resposta, mas adiantar-se em abordar o garoto tinha sido um golpe bem certeiro. Até já conseguira lembrar de qual era a atividade antes de ver que Miragaya estava no recinto. Iria insistir com o rapaz, torcer ele, dobrá-lo para que os outros soubessem que tinha alguém que era superior à falsa inteligência desse bandidinho de merda. Onde o Mira estava com a cabeça? Querer assustá-lo com um moleque que logo na primeira porrada acusou o golpe e caiu na lona,eh, hein? E os outros ali iam respeitá-lo por isso.
Então, meu rapaz. Desculpe mas não tenho toda a manhã.
Miragaya continuava lá, braços cruzados sobre o peito. Estava junto à porta, quieto, olhos atentos. E ele, incontido, gesticulando bastante.
Vamos, meu garoto! Que tipo de sonho você tinha? Aliás, vou facilitar sua vida, que tipo de sonhos você tem hoje? Quer sair daqui, quer voltar a estudar, ou trabalhar, ganhar seu dinheiro?
Senhor? E uma mão levantou-se na fila de trás.
Sim?
Até agora não entendi que palestra é esta, desculpe.
Então esse agora é que “era ele”?! Porra, errara o alvo! E agora?
Seu nome por favor?
Messias, senhor.
Putz! Não é! Que merda é esta? Que jogo é esse? O que estou fazendo aqui?
Então, Messias, como eu já tinha falado, eu sou especialista em motivação interior. Então, quando…
O senhor ainda não tinha falado.
Hã?!...
O outro moreno, da primeira fila, é que interpelara ele agora.
Não entendi.
O senhor ainda não tinha falado qual era o tema desta palestra.
Ah, sim, desculpem. Suava, apesar do frio. Passou a mão na testa. A solícita Janete, parece que adivinhando seus pensamentos, veio com uma toalha de papel.
Obrigado. Então, como estava falando… como é mesmo seu nome?
Jair, senhor.
Então, Jair, Messias… pôs as mãos no bolso. Estava gesticulando muito. Precisava se conter. Bem, como eu estava falando pra você… como é mesmo seu nome?
Eu?
Sim, seu nome?
João.
John?
Não, senhor, meu nome é João.
Ahhh.. sei.
John é o sobrenome.
!!!
É?!... então, você pode comentar com a gente aqui quais são alguns dos seus sonhos no momento?
Ah, senhor. São vários.
Conta alguns. Pelo menos um…
Bem, senhor, uma dúvida que me surgiu aqui, agora…
Eu perguntei pra você sobre seus sonhos.
Senhor, posso enumerar um, dez, cem sonhos aqui. O que gostaria de saber, no entanto, é de que forma concreta o senhor poderia contribuir com a realização de algum deles. Um, que seja… É possível?
Luís olhou-o com curiosidade, depois para Miragaya, que continuava calado junto à porta. Janete deu dois passos, adiantou-se, prevendo que precisava socorrê-lo de alguma forma. O silêncio da sala era pesado.
João, sem mover um músculo sequer do corpo, alvejou-o em seguida.
Outra coisa, senhor. Às vezes vem uns oficineiros novatos aqui e a gente fica de boa com eles aqui, sozinhos, só no básico. A unidade aqui, pelo que consta, é tranquila, não dá muito trabalho pra instituição. Então, até agora não consegui entender porque a presença do diretor, aqui, neste momento; a ponto de deixar o senhor, com esse currículo invejável, tão desconfortável.