átrios, ventrículos

Levaram-me hoje cedo. A ambulância num estridente galopante violentando semáforos e guias e, nada mais era do que um erro fatal. Um roteiro reescrito a minha revelia, de fim inusitado, inodoro, diferente do ar nesta máscara que insiste em me fazer respirar.

Sinais vitais estabilizados. Pressão sanguínea pulso respiração temperatura. Diagnóstico, ainda vivo. Convença me. O prontuário está errado e meu nome também.

Te digo, já não me sinto. As pernas os braços os dedos a cabeça e, nem sequer sangue, me correm às veias. Sou um vazio. Estou um vazio. Não! Espere, parece que ainda há algo um conteúdo obscuro que me salve. Que me deixe aqui nesse embaraço embaralhado entre o inconsciente consciente e o corpo, só não sei ainda do que é feito, se de tripas músculos cartilagens e ossos, se de nervos veias órgãos tecidos, ou da estopa suja e usada de feno de pano ou de alguma engrenagem capaz de sobreviver ao agora.

Enganei me, numa tentativa débil de resistência. Inábil, inoperante e cínica. Mais uma ironia, um sarcasmo imoral de vida. Não sobrevivo ao próximo ato, está marcado escrito assinalado, não sou eu quem digo. Medicação prescrita não me servirá, não a desperdice comigo. Já não tenho voz e, no máximo abro a boca num arremedo desarticulado, um balbuciar sem sincronismo, anacrônico infértil sem eco, oco.

Sou de um tempo antigo, mais do que posso lembrar. Carrego no ventre a inércia da resignação que aceita ser coabitada, um luva-mamulengo que se dobra ao vento, rodopia dança, e é levado. Depois desveste-se. Sobra a mão. Sai de cena, vai para caixa.

Essa insistência em salvar-me, se nem a isto me presto. Prefiro a acomodação cúmplice do escuro, do que reproduzir falas que não são minhas, recitadas para o aplauso frouxo da claquete, paga para gostar. A vaia é sempre legítima, agourenta cinzenta e, carrega flores murchas.

Tenho dúvidas sobre o papel. Oh Deus, esclareça-me. Viver ou sobreviver. Gente ou fantoche. Existo ou sou uma invenção aleatória de um mestre qualquer. Tenho sangue ou fios. Defina-me, pois preciso agora decidir sobre a linha, polarização despolarização, átrios ventrículos, seguirei em ondas T P U ou acabo inexato neste _______________ ponto final.

Lu Genez
Enviado por Lu Genez em 25/06/2019
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