À ESPERA DO PAPAI NOEL

De fato, Zulu não sabia sonhar. As casas muito pobres, as pessoas pobres, a terra pobre... tudo ao seu redor. Como eram os seus pensamentos? O sonho era como um papel em branco atirado na terra seca. E os pensamentos? Deviam ter o mesmo gosto do pastel do bar de seu Zé, ali da esquina. Bom sujeito o velho, mas com cara de brabo que só Deus vendo. Mas bonzinho, pois sabia tratar bem os pequenos como Zulu. Zulu não entendia direito esse negócio de sentimento, mas sabia que o velho era bom. Gozado isso, mas sabia. Pelo menos, as pessoas grandes diziam do seu Zé: “velho bom aquele, ajuda Deus e todo mundo”. Não tem quase nada, é pobre também, mas mesmo assim não deixa de ajudar. Ser bom seria isso então? Zulu ouvia sempre a mamãe dizer essa palavra e achava estranho. Não entendia direito o que queria dizer. E olha que mamãe era danada pra saber das coisas; melhor ainda que o papai. Quase não via o papai, ou melhor dizendo, muito pouco, só duas vezes por ano. Não entendia muito bem, mas ouvia sempre mamãe dizer que ele estava lá pras bandas do estado de São Paulo. Parece que cortava cana para outros homens com cara de brabo como o seu Zé. Mamãe contou um dia que foi o “gato” que levou papai embora para longe; conversou um tempão com ele, acertou tudo e depois apenas a estrada. Que caminho seria esse? Não sabia por que mamãe chorava dia e noite; tanta coisa estranha na vida...

Como era o mundo para o menino? O mundo para ele, era ver mamãe labutando inutilmente no roçado do terreiro. O mundo para ele, era ver mamãe colocando pedras no pé do cruzeiro, lá no alto do morro. O mundo para ele, era correr atrás do irmãozinho menor, quando sentia uma coisa estranha dentro dele, que não sabia ser a danada da raiva. O mundo para ele, era ver a vizinha dona Maria Filó na benzedeira. O mundo para ele, era ver os irmãos mais velhos voltando do trabalho. Mas como? Ouvia dizer que há muito tempo, trabalho não existia mais na sua cidade. Outra coisa estranha. Deviam estar todos atrás do tal sonho. Que gosto teria o danado? Pois o sonho, para todos irem atrás dele, devia possuir um gosto qualquer. Quem sabe seria algo mais do que um pedaço de papel branco atirado na terra seca? Com certeza, mais gostoso do que o pastel do bar do se Zé, ali da esquina.

De fato, Zulu não sabia sorrir. Difícil de acreditar, mas nunca sorrira. Nem mesmo no último aniversário. Nem quando ganhou de presente do padrinho, um gato cinzento e rajado. Olhava espantado o bichano; pelo menos gostava de correr como ele e logo ficou sendo o seu companheiro de brincadeira. Era o seu único companheiro. Era o seu único amigo. Chegava a conversar com ele, contar para ele as várias coisas, mas “onde já se viu gente cunversá com animá? ” Era a voz da mamãe, danada pra saber das coisas. Mas falava com ele assim mesmo e sem saber como, viu nele um amigo íntimo. Nesses momentos de brincadeira, queria sorrir, mas não conseguia; algo dentro dele o impedia. Conversa vai e conversa vem, perguntou, um dia, ao animal, quando papai ia voltar. Gozado, pois só ele devia saber. Só viu papai uma vez naquele ano; mamãe já falara sobre um “gato” que o levou embora pra longe. Devia ser outro gato, não o seu. E o amiguinho não respondia. Tentou tirar a dúvida com a mamãe. Esta falou chorando que só no mês do natal.

Natal, Natal. Velas, luz, cores, alegria, comida, árvores, crianças, brinquedos, Papai Noel, Menino Jesus. Via as pessoas grandes comentando um tanto de coisas boas sobre o natal. Este devia possuir um gosto especial, talvez um gosto bem melhor do que o pastel do seu Zé, ali da esquina. Talvez um gosto de doce. O padrinho contava para ele tudo sobre o natal; mamãe dizia que o Papai Noel só chegaria no mês de dezembro. Mas Zulu não sorria, pois não sabia sorrir. Podia sonhar com um brinquedo especial que nunca viu. Podia sonhar com uma árvore mágica que desse frutos de todas as cores. Podia sonhar com um montão de comida diferente, que nunca comeu, mas Zulu também não sabia sonhar. Mas passou a esperar o Papai Noel assim mesmo; queria conhecer o tal Papai Noel, conversar com ele, do mesmo jeito que conversava com o seu gatinho. Não era um sonho, mas desejava ter outro amigo. Talvez ele explicasse as coisas que Zulu não entendia; talvez ele gostasse de correr também quanto o seu gatinho; talvez ele ficasse morando todos os dias com Zulu. Nesse momento, todos riram; a mamãe riu, o padrinho riu, os irmãos riram também. Até a dona Maria Filó que só gostava de benzer, riu também com aquelas gengivas pretas e bem gastas. Só Zulu não riu e nem ao menos sorriu, pois não sabia. Só ficou olhando, feito um bicho bobo, todos rirem na sua frente. “Onde já se viu Papai Noel todos os dias do ano? Papai Noel só aparece no mês de dezembro, seu bobo. ” Zulu continuou olhando para as pessoas; ficou parado sem se mexer; nessa hora deve ter pensado um bocado de coisas. Pelo menos, pensar ele sabia; e os pensamentos de crianças são bem gostosos como os pastéis que Zulu adorava comer. Mas mamãe não podia comprar os pastéis. Seu Zé com dó de Zulu, chegava a dar pastéis de graça para ele, já que seu Zé ali da esquina, era um velhinho bom, pois ajudava Deus e todo mundo.

Zulu, mesmo não sabendo sorrir, mesmo não sabendo sonhar, ficava esperando o Papai Noel chegar um dia. Pelo menos sabia esperar. Dezembro. Estava longe ainda, mas Zulu não sabia. Para ele, dezembro sempre estava quase chegando. Nem mamãe que sempre sabia das coisas, imaginava um dezembro tão longe. Falava com o seu gatinho, corria junto com ele, punha o gatinho no colo. Assim todos os dias, assim todas as horas, e dezembro nada de chegar. Nada também do bom Papai Noel chegar.

Zulu, Zulu. Nome estranho para um menino. Sabia que esse não era o seu nome verdadeiro; não passava de apelido. Foi numa certa vez, quando ele saiu com a mamãe pra ir à missa na igreja matriz. Ela ficou conversando um tempão com um senhor que entendia um bocado de coisas africanas. Olhou para o garoto. Apenas disse: “Ele tem cara de Zulu. ” Mamãe, também coitada, sem entender, justamente ela que entendia tudo, achou estranho. “Por que Zulu, o que é isso? ” “Ora, porque ele é bem preto”. Zulu, que nunca tinha olhado direito para a sua pele antes, ficou olhando um tempão para ela. Mamãe era sarará e mais clara, os irmãos também. Papai, que quase não via, já possuía a pele como a dele. Mas Zulu achou muito bom. Mamãe dizia que a cor negra sempre fora forte e bonita. Mamãe achou interessante o apelido. Assim passou a só chamar o filho de Zulu. Os irmãos também só o chamavam de Zulu. E Zulu ficou e pareceu que ficou para sempre. Engraçado, que era Zulu pra lá e Zulu pra cá, e o menino esqueceu o seu verdadeiro nome. Achava que até a mamãe de tanto chamar o filho de Zulu, também acabou esquecendo o verdadeiro. Nome é também uma espécie de bichinho engraçado. Todo mundo vai aprendendo a usar até todo mundo se acostumar.

De fato, Zulu, como não sabia sorrir e não sabia sonhar, também não sabia chorar. Mamãe falava; mamãe dizia para todo mundo. Chorou só quando nasceu e poucas vezes depois quando ainda era bebê e crescidinho. Certa vez, todos em casa passaram uma fome ainda maior do que das outras vezes. Dentro de casa, não havia nada, nem feijão, nem farinha. Papai não mandou dinheiro algum para mamãe, desde que foi embora. Zulu escutava a fala dele antes de partir. Sempre mandaria dinheiro para a mamãe até ele voltar. Mamãe chorou muito nos últimos meses, os irmãos também choraram bastante, só Zulu ficou quieto apenas brincando com o seu amiguinho, à espera do bom Papai Noel. Mas como todos, tinha muita fome e ela era mais braba do que a cara do seu Zé ali da esquina. Talvez mais braba do que os homens para quem papai cortava cana lá pras bandas do estado de São Paulo. Pedia comida para mamãe, para os irmãos mais velhos. Mamãe não gostava que ele pedisse muito e por isso batia nele. A mesma coisa, os irmãos. Mamãe também não gostava que ele pedisse nada na rua. Se pedisse, eram tapas na bunda, nas costas e no rosto, pra ele aprender “o que é bom pra tosse”. Até os pastéis do seu Zé, Zulu não comia mais. Também sabia que seu Zé não tinha mais pastéis para oferecer pra ninguém. Não tinha mais pastéis pra dar de graça pro Zulu. Sua cara já não era tanto de brabo, agora de tristeza. Zulu bem que podia chorar, mas não chorava, pois não sabia chorar. E vivia a correr todos os dias com o seu gatinho. Presente de aniversário do bondoso padrinho.

Mas o gatinho, nos últimos dias, passou a correr menos, a miar cada vez menos; estava muito magro e Zulu não chorava. Certa vez, ficou bem imóvel, estirado no terreiro e Zulu bem que podia chorar, mas não chorou. Só ficou pensando que o amiguinho não podia mais esperar o Papai Noel chegar, pois agora dormia profundamente. Como se ele tivesse ido embora que nem o pai, assim, falavam todos. Agora Zulu teria que esperar pelo Papai Noel sozinho.

Zulu não sonhava, não sorria, não chorava, mas esperava o mês de dezembro. Como seria o rosto do Papai Noel? Não devia ter a mesma cara de brabo do seu Zé. Seu rosto devia ser diferente do rosto dos outros homens que conhecia; imaginou que podia ter o rosto do padrinho. Ouviu alguém falar que ele ria forte e alto e seu riso alegrava as crianças. Ouviu alguém falar que o velhinho perguntava pra todo menino ou menina se tinha sido um bom menino ou boa menina durante o ano. A cidade paupérrima passava a cada dia a amanhecer e anoitecer diferente. As pessoas agora riam mais do que choravam. Seria a chegada do mês de dezembro?

Cedo ou mais tarde, papai de Zulu chegaria de longe, cruzaria a porta de casa; mamãe não sofreria mais, não choraria mais. Seria o mesmo gato que levou papai um dia embora e que traria papai novamente? Pela primeira vez na vida, Zulu imaginou que iria conseguir sonhar, chorar e sorrir de verdade. Pela primeira vez na vida, Zulu imaginou que finalmente iria conhecer o verdadeiro Papai Noel e no seu eterno saco de presentes, que ele tanto carregava de um lado pra outro, haveria uma surpresa muito boa para ele, coisa melhor ainda e mais gostosa do que os pastéis do bar de seu Zé ali da esquina. O gatinho, o seu único companheiro e amigo de antes, com certeza, estaria de volta, agora mais gordo, mais sadio, miando e miando sempre pelo terreiro como sempre fez, pronto pra brincar, pra correr pra lá e pra cá, sempre junto de Zulu.

Assim a vida do menino não seria mais como um simples papel em branco atirado, ao acaso, no meio do terreiro sujo e bem ressequido. E seus pensamentos seriam mais doces, feito bons brigadeiros, teriam cores diferentes e sentidos. Sentidos bem coloridos e natalinos, sentidos de criança...

Wagner Andrade
Enviado por Wagner Andrade em 25/06/2019
Código do texto: T6681562
Classificação de conteúdo: seguro