Chá de canela
Olhou a lua através do portão pela decima vez naquela noite, ainda era a mesma lua de 3..4 semanas atras, talvez ainda não completamente cheia, ou talvez fosse a percepção tristonha que defasou sua visão, mas sabia que de fato ainda era a mesma lua, afinal temos apenas essa não é? As coisas haviam mudado, pensava no termo "coisas" quando na verdade queria se referir a sentimentos, pessoas, relações ou a falta disso tudo. Não que não apreciasse a própria companhia, os bons livros, a confortável cama ou a janela com vista para os limoeiros na horta que eram motivo de seu orgulho, era bom estar em casa no conforto e na paz do lar. Mas não havia paz ali. Havia uma pungente e discreta insatisfação no lugar, não era tristeza, era ausência de alegria... o que de determinado ponto de vista poderia ser melhor ou pior. A água da chaleira já estava quente, junto com a canela e 2 colheres de açúcar. - Ela não gostava de canela. Riu baixinho de lembrar de algumas conversas que tiveram, a maioria delas girava em torno de ele ser velho, cheirar a velho e ter hábitos de velho, ser careca e cego. Claro que nada disso era verdade era a mais pura encheção de saco, assim como ela não era gorda, suja nem fedia. Essa era a foma que tinham de expressar seu carinho, mas ele não se aguentava e vez ou outra se dobrava em elogios... quase nunca recíprocos, mas não se importava. Ficou serio de repente, como uma dose de martíni... as lembranças são doces no começo e depois amargam ao engolir. Tomou um gole do chá para limpar o nó na garganta, estava quente de mais então deixou a xícara na janela para esfriar e não pode deixar de encarar a lua pela decima primeira vez. Um suspiro profundo seguido de um relaxamento por todo o corpo, não percebera o quão tenso estava, era um daqueles suspiros onde mente e corpo dizer para a alma "é, eu sei", é a sensação de quando percebemos que cometemos um equívoco, e solenemente nos decupamos, ainda confusos e aborrecidos por perceber o engano, mas não sabendo ao certo no que errou. Era mais profundo que isso, tentar enxergar, entender o que deu errado. Ele sabia pela filosofia budista que seguia que isso era perda de tempo, olhar o passado era desperdício do presente, ainda assim, não podia evitar rápidas viagens na memoria em busca de respostas. Bobagem. Afinal as vezes as coisas são apenas o que são, nada mais, sem segredos, truques ou significados ocultos, algumas vezes não há nada o que interpretar ou decifrar. Deslizou o bloqueio do celular, havia algumas mensagens, achou melhor não responder nenhuma, pegou o chá e foi para a cama. O refugio das pessoas varia muito; cama, banho, colo da mãe, bebida, drogas, baladas, outros amores etc... estava no ultimo lugar onde queria e no único lugar que precisava, estava só e mergulhado em si mesmo, onde não há necessidade de vestir disfarces e manter aparências. Muitos não suportam conviver consigo mesmo. Talvez esse seja um dos maiores desafios para os seres humanos: aceitar que nascemos e morremos sozinhos, somos cuidados por um tempo, cuidamos em outro, partilhamos momentos, mas só. não pertencemos a ninguém e ninguém nos pertence, refletiu sobre isso um instante, sobre a brevidade dessa jornada aqui e nas companhias que teve, ficou feliz por ter compartilhado um pouco da sua vida com cada um que passou por ela, escolhera bem cada pessoa para cada momento, e no fundo por mais que não compreendesse na totalidade os acontecimentos que levaram a tal desfecho, sabia que estava onde deveria estar, onde seu nível de consciência permitia que estivesse. Lembrou do primeiro amor de Van Gogh, e temeu por um instante estar louco, tornou a rir, havia momentos que tudo fazia sentido e se encaixava, e a paz reinava em todo seu ser, e havia momentos que não. Dormiu antes de tomar o chá, antes de puxar as cobertas, antes de olhar a lua pela decima segunda vez, mas antes da inconsciência completa, pode lembrar ainda do ensinamento mais importante que aprendera até então: nada é fixo, nem permanente.