O PROGRAMA

Quando Lucineide viu o famoso apresentador da TV chegando em sua casa, mal pôde acreditar. Deus ouvira suas preces. Às lagrimas, abriu o portão de entrada e atirou-se em seus braços. Era muita emoção. Um filme passava em sua cabeça.

De suas casas, ao som de uma triste música instrumental, os telespectadores comoveram-se com a história da pobre moça de apenas dezenove anos, órfã de pai e com mãe doente, que desde os treze anos assumira as responsabilidades do lar. Um minúsculo barraco de três cômodos, compartilhado por ela, sua mãe enferma, quatro irmãos pequenos e, esporadicamente, com um irmão mais velho, viciado em crack e diversas passagens pela polícia.

Os depoimentos emocionados, de Lucineide, que abandonou os estudos para trabalhar, fazendo diversas atividades de subemprego desde que a mãe adoecera; da mãe enferma, que antes havia feito de tudo para pôr comida à mesa e agora, sem suficiente assistência do Estado se encontrava naquela situação; e, principalmente, dos irmãos menores – com idades entre cinco e onze anos – maltrapilhos e de aparência raquítica – chorosos, relatando fome, vontades e infância perdida, comoveram também os patrocinadores, que em troca de um pequeno merchandising, doaram benesses para aquela família em vulnerabilidade social.

O pequeno barraco foi reformado. Reconstruído, melhor dizendo. Ganhou mais cômodos, mais espaço. Quartos com camas e colchões confortáveis. Geladeira, forno micro-ondas, computador. Até uma televisão de tela grande e fininha! A mãe ganhou tratamento médico em uma rede particular. Lucineide, depois de um dia de princesa, como diziam, bem tratada e com a autoestima elevada, foi admirada. Recebeu elogios pela beleza revelada.

Com a promessa de voltar à escola, foi agraciada com um curso de Auxiliar de Escritório e o compromisso de um futuro emprego para quando concluísse os estudos. O irmão viciado iria para uma clínica de reabilitação. Parecia um sonho. Era um sonho se realizando. E pensar que sem a quem mais recorrer, resolvera arriscar sua uma última tacada naquela carta-súplica de ajuda, que resultara em um final feliz. Tudo agora seria diferente.

Cerca de dois anos depois, Lucineide viu que as coisas não caminhavam conforme ela acreditou que seria. Mesmo com o bom tratamento médico recebido, meses depois de o programa ir ao ar, sua mãe não resistiu e morreu. Ela agora era oficialmente a responsável pelos quatro irmãos mais novos e pelo lar. Com o fim do vale-compras oferecido pelo supermercado, as despesas começavam a pesar. O negócio da máquina de estampar camisas também não se mostrou tão lucrativo como imaginava. Em todo canto havia alguém que fazia aquilo. No começo, pela exposição na TV, conseguiu vender algumas peças. Depois, já não era novidade. As vendas foram caindo, acabaram usando as últimas malhas e vendendo a máquina para ajudar nas despesas. Os dez mil, exibidos em um cheque gigante pela moça do Banco, foram utilizados para pagar contas atrasadas, retirar os nomes dos serviços de proteção ao crédito. Pouco sobrou para manutenção da família. E tudo voltava à estaca zero.

Joelson, o irmão problemático, deixou a clínica seis meses depois. Estava de volta às ruas, usando drogas, cometendo delitos. Ficou mais descontrolado depois da morte da mãe. Vez ou outra aparecia em casa e furtava alguma coisa para vender e sustentar o vício. Foi assim que ficaram sem a televisão, sem batedeira, sem rádio e sem secador de cabelos. Às vezes, ele ficava violento, quebrava coisas, batia nas crianças e batia em Lucineide para conseguir dinheiro.

Lucineide, aos trancos e barrancos, terminou o supletivo e ingressou no curso oferecido na TV. Infortunadamente, ao formar-se, verificou que a empresa que lhe oferecera emprego estava em fase aguda de cortes no quadro funcional devido à crise e não poderia cumprir o compromisso com ela firmado naquele momento. Lucineide não esmoreceu. Espalhou currículos em outros lugares. Tinha uma profissão agora. Era Auxiliar de Escritório. Entretanto, não recebeu contato algum para trabalhar.

As coisas foram piorando novamente. Lucineide atrasou uma prestação. Atrasou a segunda. Cortou gastos. Precisou diminuir a quantidade e qualidade das compras do mês. Mesmo assim, as contas não fechavam. Tentou contato com a produção do programa novamente. Foi informada que havia uma fila de pessoas na mesma situação. Ela já havia sido ajudada e deveria esperar para que pudessem ver se seria possível ajuda-la novamente.

O cerco se fechava. Lucineide tentou fazer faxina, ser babá, garçonete. Nada funcionou bem. Não conseguia estabilidade. Entrou para o ramo de “consultoria” de cosméticos, mas o lucro estava aquém do que ela precisava. Voltou a vender balas e doces na rua, conforme contou fazer antes, no programa da TV. Estava desesperada.

Um dia, uma de suas irmãs, Tatielle, a mais velha na sequência dos quatro, flagrou Lucineide chorando no quarto. A menina, agora com treze anos, logo percebera o motivo do choro. Disse algumas palavras de conforto e ofereceu ajuda, assim como Lucineide havia feito com sua mãe no passado. Lucineide prontamente rejeitou a oferta e disse que não abria mão dos estudos dela e dos irmãos. Disse que daria um jeito. Mesmo sem saber como.

A garota pegou um dos álbuns de fotografias que estavam sobre a cama e começou a olhar. Fotos do programa da TV.

– Você ficou tão linda esse dia! – Disse olhando uma das fotos em que Lucineide fora submetida a sessões de maquiagem e penteados para o quadro do programa. – Parecia uma modelo. Devia tentar. – Continuou, sorrindo para a irmã.

– Boba! Modelo, eu? Até parece. Quem dera... – Disse Lucineide se divertindo. – Preciso é parar de sonhar e trabalhar pra garantir a vida da gente. – Prosseguiu em tom mais sério. – E você, mocinha, vá fazer a lição que amanhã tem aula. Tô de olho, viu?!

– Tô indo... – respondeu a irmã, revirando os olhos e saindo do quarto.

Lucineide permaneceu por algum tempo olhando a fotografia. Lembrou-se de que quando era criança, queria ser artista. Trabalhar na televisão. Ser apresentadora. No instante daquela fotografia, tudo pareceu perto demais. Pena que não se concretizou. Olhou mais alguns instantes. Em sua cabeça, uma ideia ganhava corpo e com ela, um turbilhão de sensações. Pegou o celular, ligou para alguns conhecidos. Pelo aplicativo de comunicação, fez mais alguns contatos. Algum tempo depois, saiu do quarto mais arrumada que costumeiramente. Trazia consigo uma bolsa. Chamou decidida:

– Tati!

– Que foi? – Respondeu a irmã, vindo ao encontro de Lucineide.

– Arruma a janta, toma conta dos seus irmãos. Dez horas todo mundo na cama, inclusive você.

– Vai sair? – Indagou a menina.

– Tô indo trabalhar. – Disse Lucineide.

- Sério? Onde? – Continuou a irmã.

– Vou ser garçonete num barzinho aí. – Respondeu sem dar detalhes. – Preciso que tranque a porta e tome conta dos seus irmãos. Se o Joelson aparecer, me liga. Posso contar contigo? – Prosseguiu Lucineide.

– Claro! Deixa comigo. – Replicou a menina.

– Juízo! Não vai me decepcionar, hein! – Disse Lucineide, em tom maternal. – Fica com Deus. – Despediu-se dando um beijo no rosto da irmã.

– Vai com Deus também! – Disse Tatielle, vendo a irmã sair, após despedir-se dos irmãos, deixando recomendações para cada um.

*********************************

O carro vinha devagar pela avenida. De dentro, motorista e passageiro observavam atentamente o movimento na calçada. Parou de repente. A mulher deixou seu lugar e veio logo, debruçando-se de forma provocante à porta do veículo.

– Oi! Posso ajudar? – Indagou, receosa.

– Olha! Carne nova no pedaço! – Disse o motorista.

– Verdade. Bonita, não?! Parece até modelo... Artista de televisão. – Respondeu o outro, admirando as curvas exibidas pela saia minúscula e pela peça superior, cujo decote deixava parte dos seios à mostra e exibia completamente o umbigo.

O rosto era belo, maquiagem forte. Cabelos encaracolados. Uma beleza rústica.

– Qual seu nome, moça? – Perguntou o rapaz.

– Lucy. – Respondeu a mulher, esboçando um sorriso, pouco à vontade.

– Qual a boa, Lucy? O que você faz? Quanto custa? – Arguiu o motorista, sendo prático.

– Trinta Reais, cada - frisou. - Faço tudo. Vamos?! – Tentou parecer sexy.

– Tá caro, moça! – Replicou o motorista

– Cinquenta os dois. – Disse ela, quase suplicante.

Os dois se entreolharam.

– Carne nova... – Ponderou o passageiro.

- Hum... Tá caro. Que tal quarenta? Pra gente experimentar. – Piscou o motorista. – Próxima vez, aumenta.

Ela hesitou por um instante. Meneou a cabeça em sinal afirmativo.

– Então entra aí, Lucy! Vamos nos divertir!

O carro arrancou com os três. Tempos depois lá estava Lucy de volta à avenida. Assustada. Tentando se recompor. Tentando não pensar no que acabara de fazer. Pois agora, só restava esperar... Esperar pelo próximo programa.

W B Guilherme
Enviado por W B Guilherme em 12/06/2019
Código do texto: T6671078
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2019. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.