Pé vermelho

A casa da colônia da fazenda tinha telhas de barro, fogão a lenha, água encanada. À noite, os lampiões eram acesos com gás que o patrão provia. Camas de colchão de palha, vizinhos em outras casas iguais. Um luxo. A maioria dos moradores vinha do Jequitinhonha, nas Minas Gerais. Lá era pobreza. Aqui o café garantia bom trabalho e vida digna. Compadres para conversas e viola à noite. Aos domingos, reza na capela, peladas no campinho de chão, pescaria de lambaris e traíras no riacho, perambulagem com os cães à cata de alguma distraída perdiz. E, se o vento ajudasse, os meninos poderiam até empinar capuchetas feitas com o papel das compras no armazém. Era bom ver algo simples feito pelas próprias mãos perder-se de tão longe no azul sem fim do céu.

No inverno fazia frio, muito frio. Muito mais que no Jequitinhonha. Lá não se sabia de frio assim. Às vezes o chão amanhecia branco da geada, a névoa tudo toldava, o horizonte sumia. Eram manhãs de incerteza. Os homens ficavam desamparados na terra fantasmal, mulheres e crianças não saíam de casa, os cães não se afastavam das brasas dos fogões. Não seria possível aguentar se a casa não fosse de tijolos e tivesse portas e janelas, se o fogão não fosse a lenha e se a branquinha não ajudasse a esquentar.

Quando os cafeeiros já estavam grandes, de se colher encarapitado na escada, veio um inverno ainda mais frio. À noite, João, a esposa Ana e os dois filhos em idade de jogar pião e ximbra tiveram de enrolar-se juntos em todos os cobertores que tinham, bem perto do fogão.

Pela manhã João vestiu calça sobre calça, casaco sobre casaco, forrou a botina com papel, enrolou toalha no pescoço e orelhas, colocou a palha esgarçada na cabeça, tomou uma segunda caneca de café bem quente e enfrentou a brancura gelada. Lá pelo meio da manhã voltou, mais cedo que de costume. Parecia ainda mais acabrunhado do que o homem que partira bem cedo. Ana inquiriu-o com o olhar aflito, sem nada falar.

-- A geada queimou o café. Está tudo perdido. O patrão diz que não planta mais café. Vai plantar roçado de máquinas. Os boias-frias vão ficar sem trabalho...

Um mês depois, num sábado à noite, João, Ana e os dois meninos perambulavam numa movimentada rua do centro de São Paulo. Pediam auxílio a quem passava. Tinham acabado de chegar à cidade, vieram de ônibus, gastaram tudo que tinham na viagem. Mas acreditavam que São Paulo logo iria confortá-los. Desde os tempos do Jequitinhonha todos falavam que a cidade tinha trabalho e vida boa para quem quisesse trabalhar. Estavam encardidos da terra roxa, tanto tinham, em vão, andado pelas fazendas do Paraná em busca de trabalho.

Numa calçada da Av. Ipiranga João adiantou-se e abordou um jovem que acabava de estacionar o carro. Perguntou-lhe se podia dar-lhes algum dinheiro para algo que comer. O jovem assustou-se, pensou tratar-se de um assalto, recuou. Logo notou a família, e as mãos calosas e pés vermelhos de João. Recompôs-se.

-- Não é assalto não, moço. É questão de precisão...

Publicado no livro "Canjica de castanha" (2019).