1110 - O ESCAPULÁRIO - Autobiografico
O ESCAPULÁRIO
Cheguei perto de meu pai trabalhando na sua banca de marceneiro, no barracão do fundo do quintal de nossa casa. Confiante, pois era ele atencioso com todo mundo.
— Pai, preciso de cinco mil reis.
Ele parou de serrar a madeira e perguntou:
— Cinco cruzeiros, meu filho, fala direito.
Corria o ano de 1946, quatro anos após a mudança da denominação da moeda, de réis para cruzeiro, e a gente ainda usava o mil reis pelo cruzeiro.
— E para quê você quer este dinheiro?
— Prá comprar um bentinho?
— Bentinho? — Parece que ele não tinha entendido, mas logo emendou:
— Ah! Bentinho... Escapulário, você quer dizer?
— É isso mesmo! Escapulário. O Irmão Germano está vendendo e diz que é muito bom.
— Bom prá quê?
— Prá gente não pecar e garantir que vai pro céu quando morrer.
— Besteira. Esses Irmãos não têm mais o que inventar.
Irmão Germano era o mentor de nossa classe do primeiro ano no Ginásio Paraisense, e apresentava muitas “novidades” para os alunos. Por sua oferta eu já era assinante de uma revistinha de nome “Avante Cruzados!”, e comprava, quando tinha algum dinheirinho extra, uns brinquedos de armar, cartolina tracejada que eu cortava, colava e montava: uma feira livre, um posto de gasolina, um aeroporto pequeno.
Naquele momento, eu estava completamente sem dinheiro. Papai não dava mesada, o dinheiro era quando havia necessidade, como comprar material de classe, um livro didático e coisas assim. O supérfluo, nem pensar!
Mas estava com muita vontade de ter um escapulário, que prometia a quem usasse, a salvação eterna, entre outras coisas.
Meu pai, marceneiro por profissão, artista autor de belos entalhes em madeira, tinha sido, quando jovem, seminarista, tendo abandonado o seminário ás vésperas de receber as primeiras ordens, diaconato, sei lá o quê. Portanto, entendia da religião católica, mas, em vez de ser um católico fervoroso, era, sim, um crítico da Igreja. Frequentava as missas aos domingos – e se limitava a isto a sua prática da religião – mas não engolia os sermões do padre Genaro, aos quais fazia comentários ácidos, mas benevolentes e respeitosos. Acho que ele tinha sido colega daquele padre.
Daí seu comentário ao qual aduziu:
— E você acreditou no que o Irmão Germano disse?
Eu, que na época era coroinha, ou acólito e ajudava nas missas da Capela do Colégio Paula Frassinetti, acreditava, claro, em tudo o que me era ensinado no catecismo e nas instruções dos Irmãos Lassalistas, que eram os professores no Ginásio Paraisense.
— Ué, acredito, sim, ele não ia mentir pros alunos, ia?
Parece que meu pai resolveu não minar minha crença.
— Bem, te dou três cruzeiros. Você pede ao irmão pra deixar por três, cinco é muito caro.
— Mas, papai...
— Vai lá, fala com sua mãe te dar os três cruzeiros. Se ele não baixar o preço, você não compra.
Meu pai não era pão duro, mas também não soltava o dinheiro com facilidade. De certa forma, foi assim que aprendi as bases do meu conhecimento de como lidar com o dinheiro, economizar, pechinchar um pouco e coisas que a gente só aprende com o exemplo de nossos preceptores, na infância, meninice, na adolescência, e nos lembramos na idade adulta.
Mamãe tomava conta do dinheiro ganho a duras penas por papai. Também acrescentava algum dinheiro que guardava ciosamente na caixa de sabonetes, com a venda de toalhinhas de tricô que ela fazia com capricho e bom gosto inusitados.
Estendendo uma nota de cinco cruzeiros, ainda nova pelo pouco manuseio, me disse:
— Não tenho três mil réis trocados. Você pede o troco pro irmão e me devolve. Presta atenção prá não perder o dinheiro nem deixar que passem a mão nele.
Passar a mão era como se dizia roubar ou lograr alguém, apossando de seu dinheiro. Tomei cuidado, pois, e na manhã do dia seguinte, em um intervalo das aulas, negociei com o Irmão a compra do bentinho ou escapulário.
— Só tenho três mil réis. O senhor me vende o escapulário por três mil reis?
Ele concordou e fez uma cara estranha quando lhe estendi a nota de cinco cruzeiro. Enfim, com certa relutância (me pareceu que ele não iria dar o troco), estendeu duas moedas de um cruzeiro, findando a negociação.
Ao chegar em casa, exibi com orgulho, primeiro para mamãe e depois para meu pai, o objeto de meu desejo.
Era constituído por dois saquinhos de pano, de tamanho de uma caixa de fósforos, ligados por dois cordões de semelhantes a cordões de amarrar sapatos. A gente devia usar dependurado no pescoço, um saquinho na frente e outro atrás. E não podia tirar nunca, nem mesmo para tomar banho.
— O Irmão Germano falou que dentro tem um papel com uma oração escrita por uma freira muito devota. Garante que quem usar por toda a vida, quando morre vai pro céu sem passar pelo purgatório.
Minha mãe ouvia atenta, pois acreditava. Mas meu pai tinha um sorriso que achei sem sentido, enquanto examinava as duas partes de pano do escapulário.
— Escapulário...bentinho...patuá...é tudo a mesma coisa. Superstição.
— Pedro, não fala assim perto das crianças. — Minha mãe protestou.
— Ah. Ia mês esquecendo. O bentinho nunca pode ser tirado do pescoço. Nem prá tomar banho, prá nada.
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Passaram-se seis meses. Acabei por me acostumar com o escapulário no pescoço. Nunca o tirei, pois tinha medo de perder aquelas graças.
Um dia, tio Armando me entregou algumas fotos de artistas de cinema que vinham dentro dos maços de cigarros Clássicos, me olhou estranhamente e perguntou:
— Tuniquinho, você não está sentindo um cheiro esquisito?
— Não, tio. Cheiro de quê?
— Um cheirinho que coisa rançosa. E parece que vem ai da sua blusa. Você tem tomado banho direito?
— Tenho sim, tio.
Ele falou para mamãe, que estava por perto:
— Essa camisa do Tuniquinho está cheirando mal, Maria.
Ela se aproximou. Deu umas fungadinhas ao meu redor disse:
— É esse bentinho que ele está usando.
— Meu escapulário? Ms eu lavo ele toda vez que tomo banho!
Então, coloquei as duas bolsinhas pra fora da camisa e cheirei, ao mesmo tempo que tio Armando e mamãe.
— Nossa que fedor! Além de encardido, tá descosturando.
— Tuniquinho, tira isso daí, vai lavar direito até desaparecer esse cheiro.
— Mas mamãe tenho de usar sempre, sem tirar, a vida inteira. Se não num vou pro céu!
Tio Armando, que era agnóstico e não sabia, deu uma boa gargalhada.
Fiquei corado comum um camarão.
— Tira logo e vai lavar lá no tanque. — Mamãe ficou braba. — Até acabar esse cheiro ruim.
Fui para o tanque do quintal, lavar o escapulário. Esfreguei bucha com sabão com força, e quando percebi as costuras das sacolinhas se desfizeram. Assustado, abri com cuidado e fiquei atarantado quando dentro delas não havia absolutamente nada. Nem papel, nem papelão com oração. Nada!
Não contei prá ninguém, mas fiquei com um medo terrível de passar um dia sem o escapulário.
E agora? A única solução que me veio à cabeça foi pedir dinheiro para papai novamente, a fim de comprar outro escapulário.
Naquela mesma tarde, aproximei-me de papai, sempre agarrado às suas ferramentas e madeiras, e cheio de uma coragem extraordinária disse:
— Papai, o senhor me dá cinco mil réis?
— Cinco cruzeiro, fala direito. E prá quê que é.
— É para comprar um novo escapulário. O outro rasgou e...
— Ara, Tuniquinho, deixa de bobagem. Isto é superstição, coisa inventada pelos padres para ganhar dinheiro fácil. Dentro daquelas sacolinhas não tem nada. É uma besteira mesmo.
Fiquei pasmo, pois não tinha dito a ninguém que nada encontrara dentro dos saquinhos de pano do escapulário. Então ele sabia! Então, era verdade o que estava dizendo!
Foi naquele momento que começaram minhas dúvidas.
ANTONIO ROQUE GOBBO
Belo Horizonte, 1º. De maio de 2019.
Conto # 1110 da Série INFINITAS HISTÓRIAS