Sonho
Algumas emoções incomuns tomavam forma. Entre um trago e outro do cigarro a queda era inevitável. A vantagem é que a subida também era. A desvantagem era não conseguir prever. Vinha um plantão armado no portão, pela manhã, e na volta pra casa, resolveu parar e comprar umas cervejas. Na verdade, depois de um tempo, percebe-se que não se resolve o que é feito rotineiramente. Chegando em casa, bebeu cada uma de suas cervejas ouvindo uma música de fundo qualquer. O sono já não chegava na hora certa há muito tempo, e o teto parecia se mover com o barulho dos saltos que caminhavam ritmicamente no andar de cima. Já cansado no último trago, apagou em um movimento leve.
Às seis o despertador tocou. O algoritmo diário em pleno funcionamento o levou ao banho, depois ao barbeador e ao café com pão seguido por um cigarro que acendia quando a caneca chegava ao meio. Tinha ainda dez minutos até sair, e gastou cada um deles olhando pela janela do terceiro andar, que dava para outro bloco, onde vez ou outra, uma jovem se secava após o banho com a janela aberta. Parte da rotina de um pedaço da sociedade onde seres com emoções complexas e suposta superioridade em relação aos outros animais, refugiam-se em caixas de concreto personalizadas, tendo a falsa sensação de segurança, ou até porque é o que cabe no orçamento. Entrou no carro, e quando o som começou a tocar Blow up the outside, do Soundgarden, acendeu outro cigarro e caiu no fluxo.
O dia não prometia nada anormal, os carros e entravam e saíam pelo portão sem qualquer problema. O restante da equipe, pela qual era responsável, já estava acostumada a trabalhar com ele. Não havia necessidade de cobranças, desde que tudo funcionasse normalmente. Sendo assim, nas próximas 24 horas sobrariam apenas a leitura e uns cigarros para enganar as horas e a estiagem, que maltratava a vegetação e formava nuvens enormes de poeira, comum naquela época do ano. Quando a noite caiu, ficou mais confortável. Jantou sua quentinha após o pôr do sol náutico, fumou dois cigarros seguidos e entrou para escovar os dentes. Saiu do banheiro, sentou na cama com as costas na parede, abriu um livro e acabou pegando no sono. Sonhou.
No sonho, estava em uma espécie de quarto, que lhe era familiar. Tudo estava escuro, e uma pequena luz entrava pela fresta do que parecia uma porta. Abriu-a devagar e saiu do cômodo. Era o apartamento onde ele e sua companheira tinham vivido juntos por um ano. Se deparou com ela e outro dele, sentados no sofá. Ficou no corredor para ouvir o que diziam.
- Eu não sei mais o que fazer – disse ele olhando pra baixo.
- Nem eu. Não dá pra aguentar seu egoísmo.
- Egoísmo?
- É.
Observou enquanto ele se levantava, depois veio na sua direção, entrou no quarto, pegou umas malas no armário e começou a colocar suas coisas. Ela chorava na sala sem acreditar. Ele fechou a mala, e com uma frieza incrível, saiu sem se despedir. Quando a porta bateu, o sonho acabou.
Acordou assustado, saiu do alojamento, encostou na parede e acendeu um cigarro. O sonho era muito parecido com a cena que vivera meses antes, quando se separou. Tentou esquecer aquilo, terminou o cigarro e voltou à leitura. As horas se arrastaram até as 22, horário que poderia finalmente dormir. Adentrou o alojamento, escovou os dentes, checou as mensagens no celular sentado à beira da cama. Naquele momento, as emoções voltaram a tomar forma. A ansiedade e a tristeza chegavam a ser palpáveis. As cores sumiram, e até o ar seco parecia melancólico. E tudo ficou escuro de repente.
Depois de um tempo, conseguiu sentir o ar quente que saía pelas suas narinas. Em seguida seus olhos se adaptaram a escuridão, e havia uma porta a sua frente. Estava entreaberta, e dava pra ver uma fraca luz que vinha de dentro. Sentiu algo frio e pesado em sua mão, e com um rápido exame, concluiu que era a pistola que estava usando no serviço. Carregou-a lentamente, terminou de abrir a porta sem fazer barulho e ficou parado olhando os beliches onde dormiam as sentinelas. Sem qualquer hesitação, executou um a um. O primeiro, com tiro na nuca. Quando o barulho acordou os outros três, só serviu pra causar mais desespero em seus alvos. O segundo, estava na cama de cima, e o tiro entrou pelo olho esquerdo. O terceiro, caído no chão com o susto, levou dois no peito. O último, ainda tentou sacar sua pistola, mas morreu com ela na mão. Ouviu passos apressados no corredor, e imaginou que seriam as outras duas sentinelas. Deitou ao lado de um dos corpos e se fingiu de morto, e surpreendeu-os depois de um tempo que ficaram tentando entender o que tinha acontecido. Morreram sem saber.
Saiu calmamente pela porta dos alojamentos, e acendeu um cigarro. Viu sua imagem refletida no vidro blindado da guarita, e seu rosto estava todo salpicado de sangue. Achava impressionante a sensação. Ouviu o barulho da sirene da viatura da ronda, que vinha lá ao longe. Sentiu o gosto de ferro do sangue, sentiu o peso real da arma, com o cano ainda quente dos disparos feitos. E foi ai que se deu conta de que não era um sonho. A viatura chegou ao posto, e tanto motorista quanto o rondante foram recebidos por tiros certeiros, e caíram do lado da viatura. Não havia mais o que fazer, realidade e o sonho coexistiam em sua vida. Restava apenas um cigarro no maço, e seria uma pena desperdiça-lo. Fumou até o tabaco queimar o filtro, e numa última tentativa de acordar, apontou o cano da pistola para o céu da boca, e disparou.