O olhar de Sinéia

A comunidade mais uma vez se reunia para a tradicional festa do padroeiro. Santo Antonio. Como é comum nas regiões rurais do São Francisco, há sempre uma figura que funciona como líder. Na presença do Padre, Dona Maricota se secundarizava; virada a curva da estrada pelo carro da Paróquia após a missa, ela retomava seu posto. Mandava mais que o vigário, mas só até a próxima, três meses depois. Aí, novamente se recolhia a seu posto de assistente.

Na comitiva desta edição, além do Padre Juca, um seminarista e dois coroinhas. A festa depois da missa era aguardada com ansiedade, sanfona, quentão e bandeirinhas. Antes da diversão, a devoção. Missa de hora e meia, sermão caprichado. O respeito à família e a conservação do casamento foram os pontos fortes.

Era o quarto ano de seminário de Ronilson. Tinha fama de sociável e comunicativo, mas era fiel aos compromissos da carreira. A família, de Muriaé, tinha nele apreço e esperança de que fosse bom padre, diferente dos cinco irmãos que mal ganhavam para comer.

Diz-se que o homem cresce sob os olhos da mulher. Ela, dele. Ronilson tivera já suas paixões, mesmo depois de estar no seminário. Mantivera, nesses casos, o controle e o propósito. Ali, puxando os cantos da missa, ele teve, porém, um mau presságio: aquela menina, de pele morena e olhar envergonhado fizera-lhe embaralhar a vista e secar a garganta. Não sentira isso nunca.

Comunhão. Silêncio. Oremos! Avisos. A bênção final trouxe a Ronilson certa aflição e fadiga. Como se quisesse ir embora e lhe faltassem pernas. Pálido, buscou ar fresco. Mas o movimento e a música lhe puxaram para a dança.

Procurou por ela. Deveria? Encontrou. Há olhares que se cruzam pra sempre. Seria um desses? Ela se esquivou. Ele confirmava a impressão que ela tivera na igreja. Temor e dúvida. Ele a desejava? “Devo estar enganada...”, tentou, em vão, acalmar-se.

Combinaram, sem se falar, que o melhor seria dançar. Ela com outros, ele com as senhoras da comunidade. Mas a força do olhar... Ronilson perdia o senso. Nas duas horas que se seguiram à missa, não conseguira deixar de olhá-la. Os olhos quase sempre baixos, a pele macia, os cabelos soltos, os seios de juventude virgem. Pensou uma fuga, dormir no carro, algo assim. Mas aquele olhar...

Resolveu que deveria conversar com ela e evitar o mal entendido. Pediu a bênção de todos os autores iluministas. Era a hora da razão. Mas sua explicação a confundiu ainda mais. Usou conceitos estranhos, das aulas de psicologia. Nenhuma das palavras daquele forasteiro de olhos castanhos conseguiu fazer com que ela diminuísse a convicção: ele a desejava.

O caminho de volta para a cidade foi tenso, permeado de fantasmas. A conversa com a garota – “Nem sei o nome dela?!” – não ofereceu a Ronilson a paz que desejava. Seria um domingo de intensa solidão.

Não sabia Ronilson que Sinéia, nome que ainda muito ressoaria em seu frágil ser, viria de mudança para a cidade com a família em poucos dias.

Há fatos que misturam caminhos para sempre. Há olhares que não deveriam se cruzar. Nunca.

José Carlos Freire
Enviado por José Carlos Freire em 18/05/2019
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