NONA SINFONIA
(Para Fayvel)
... e eu posso tudo, aqui nesta sala de concerto, eu, um jovem judeu, em Jerusalém, posso tudo, pois "...farei de Jerusalém uma pedra pesada para todos os povos...”(1) e todo o mundo me respeitará, eu, aos dezoito anos, aqui nessa sala de concerto, para ouvir uma orquestra alemã tocar um programa de música clássica que não conheço, que nunca curti, eu gosto mesmo é de rock, mas o pai acha que isso deve completar minha formação, e eu estou aqui, uma pedra pesada numa sala de concerto de Jerusalém, olhando atento a platéia adulta, os detalhes da decoração e o palco de cadeiras solitárias e estantes nuas, tudo muito estranho para mim, e eu pensava onde estão os microfones para amplificar até os últimos decibéis possíveis o som pesado do rock, tudo muito estranho, aqui em Jerusalém, a calma aparente de um possível ataque aéreo porque contra Jerusalém “ajuntar-se-ão... todas as nações da terra” (1), e eu pensava que aquela sala podia ser um alvo, bombas caindo, correria, caos, pessoas ensanguentadas, pisoteadas, e eu pensava aquilo para passar o tempo enquanto não começasse o tal concerto, a minha cabeça podia tudo, até destruir aquela sala de música, e então o som de um instrumento esquisito, uma trompa, sussurrou-me ao ouvido o pai, anunciou que a música ia começar, e eu me preparei para o tédio, se pudesse cochilar, mas meu pai ficaria muito puto da vida, e eu pensei que saco, vai começar, e os músicos foram se acomodando, alguém, o spalla, disse baixinho o pai, e eu nem sabia muito bem o que era aquilo, testou a afinação da orquestra que, depois, ficou quieta, esperando, longos segundos, e então entrou o maestro, aplaudido com vigor educado pela platéia curiosa de ouvir aquela orquestra de alemães, e eu prestei atenção àquele homem esguio e ainda jovem, a erguer a batuta e todos os músicos prontos para, a seu comando, iniciar a música que eu nem sabia muito bem qual era e então a orquestra iniciou um som que eu jamais teria imaginado que existisse, no segundo acorde eu já estava alerta, os ouvidos não podiam estar enganados e num átimo eu viajava, e quando eu me lembro que nada sabia daquela música, ah, idade rebelde, e a orquestra alemã estendeu num andante um alegretto ma non troppo e aquele som começou a entrar em meu cérebro, em meu corpo, e no segundo movimento eu já não era mais judeu, eu era apenas um jovem a navegar naquele andante con moto, e eu via o mundo e sentia que não podia ser apenas um judeu em Jerusalém, enquanto lá fora o perigo sobrevoava nossas cabeças e esse perigo esfumaçava-se num scherzo allegro vivace e eu me via num outro mundo, com outra cabeça, como se eu não fosse mais eu e tivesse em mim todos os sentimentos do mundo e houvesse uma pedra pesada amarrada em meu corpo e houvesse em mim uma necessidade imensa de ter uma pátria, e eu não era mais judeu na viagem de cada nota, e aqueles músicos que não eram judeus me faziam sentir algo que eu jamais pude imaginar que pudesse acontecer, e eu não era mais judeu naquele allegro vivace, eu era um pobre e desesperado jovem sonhando com uma pátria e eu podia compreender que um dia eu também desejei uma pátria, um homem precisa de chão sob os pés para conquistar seus sonhos e precisa da terra desse solo sobre o corpo depois de cumpridos os deveres e eu estava ali a sonhar com minha terra, com meu povo e eu era todos os povos do mundo e eu sentia e sabia que, se existia uma música como aquela, podia haver ainda esperança de uma paz inconcebida e incontestada, desenhada por uma orquestra alemã sob a batuta de um maestro alemão, a executar a nona sinfonia do judeu palestino Franz Schubert...
(1) Zacarias 12:3
Isaias Edson Sidney / 5/6/03