Crônicas da Velha Infância - Na rua da minha infância (Por Fefa rodrigues)
A rua da minha infância era pequena, sem saída e tinha todas as casas do lado direito exatamente iguais. Era uma época feliz, em que todas as famílias ali estavam contentes por terem sua primeira casa própria, mesmo que fosse numa rua sem asfalto num bairro distante do centro da cidade.
Para nós, a ausência de movimento de carros e de pessoas estranhas era a garantia de liberdade para brincarmos o dia todo sem preocupar nossos pais. Eu era a menor da turma e, como é de se esperar, adorava ficar junto das crianças mais velhas, especialmente da minha irmã que não disfarçava o fato de me considerar um incomodo.
Lembro-me de que, logo na primeira semana em minha nova casa, eu estava brincando na rua quando levei um tombo, ralei os joelhos e comecei a chorar. Minha irmã, nada gentil, mandou que eu parasse de agir como um bebê ou que fosse para casa. Sentida, me sentei sozinha na calçada até que um garoto se aproximou, soprou o machucado no meu joelho, limpou o sangue com a barra da camiseta e me convidou para voltar a brincar.
Naquele dia, entre os meninos e meninas que corriam descalços pela rua de terra, eu encontrei meu primeiro amigo.
Alexandre era três anos mais velho que eu e para mim ele era um gigante. O mais rápido no pega-pega, a melhor pontaria na queimada, era sempre o primeiro a ser o escolhido quando nos dividíamos em times para algum jogo que eu só participava porque ele sempre me escolhia para a equipe dele.
Quando todos corriam para algum lugar e eu ficava para trás sem conseguir acompanhá-los, era ele quem me esperava. Sempre me dava à mão para que eu conseguisse subir na mangueira que ficava no final da rua e depois me ajudava a descer.
Ele era canhoto e me ensinou a fazer coisas como descascar laranjas e empinar pipa usando a mão esquerda, apesar de eu ser destra.
Para que eu pudesse deixar de ser café-com-leite no esconde-esconde, ele passou uma tarde toda cantando os números de um a cem e me fazendo repeti-los até que eu conseguisse contar sozinha, e assim eu me tornei apta para “bater cara”.
Na festinha que comemorava seu aniversário, ele me deu o primeiro pedaço do bolo, nunca me senti tão importante, como naquele dia.
Eu tinha seis anos e o melhor amigo do mundo.
Certa vez, eu já tinha por volta de onze anos, levei uma bronca por ter passado à tarde na casa dele aprendendo a jogar vídeo game – ele foi o primeiro da rua a ter um daqueles. Minha mãe me disse que aquilo não ficava bem para uma menina e me proibiu de voltar lá sozinha. Eu demorei a entender a razão daquilo, mas obedeci.
Eu sempre obedecia minha mãe, porém, ele nunca deixaria de ser meu amigo.
Alexandre morava com seus avós numa casa muito grande, com um quintal repleto de pés de laranja e mexerica, bem em frente à minha antiga casa, no terreno que tinha sobrado do sítio da sua família depois de ter sido loteado pela CDHU para dar origem àquele bairro novo e quando ele fez quinze anos, foi morar com sua mãe em São Paulo. Não dizer por que, mas ele foi embora sem nos despedirmos.
Ah! Como eu senti falta dele... Mas então, o tempo passou, eu deixei de me interessar por brincadeiras e coisas de criança, conheci outras pessoas e outra realidade que aos poucos foi me afastando daquele pequeno mundo que era a rua da minha infância.
Eu já não pensava mais naquele meu amigo quando ele voltou para o interior. Estava magro, tinha os olhos fundos e parecia ter envelhecido muito mais do que os anos que tinham se passado desde que ele havia partido.
Mesmo morando em frente à minha casa eu quase não o via, ou talvez não prestasse atenção àquela sombra que pouco se parecia com o menino bonito e inteligente de quem eu me recordava. Uma única vez nos trombamos na rua tão próximos que foi impossível fingir que não tínhamos nos visto. Apenas olhamos um para o outro num silêncio constrangedor e, envergonhados, nos cumprimentamos com um meneio de cabeça e cada um seguiu seu caminho. Foi algo estranho.
Numa madrugada, ouvi barulho de sirenes na minha rua sempre tão tranquila, olhei pela janela e vi Alexandre sendo levado por policiais. Ele havia destruindo a casa dos avós numa crise de fúria e loucura e, infelizmente, aquela cena acabou por se tornar comum nos meses que se seguiram até que, num sábado - e quando penso nisso consigo até sentir o cheiro daquela manhã -, eu estava saindo de casa para um passeio com minha mãe, quando vimos um carro de polícia parado no outro lado da rua.
Na hora pensei que o Alexandre tinha aprontado algo outra vez. Vi que dois policiais tentavam acalmar sua avó que chorava muito e minha mãe, pressentindo que havia algo errado, foi até lá para amparar a mulher.
O corpo dele tinha sido encontrado durante a madrugada num terreno baldio, com as mãos amarradas às costas e um tiro na nuca. Ele tinha vinte e quatro anos e só naquela manhã eu soube que ele era usuário de cocaína desde os dezessete.
Não fui ao velório, nem ao enterro.
Naquele dia, chorei sozinha no meu quarto, tentando sem sucesso me lembrar da última vez em que havíamos nos falado – e por mais que eu tente, ainda não consigo me lembrar -, mas ainda hoje, quando me pego fazendo algo com a mão esquerda, me lembro daquele menino de sorriso fácil e sinto um aperto dolorido no peito.
É saudades do meu melhor amigo.
- Fernanda Rodrigues -