A CASA DA RUA GÖRLITZER - PARTE UM
Oi tudo bem com vocês? Lembra-se se quando eu publiquei Bloqueio total e disse que não ia escrever mais? Pois bem, não consegui resistir. Olha aqui um conto novinho em folha e dessa vez é drama. Espero que gostem.
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A casa da rua Görlitzer
BERLIM, 1945.
Karl era um caçador de tesouros. Era como ele se auto denominava. Nos últimos dias era como ele matava o tempo, andando pelas ruínas de Berlim à procura de casas que não estivessem tão acabadas assim. Era onde ele encontrava seus tesouros. Coisas que iam desde pequenos objetos como relógios e joias até livros, roupas e sapatos. Eram coisas que ninguém ia precisar mais, a maioria dos donos estava morta por causa da guerra, boa parte deles havia simplesmente deixado Berlim antes mesmo que as bombas dos americanos e soviéticos desabassem sobre a cidade; e havia os judeus. Karl sabia muito bem quando entrava numa casa de judeus, quase sempre não havia nada de bom que se pudesse encontrar lá dentro porque os nazistas já tinham carregado tudo. Talvez isso se dava pelo fato dos judeus serem uma escória, os grandes culpados de tudo aquilo. A cidade só estava daquele jeito por causa dos Judeus.
Seu pai, que estava na guerra defendendo o país, o ensinara a ver os judeus como lixo, não eram seres humanos, eram um esterco que devia ser descartado e era isso que o Führer estava fazendo, livrando o país daquilo que o manchava, daquilo que degradava a sociedade, daquilo que era a causa de todos os problemas da nação.
Karl odiava os judeus, os odiava porque eles causaram a guerra e foi por causa da guerra que seu pai partida para o front, e tinha sido por causa disso que sua mãe se tornara uma alcoólatra e se enforcara no sótão da casa onde ele morava sozinho.
Os judeus eram uma escória, ponto final, e Karl achava que eles deviam ser exterminados, ao menos era o que seu pai lhe ensinava, ao menos era o que se ensinava na escola antes da guerra ter começado.
Seu pai servia ao exército alemão como agente da SS e tinha ido para a guerra há dois anos, Karl não o vira mais depois daquilo. Depois que as coisas começaram a ficar feias de verdade ele parou de mandar notícias. Sua mãe que já tinha problemas com álcool antes disso, piorou muito. Karl achava que ela sabia de alguma coisa que ele não sabia, alguma coisa que ela não tinha coragem de lhe contar. Ela passou a viver em estado de apatia, várias vezes Karl a pegara chorando, e estava bêbada na maior parte do dia.
Karl já tinha onze anos e não era nenhum bebê, ele conseguia entender as coisas e sabia que o motivo da mãe viver naquele estado era porque ela sabia que o marido não voltaria mais, porque fora morto em combate.
Karl se lembrava do dia em que dois oficiais estiveram na casa e depois daquilo a mãe nunca mais fora a mesma.
Alguns meses depois, cansados de trabalhar sem receber nenhum centavo, os empregados, os que eram arianos, porque os judeus já tinham sido mandados para campos de extermínio, foram embora, e a casa ficou quase que completamente vazia.
Karl passava longas horas do dia sozinho inventando brincadeiras para passar o tempo. As aulas foram suspensas em toda Berlim e ele ficava em casa o tempo todo e chegava até mesmo a preparar a própria comida que já estava ficando escassa.
Numa tarde de abril de 1944, Karl resolveu procurar sua mãe porque fazia dois dias que não a via. Ele a encontrou no sótão. Ela estava pendurada no teto por uma corda, não resistira a pressão e resolvera se matar. Karl agora estava sozinho no mundo. Os parentes mais próximos por parte de seu pai, não moravam na Alemanha, e os de sua mãe eram de alguma parte da América do sul.
Karl agora precisava usar toda sua esperteza para sobreviver.
Ele sobrevivera aos bombardeios dos aliados inimigos do Führer, ele sobreviveu ao inverno rigoroso e à escassez de comida. Agora ele estava sozinho e a única coisa que podia fazer era sobreviver. Além disso em breve a guerra acabaria, o Führer derrotaria os inimigos, eliminaria todos os judeus e tudo ficaria bem.
Quando a comida da despensa acabou ele começou a sair para encontrar mais, e foi aí que começou a pegar seus tesouros.
Ele quase sempre achava brinquedos, e outros objetos interessantes. Em uma de suas saídas encontrou uma submetralhadora PPS 43 e a levou para a casa onde descobriu que ela não funcionava.
Karl gostava de sair porque eram aventuras incríveis e faziam o tempo passar rápido e o tempo podia ser um problema quando não se tinha nada para fazer, ele podia se arrastar como uma lesma. Karl acabou por perder a noção do tempo quando o grande relógio de pêndulo da sala, que seu pai tinha trazido da França, mais especificamente de Paris, deixou de funcionar. Logo o tempo deixou de ser uma coisa importante porque ele não tinha a menor ideia de que horas eram. Ele passou a agir de acordo com o que sentia. Acordava de manhã ( podia ser meio dia, ele não sabia), comia alguma coisa e saia para suas caçadas, depois comia quando tinha fome, cagava quando a barriga lhe dizia que ele devia, mijava quando estava apertado, comia de novo quando escurecia e ia dormir quando era vencido pelo sono. O tempo não importava mais. Além disso ele se distraia e raramente ficava em casa durante o dia. Karl fazia suas viagens e ia a lugares que ele nunca imaginou ir em Berlim. Na maioria das vezes era perigoso. Havia patrulhas armadas por toda a cidade, na maioria das vezes eram alemães, mas eles eram ainda piores que os aliados. Karl fora capturado e preso uma vez mas conseguira escapar depois de dar um chute certeiro nos colhões do soldado. Ele saiu correndo e os soldados atiraram e Karl ouvira uma das balas passar zunindo bem perto de sua orelha esquerda.
Agora Karl tomava cuidado, ele levava consigo a submetralhadora ( apesar dela não funcionar ) e se mantinha sempre escondido. As ruas de Berlim escondiam perigos inimagináveis e era melhor tomar cuidado.
Karl comeu um pedaço de pão seco que já estava ficando embolorado e tomou um gole de café. O café estava frio e fraco e ele acabou por dispensa- lo. O estoque de comida estava quase zerado, ele iria precisar sair para conseguir comida ou morreria.
Ouvira rumores de que a guerra estava acabando, os caras do rádio disseram de que os nazistas estavam ganhando. Agora o rádio tinha parado de funcionar e até então ele não tinha visto o menor vestígio de que aquilo fosse verdade. Bombas continuavam a cair, havia tiroteios em vários pontos da cidade, principalmente durante a noite. Por precaução Karl passou a dormir no porão.
Ele achou uma Bereta e munições entre as coisas que seu pai mantinha em um armário, e a arma estava funcionando. Karl não tinha a menor ideia se conseguiria atirar caso precisasse mas achava que não havia segredo algum, bastava puxar o gatilho e pronto.
Depois do café ele pegou sua mochila, colocou a Bereta carregada na cintura, vestiu seu casaco e saiu.
Iria caminhar um pouco mais longe hoje, até a rua Görlitzer talvez, porque lá havia alguns armazéns e caso eles não tivessem sido saqueados ele tinha uma boa chance de encontrar comida.
A rua Görlitzer estava deserta. O que era ótimo.
As marcas da guerra estavam em toda parte, prédios reduzidos a ruínas, escombros espalhados por toda a parte, carros que não passavam de carcaças, alguns cravejados e balas, marcas de explosões. Eram retratos da guerra que não seriam apagados jamais. Mesmo se tudo aquilo fosse restaurado ainda assim as marcas perfuraram principalmente nas lembranças daqueles que estavam sendo afetados. Karl achava que jamais seria capaz de esquecer a guerra, uma guerra causada por aquela escória mamada de judeus.
Ele avançou pela rua Görlitzer silenciosa e cautelosamente. Em algum lugar ouviu- se o som de uma explosão, perto o suficiente para fazer Karl dar um pulo.
Havia explosões por toda a parte, o próprio céu de Berlim parecia estar explodindo.
Karl parou diante de um armazém e tentou se concentrar no que viera fazer ali: conseguir comida.
Ele tentou forçar a porta, era uma porta im nas e pesada de madeira, ela nem mesmo se moveu.
Karl praguejou. Precisaria encontrar outra passagem para entrar e isso não foi problema. Ele escalou uma montanha de escombros e passou para a lateral do prédio. Ali havia um rombo enorme na parede e Karl abriu um sorriso. Precisou passar por mais uma pilha de escombros, escorregou e torceu o pé caindo de cara no chão. Karl gemeu de dor.
-Aí! Filho da puta!
Se sua mãe estivesse ali e o ouvisse falar daquela maneira, certamente ele apanharia. Mas ela não estava ali, estava morta, havia se enforcado no sótão, achando que talvez o mundo não valesse a pena, deixando- o sozinho em meio ao caos. Seu pai também não estava ali, havia se ido, morto pela guerra, a guerra causada pelos judeus.
Karl se levantou e sacudiu a poeira das roupas esfarrapadas que estava usando, tentando ignorar a dor no pé.
O interior do armazém estava escuro e ele nem ao menos lembrara- se de trazer uma lamparina.
Ele foi caminhando com cuidado. Tropeçou e caiu novamente.
-Ai! Porra! Que merda!
Ele se levantou, foi caminhando com o máximo de cuidado possível.
Karl encontrou as prateleiras com os alimentos. A maioria delas estava vazia, mas ele conseguiu encontrar alguns enlatados que deviam estar estragados mas era melhor do que nada, e uns pães embolorado, dos quais ele comeu um pedaço. Karl também encontrou uma lanterna que não funcionou mas que colocou dentro da mochila assim mesmo.
Karl estava satisfeito, o que ele achou daria para sustentá- lo por alguns dias, mas podia explorar um pouco mais, nunca era demais.
Foi saindo com cuidado do armazém, em certo momentos tropeçou e quase caiu mas dessa vez conseguiu se equilibrar.
Karl saiu do armazém, escalou a montanha de escombros e estava prestes a sair na rua quando avistou uma meia lagarta com cinco soldados. Karl gostava muito de veículos de guerra, certa vez seu pai o levara para ver um frota novinha em folha que o Führer havia encomendado especialmente para a guerra. Ele conhecia bem aqueles carros. Aquela era uma meia lagarta M3 Motor Gun Carruagem, uma versão de transporte, mas equipada com um canhão de 75 mm. Soldados, e , aliados ou não, eram perigosos, Karl sabia por experiência própria. Ele se abaixou rapidamente e colocou a mão na cintura onde tinha colocado a Bereta.
Dois dos soldados desceram da meia lagarta e começaram a vasculhar a rua, pareciam estar procurando alguma coisa, alguma coisa que não estava ali, porque logo em seguida em seguida entraram na meia lagarta e partiram.
Karl saiu de seu esconderijo e colocou- se no meio da rua de onde teve tempo de ver a meia lagarta dobrando à direita lá em baixo.
Karl suspirou e olhou para a direita.
Foi então que viu a casa.