A NUVEM NÃO COBRE O SOL
A estátua equestre erguia-se na Praça bem a meio do Terreiro sobranceira e altiva.
O material teria a sua origem em canhões danificados transformados em bronze.
O rosto do cavaleiro não se divisava bem, ensombrado por um chapéu de plumas.E sob as patas do cavalo, a ponto de serem esmagadas, as serpentes…
A história feita de uma confiança ganha a pulso que se transformara em gratidão recíproca, crisálida de uma longa amizade incorrupta.José I, rei absoluto, mente arguta e espírito lúcido e Sebastião José, déspota esclarecido, aberto aos ventos do estrangeiro – ambos de cabeleiras empoadas, figuras proeminentes pelos seus estatutos e posições em meados do século XVIII numa Europa meia desfigurada.
- Ah Sebastião José.Vou ficar na História para os incautos como um fantoche,um pobre polichinelo comandado pelas marionetes de um ministro sagaz.
- Vossa Majestade, meu Rei e Senhor, sabeis bem que não é assim.Vós sois o Sol, a Razão e eu… sou apenas o vosso fiel mandante…
- O meu Pai, El-rei D. João V alheou-se demais da situação e dos negócios do Reino e perdeu toda a energia com os seus amores, principalmente os seus amores freiráticos.Deu no que deu.Tenho que mostrar a essa gente perigosa, corja de nobres arrogantes que o Rei sou eu.
- Contai comigo para levar a empresa a bom termo.
Ele fora recrutado entre a pequena nobreza e indigitado como um jovem de futuro, o cônjuge de uma dama de companhia da rainha mãe, Maria Ana de Austria. Mas logo que chegara ao poder informara a Europa de que Portugal tornava a ser a potência senhora de um grande império.E meteu mãos à obra.
E de facto o Rei depressa constatou a superioridade e firmeza do seu ministério. animando as indústrias e as artes, e impondo o país ao respeito das outras nações, que o olhavam desdenhosamente, considerando-o uma nação pequena e de nenhuma importância.
Uma catástrofe horrenda abateu-se sobre a cidade em 1 de Novembro de 1755, a terra tremeu com violência, o chão engoliu as casas e destruiu Lisboa, causando milhares de mortos, incêndios e uma inundação gigante resvés Campo de Ourique.No meio do pavor e da desordem, Sebastião conteve as emoções e conseguiu impor a ordem no resgate dos destroços.
Mandou vir arquitectos de fora e conseguiu reedificar a Baixa lisboeta em pouco mais um ano num plano geométrico em que o espaço advinhava já o futuro e uma visão progressista da sociedade do tempo.
O Rei e o Ministro tornaram-se cúmplices e amigos a que nenhum engodo nem perversa tentativa de cisão conseguiu envenenar.Trocavam confidências.
- Só consigo fazer filhas à Rainha.Não sei o que vai ser deste reino.A minha primogénita Maria Francisca não foi definitivamente talhada para reinar.É demasiado frágil e fraca e dominada pela Religião e pelos Padres.Um dia ainda enlouquece com as preocupações de governar.
- Não vos inquieteis Senhor.Há sempre formas de contornar os obstáculos.Podemos implantar a Lei Sálica que afasta da sucessão as princesas e apostar na preparação de um filho que ela venha a ter do casamento que se vier a contratar.
- Sim,sim.Pensei em casá-la com o inapto do meu irmão Pedro.Satisfazia a vontade de um clã unido que a minha Mãe tanto preza e ficava tudo em família.
- É uma ideia brilhante!E que diz sua Alteza a Rainha vossa esposa, Majestade?
- Ela ameaça que estes casamentos consanguíneos ainda hão-de dar para o torto mas como é espanhola, aquilo passa-lhe. Mas quanto aos meus irmãos bastardos, os filhos da freira de Odivelas , esses terão mesmo de ser desterrados, ainda não sei para onde.
Entretanto o reino prosperava glorioso com reformas na Universidade, a fundação do Real Colégio dos Nobres e o incremento do comércio de aquém e de além mar.
E dai que a Sebastião José de Carvalho e Melo foram concedidos títulos e em especial o de Marquês de Pombal como reconhecimento do Rei pela sua Obra admirável.
A nobreza roída de inveja do poder imenso atribuído a esse Ministro oriundo da quase obscuridade e cheio de prosápia, conspirou em consórcio com a Companhia de Jesus e mandou atirar no rei, uma noite em que regressava de uma entrevista adúltera com Dona Teresa,marquesa de Távora, (a nova) num desafio à honra da família ferida e escandalizada com o atrevimento.D.José ficou ferido com gravidade num braço.
- Majestade este crime é de lesa majestade e não pode ter perdão.Mas vamos aproveitar as circunstâncias… para de uma vez por todas… nos vermos livres das ervas daninhas.
Os Távoras e o Duque de Aveiro foram sentenciados e executados em praça pública com a mais severa das crueldades.Os seus escudos foram picados, os locais das suas residências salgados e todos os seus bens confiscados.As mulheres e crianças da família internadas em conventos, durante anos, até ao reinado seguinte.A Companhia de Jesus habilmente expulsa com o Papa revoltado e eufórico a esbracejar impotente.
- Sebastião, meu amigo acho que desta vez conseguiste uma limpeza bem maior do que a que empreendeste quando a tragédia do terramoto se abateu sobre as nossas cabeças.
- Concordo plenamente Majestade.Acho que soubemos escolher o momento certo para repor a ordem.
E os dois homens trocaram um sorriso enigmático e olharam-se com um misto de cumplicidade e admiração.
Erigir aquela estátua era por fim celebrar uma associação que - para além do bem e do mal - testemunhava um salto no progresso, uma conquista e um velho sonho.O célebre escultor Machado de Castro foi designado para a criar.
- Desde que não tenha que pousar.Não tenho paciência.É escusado.Nem sequer para fechar os olhos e rever a minha vida cheia de esplendores e ameaças.Mas exijo um medalhão com a tua éfigie no suporte para que a História possa recordar que dificilmente haverá outro rei que se dê tão bem com o seu primeiro ministro.
- Majestade, já conseguimos os dois derrubar muitos obstáculos e alguns adversários .Para imortalizar o feito, as patas do cavalo esmagam serpentes com os cascos.
- De escultura,confesso que percebo pouco.Se achas relevante, decide tu.Eu prefiro a Ópera.Ah a Ópera Italiana, sim, evade-me de tudo isto…de toda esta miséria!
No final da sua vida, o rei sofreu uma apoplexia, a rainha Dª Mariana Vitória assumiu a regência e a côrte despeitada ajudou a manter afastados os dois amigos.
- Deixai-o entrar…Eu ainda sou o Rei…
Mas a espanhola, furibunda foi inflexível e debruçando-se sobre o marido contorcendo-se no leito real , retorquiu.
- E eu sou a rainha!
Houve um momento em que Sebastião ainda conseguiu entrar para ver o seu Rei e senhor e se despedir.
D. José sorriu debilmente, piscou-lhe o olho e estendeu-lhe um rolo de papel a muito custo.
O Marquês leu o que estava escrito e anuiu com uma vénia:
- O Rei ordena que seu neto, D. José o principe do Brasil se case imediatamente com sua tia, a princesa Maria Benedita.
-Mas o meu neto acaba de fazer quinze anos e a minha filha mais nova já fez trinta! – gritou espavorida a Regente.
- É uma ordem real que deverá ser cumprida o mais depressa possível, no máximo em dois dias dado o estado de saúde de sua Majestade.
Até ao último momento, até à ultima gota do cálice amargo, mesmo até à morte… a aliança que rei e ministro haviam firmado, ainda governantes jovens e quase inexperientes no comando, seria a lei.