Desagregação

Subíamos já há muito tempo, o terreno às vezes variava, ora mais cômodo, ora nos exigindo tropeços cumplicidades disputas trocas, claro que não nos conhecíamos, e se houvesse essa possibilidade não estou certo de que a escolheríamos, apenas prosseguíamos na única direção, caíamos afundávamos chutávamos, às vezes se compartilhava um trecho, mãos dadas, pousadas nos ombros, empurrando pelas costas, também nos entretinham interações mais pontuais, um aperto, um encostão, um soco, uma pisada, um pontapé a maioria fingia que não chorava, olhávamos estupefatos por alguns instantes os que caiam e ficavam, vez ou outra nos ativando nas entranhas O FRIO, mas continuávamos subindo; nos eram comuns berros lamentos maldições, assim como êxtases delírios ou sonhos, o riso autêntico não era incomum, mas durava umas poucas passadas, o suor nos trazia de volta ao vento, à chuva, aos espinhos, aos desníveis cada vez mais áridos e escarpados, ao horizonte mais abrangente e portanto mais sinistro; não lembro bem quando se agarrou e mordeu meu pé descalço o primeiro rato, meus berros de dor terror espanto entraram macios na normalidade, outros roedores não demoraram a ir se alojando junto ao primeiro em sua carreira de destruição excruciante de minhas carnes, eu fazia o que podia para continuar subindo, não entendia que os outros seguissem indiferentes, talvez não vissem as dezenas de ratos que me corroiam, também eu devo ter caminhado cego ao terror de muitos, também eu; meu terror final estirado coberto de ratos não foi capaz de eclipsar as lembranças das poucas mãos que segurei.