RECIPROCIDADE
RECIPROCIDADE
Às vezes a neblina que cai na cidade de São Paulo nas vazias noites de frio, transforma a atmosfera num ambiente nostálgico. Muito raro ver a cidade vazia.
Galileu voltava para casa com sua mulher e filho depois de um jantar com amigos. Transitava pela Avenida do Estado, nas proximidades do parque Dom Pedro, quando o semáforo ficou vermelho.
Eram duas horas da madrugada, mas Galileu parou.
Parou porque entendia que as regras devem ser observadas, independente de alguém estar lhe observando ou não. Honestidade é fazer o certo mesmo quando ninguém está olhando, no dizer de Epícuro, filósofo grego do período helenístico.
Galileu era um homem honesto, para quem um mundo melhor passava pelo comportamento ético correto, não transgredindo as normas em quaisquer circunstâncias. Para ele não existiam pequenas faltas que poderiam ser relevadas. Ele jamais transgredia.
Parado no farol, naquela noite fria, um homem encostou na porta do motorista para lhe pedir alguns trocados.
“Eu entendo a sua necessidade meu bom homem, mas se eu lhe der algum dinheiro estarei sendo injusto com todas as demais pessoas que me pedem e eu não dou. Se não posso ajudar todo mundo, não posso ajudar apenas você”
Galileu era justo. Mas isso não foi suficiente para lhe pouparem a vida.
Foram as últimas palavras proferidas por Galileu.
* * *
Lucas dormia no banco traseiro do Civic preto de seu pai quando um estampido o despertou.
Sua mãe gritava desesperadamente enquanto tentava recolher os pedaços do crânio do seu marido espalhados pelo interior do carro.
Apesar da escuridão da noite, a luz dos postes, encoberta pela névoa, refletia nos vidros manchados de vermelho e provocavam uma visão de terror, parecida com a descrição do inferno que aprendeu nos cursinhos de catequese.
Um homem, sem qualquer escrúpulo, arrancou um relógio do braço do seu pai, que jazia inerte, enquanto outro permanecia apontando uma arma para sua mãe.
Com quatros anos de idade, Lucas sentiu a fragilidade humana e como o acaso pode ser cruel e determinante para o seu futuro. Caberia a ele, chorar o resto da vida ou escolher um novo caminho.
Lucas olhou bem no rosto daqueles homens. Não chorou. Mas aquela imagem jamais sairia de sua retina.
* * *
Lucas estudava psicologia na FMU, por conta de uma bolsa de estudos obtida com muito esforço e dedicação.
Depois da morte de seu pai, passou muitas dificuldades, mas superou. Não guardou ressentimentos, porém inconscientemente desenvolveu convicções preconceituosas.
Cristão fervoroso, jamais aceitou a homossexualidade, e tornou-se um defensor ferrenho da meritocracia, sendo contrário às cotas raciais.
Acreditava na família e que o homem deveria ser o provedor, cabendo à mulher o papel de cuidar dos deveres domésticos e dos filhos.
Julgava-se um bom homem e acreditava nas suas convicções.
* * *
“Eu quero um mundo melhor.
Um mundo em que os negros, mulheres, homossexuais, tenham as mesmas oportunidades que um homem branco e heterossexual e que não sejam discriminados por conta de sua raça, orientação sexual ou gênero.
O mundo que acredito, sem racismo, homofobia, sexismo, será um mundo melhor, porque as pessoas se respeitarão. Eu repudio qualquer forma de discriminação e preconceito.
Um mundo em que os animais não sejam maltratados e, por essa razão não consumo nenhum produto de origem animal e isso inclui frango, peixe, leite, queijo, ovos, gelatina, mel. Também não uso roupas feitas com couro, peles, lã, e também não utilizo qualquer cosmético que tenha realizado experiências com animais.
Ou seja, procuro excluir, na medida do possível e do praticável, todas as formas de exploração e de crueldade com os animais, seja para alimentação, para vestuário ou qualquer outra finalidade.
Se as pessoas deixassem de consumir carne, a produção de grãos e outros alimentos de origem vegetal seria destinada suprir a fome no mundo.
Um dia as pessoas terão essa consciência.
Acredito, também, na inclusão social, por intermédio de ações que combatam a exclusão aos benefícios da vida em sociedade, ocasionada pelas diferenças de classe social, educação, idade, deficiência, gênero, preconceito social ou preconceitos raciais.
Entendo que devemos é oferecer oportunidades iguais de acesso a bens e serviços a todos, por meio de cotas que promovam uma reparação histórica e social.
Os anos de escravidão que os negros foram submetidos, tem que ser reparados de alguma forma. A humilhação, a exploração...
Tenho a plena convicção que o mundo seria muito melhor, se todos pensassem e agissem como eu.”
* * *
Jorge passeava com seu filho David pelo parque do Ibirapuera numa manhã ensolarada de domingo. David tinha vinte e cinco anos, com bíceps, tríceps e peitos bem definidos por conta de treinos quase diários. Usava uma camiseta justa que valorizava sua forma física.
Jorge era um conceituado engenheiro de uma empresa estatal, que fez uma fortuna considerável, supostamente atribuída a atos de improbidade administrativa e relações espúrias com empreiteiros de obras públicas.
Licitação fraudulenta é uma prática comum, efetuada com parcimônia desde tempos imemoriais. Os funcionários de carreira ganham propinas há tempos com a elaboração de editais dirigidos, que resultam em sobrepreços, passando pela fiscalização conivente e, principalmente, pela concessão de aditamentos contratuais artificiais. Funcionários técnicos sempre receberam modestas mesadas que agora correm o risco de terminar, tendo em vista a ganância dos políticos insaciáveis.
David, evidentemente, sabia das mutretas realizadas pelo pai, mas sequer tocava no assunto. Usufruia do conforto que o dinheiro proporcionava.
Mas, naquele dia, tomavam cerveja embaixo de uma árvore, rindo bastante, com demonstrações de carinho e afeto.
Um grupo de homens se aproximou e um deles, com um taco de basebol, desferiu uma paulada no meio do crânio de Jorge, partindo seu crânio, fazendo jorrar jatos de sangue por todos os lados.
“É meu pai! É meu pai! O que vocês fizeram?”
Os homens se afastaram, enquanto David chorava desesperadamente.
Aquela imagem jamais sairia de sua retina.
* * *
“Abaixo as cotas raciais! Fora parasitas”
Lucas pichava o banheiro da faculdade, quando foi surpreendido por David.
- O que você está fazendo, seu escroto racista?
Sem olhar para trás, Lucas continuou com a pichação, sem fazer qualquer comentário.
- Olha pra cá filho da puta.
- Só estou expressando a minha opinião - disse Lucas - Eu sou contra cotas raciais, isso não me torna racista.
- Eu observo você faz tempo – ouço as suas piadinhas racistas, seu sujo.
- Não quero brigar.
- Você é homofóbico. Odeio homofóbicos – meu pai foi assassinado por escrotos como você!
- Não gosto mesmo de viados. São aberrações. Essa é a minha opinião, pois acredito nos ensinamentos cristãos. Que eu saiba, a liberdade religiosa é um direito constitucionalmente garantido. Para a minha religião, a homossexualidade é um comportamento errado. É pecado! - Você é um hipócrita! – continuou Lucas - Fala tanto em um mundo melhor, mas não abre mão dos seus privilégios. Fala tanto em igualdade social, deve contribuir com algumas migalhas para organizações sociais, mas não abre mão da sua vida de luxo e conforto. - Usa seu smartphone de última geração e toma rivotril e uma série de medicamentos que foram obtidos por meio de pesquisas com animais”
- Seu babaca! Não entende que devemos fazer o máximo dentro do possível e praticável – disse David. – Eu não sou um ser perfeito, mas pessoas como você são o câncer da nossa sociedade. Sequer deveriam ter voz.
- O nome disso é hipocrisia. Você faz o que convêm. - Outra coisa. A grande discriminação não é racial, contra homossexuais ou mulheres. A grande discriminação é contra a pobreza. Há miseráveis no mundo inteiro, homens, mulheres, negros, brancos, homossexuais... enquanto vocês, hipócritas ficam defendendo esmolas que não modificam o status quo. 23% da população mundial é mulçumana; 35% da população mundial é cristã; outros tantos são supremacistas, nazistas, facistas... e esse número aumenta cada vez mais. Sabe porquê? – Por causa de babacas como vocês, que não respeitam a opinião alheia e querem impor as suas, como se fossem axiomas. Vocês que são fascistas! Não conseguem conviver com as diferenças. São os verdadeiros intolerantes que julgam sumariamente qualquer pessoa que destoe daquilo que “vocês julgam ser a verdade”
O rosto de Davi começou a ficar vermelho. Por um instante ele ficou sem argumentos. Sabia que pessoas como Lucas, racistas, homofóbicos, não deveriam existir ou, simplesmente, não deveriam sequer ter direito à expressão.
- E quer saber? - Sinto uma inveja muito grande do sujeito que matou seu pai. Eu queria ter tido o prazer de abrir o crânio daquele corrupto, ladrão.... podia não ser uma bicha escrota, mas merecida morrer.
David era um sujeito amargurado. Ao escolher uma vida sem comer carne, abriu mão de prazeres e por essa razão, principalmente, aliada aos reveses da vida, tornou-se um sujeito amarujento. Seu projeto de vida era transformar o mundo, não importava a que custo. Mas tinha um mau humor insuportável.
Achava-se um justiceiro, procurando deslizes de pessoas que deveriam ser rotuladas como racistas, homofóbicas. Sua missão era destruir a vida de pessoas assim.
Não se conteve, deu um murrou na cara de Lucas, pulou em cima e começou apertar-lhe o pescoço.
* * *
Lucas morreu por asfixia.
David não indicava qualquer sinal de remorso e confessou o crime.
Foi a julgamento em pouco tempo, tamanha a repercussão da mídia, que dividia opiniões.
A defesa pediu o depoimento de Svani, negra, ativista, colega de ambos.
“Lucas era um sujeito nojento. Fazia piadas e brincadeiras sem graça, com conotação machista e racista. Eu reclamava e ele dizia que era apenas uma brincadeira, mas brincadeira só tem graça quando as duas pessoas riem. Quando um só dá risada, isso é escroto. Lucas fazia pichações racistas, inclusive uma vez escreveu “fora macacos”. Quer dizer, eu não vi se foi ele, mas tenho certeza. Ele ficava chamando alguns meninos de “bichas”.
“Ele assediava minhas colegas, com convites inoportunos, massagens nos ombros. Eu percebia que elas sentiam-se constrangidas. Comigo ele nunca fez nada, mas tenho certeza que elas se incomodavam e eu posso falar em nome de todas as mulheres.
David, ao contrário, defendia causas nobres e era engajado em causas sociais. Ele contribuía com Organizações Sociais pela defesa de animais; participava de movimentos pela defesa dos direitos da mulher, negros, homossexuais e outras minorias “
* * *
Tendo em vista a confissão, foi desnecessária a produção de outras provas.
Deste modo, o Promotor passou às suas alegações finais.
“Meritíssimo Juiz e senhores membros do Juri
Eu poderia simplesmente dizer que David matou e nada justifica um assassinato. Mas percebo o clamor que envolve o presente caso, razão pela qual eu preciso me aprofundar sobre ele.
As pessoas confundem opinião com conhecimento. Ninguém nasce odiando alguém por causa da cor da sua pele, como disse Nelson Mandella. Por isso, se aprendem a odiar, podem aprender a amar.
Ninguém pode ser odiado, também, por causa de suas convicções, de qualquer natureza. Nem mesmo o nazista, fascista, pode ser odiado. Se você odeia uma pessoa por considerar abominável sua ideologia, você é tão abominável quanto ele e legitima o ódio que ele sente.
O ódio recíproco deve ser extirpado e TODAS as opiniões devem ser respeitadas, até mesmo aquelas que achamos mais insuportáveis.
Os comportamentos devem ser punidos. Qualquer atitude discriminatória ou injuriosa deve estar sujeita às penalidades que a lei impõe. Pensar, contudo, não é crime. Ter uma opinião, por mais inescrupulosa que seja – aos nossos olhos – não pode ser interditada. A opinião não pode ser retirada à fórceps da mente e, sobretudo, do coração das pessoas.
E, em geral, as pessoas tem opinião formada. É uma falácia dizer que “formadores de opinião” incentivam atitudes e comportamentos intolerantes.
É muito comum levantar a bandeira anti- ódio contra a comunidade LGBTQ, contra os negros, mulheres, homossexuais; bandeiras anti-semitas, contra a xenofobia.
Mas ninguém se levanta contra o patrulhamento e represálias contra alguém que, por vezes, faz uma piada inadequada, que fere alguém... com nítida desproporção entre o comportamento supostamente indevido e o linchamento moral.
Precisamos combater sim a intolerância!
Mas não com ódio e intolerância.
É preciso amar as pessoas, mesmo aquelas que possuem um comportamento “politicamente incorreto”, pois, certamente, essas pessoas sofreram algum trauma e tem incrustrada uma forte imposição cultural.
Elas não são culpadas por serem racistas, machistas ou homofóbicas. Precisam de amor e serem convencidas com amor e não com mais ódio.
Comportamentos como o assassinato de Lucas, equivalem a um tratado de guerra.
Um grupo minoritário que assume para si ser portador da verdade absoluta, condena e pune aqueles que não se encaixam dentro dos seus postulados. Esse grupo minoritário tem o apoio das mídias e fazem muito mais barulho, mas são indiscutivelmente, minorias.
Um grupo maior, certamente, se voltará contra essa minoria e o ódio tende a crescer.
A arrogância desse grupo de pessoas tem gerado mais ódio e nessa guerra, a maioria tende a vencer, por isso, ao contrário de imaginar que a sociedade está conquistando avanços, eu enxergo um enorme retrocesso.
Faço minhas, as palavras de Marilyn Ferguson, escritora americana, “Ninguém pode persuadir outra pessoa a se modificar. Cada um de nós toma conta da porta da mudança, que só pode ser aberta pelo lado de dentro. Não podemos abrir a porta de outra pessoa, seja por meio de argumentos ou de pressão emocional”
Enquanto não existir amor, inclusive para aquelas pessoas cujas opiniões achamos repugnantes, essa guerra só tende a crescer.
Hoje morreu um homem, estigmatizado como racista, mas é apenas um homem, com convicções certas ou erradas, como todos nós.
Por isso, peço a condenação do réu por homicídio qualificado, por motivo torpe, que revela caráter desprezível, egoísta, intolerante.
Obrigado.”
A platéia que acompanhava o julgamento ficou em silêncio. David permanecia sem expressão, insensível, convicto de que sua atitude foi correta.
O Advogado de defesa respirou fundo e começou a falar:
“Senhor Juiz e Jurados
Empresto à minha defesa uma questão moral colocada por Dostoievski em “Crime e Castigo”.
O assassinato de uma pessoa abjeta, repugnante, seria moralmente errado se o objetivo fosse nobre?
Classificando os seres humanos em ordinários e extraordinários, Raskólnikov, personagem de Dostoievski, elabora uma teoria, segundo a qual preconiza que os indivíduos extraordinários, pautando-se somente pela autoridade de suas consciências, podem ignorar as regras, aplicáveis apenas aos ordinários, em benefício do avanço da humanidade, assumindo condutas que entendam necessárias na superação de obstáculos, mesmo que isso custe vidas.
Cuida-se da teoria do crime permitido; não pelo Direito formal, mas pelo teórico direito que os seres superiores possuem para agir conforme suas consciências lhes dirijam.
E assim, considerando a si mesmo como alguém extraordinário, David, apesar de não ter planejado, executou o assassinato de um sujeito nojento, racista, homofóbico.
A morte desse sujeito beneficia a muitos, na medida em era uma criatura vil e desprezível, praticante de atos de preconceito e discriminação. O próprio assassino, por outro lado, se demonstra uma pessoa bastante generosa. Assim, na visão de David, sua conduta é plenamente justificada, face ao bem maior que proporciona à sociedade.
Lucas era um ser desprezível, nitidamente racista, não apenas na expressão de suas opiniões, como em atitudes. Pichava os banheiros da escola, participava de movimentos contrários às cotas raciais.
Assediava mulheres; era intolerante contra os homossexuais; fazia piadas preconceituosas... enfim, uma pessoa que não fará falta neste mundo.
Algumas pessoas são superiores, dotadas de discernimento crítico sobre o que é certo e o que é errado. David era um desses homens. Tinha uma visão correta sobre todos os pontos de vista. Ansiava por um mundo melhor formado por pessoas dotadas de caráter e bons costumes.
Essas pessoas têm o direito de eliminar a escória da sociedade, no sentido de formar um mundo perfeito.
David deve ser absolvido.
Cabe esclarecer que o réu possui bons antecedente e é primário, portanto, caso decidam pela condenação, deve ser fixada no mínimo legal e, também, aplicada a hipótese de diminuição da pena, uma vez que o agente cometeu o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral.
Desde modo, senhores Jurados, de que lado vocês estão?
Caso seja acolhida a tese do Ministério Público, David poderá pegar uma pena de até 20 anos de reclusão por homicídio qualificado, porém, caso prevaleça o entendimento da defesa, de homicídio privilegiado, David poderá ser condenado a 1 ano, e certamente não ficará um dia sequer na cadeia.
Fez-se, novamente, um silêncio na plateia, por alguns segundos.
Mas metade do público resolveu aplaudir.
Uma criança, sozinha, cantarolava:
“Love, love, love
All you need is love”