O episódio do rádio

Naquela época, os olhos do professor Lúcio começavam a falhar. Depois de muitos anos debruçado sobre livros, e de horas sem fim preparando aulas e corrigindo provas, tivera notícias preocupantes a respeito de sua visão. Passou mal a noite posterior à visita ao médico, pois agitava-o a possibilidade de não poder mais dedicar-se à atividade preponderante em sua vida: sempre devorara livros, jornais; agora, já aposentado, entretinha-se na Internet, lia textos, jogava paciência, percorria material informativo...

O professor Lúcio, naquela manhã cinzenta, levantou-se cedo, tomou o seu café, sem esperar pela mulher, como costumava fazer, e caiu em meditação profunda. Quando se levantou da cadeira da cozinha, estava decidido: o melhor a fazer no momento era comprar um rádio. Sim, pelo menos poderia manter-se bem informado sem gastar os olhos, já que o importante era poupá-los. Não pensou mais, passou à

ação.

Percorreu várias lojas da cidade, na esperança de encontrar um produto que lhe satisfizesse. Fazia tempos que perdera todo o contato com rádios, com os quais convivia em sua juventude. A maioria dos rádios que lhe apresentavam contava apenas com emissoras FM. E ele queria emissoras do país, quem sabe de outros países, em outras línguas. O professor abria-se para uma outra realidade.

Depois de uma busca ansiosa por várias lojas, encontrou uma que comercializava rádios. Embora desconfiasse que aqueles aparelhos pudessem ser fruto de pirataria, resolveu examinar uns que descansavam sobre um tapete, num canto da loja. O vendedor, que imaginou ser o dono, abriu-se num sorriso, acompanhado de um gesto amplo, acolhedor: “ Veja, tenho vários tipos! Este, por exemplo, pega estações de todo o mundo.”

O professor encantou-se com a ideia, era exatamente o que almejava. O vendedor tentou encontrar alguma rádio, mas o que se podia ouvir era muita descarga, além de uma ou outra música. “Aqui tem muita interferência -informou – e , além disso, a bateria tem de ser carregada.” Não se tratava de algo barato, mas, pelo jeito, valia a pena. E o professor partiu com o rádio a tiracolo.

Apresentou à mulher o seu achado. Queria descobrir, e mostrar a ela, tudo que podia fazer aquele aparelhinho, mas preferia antes carregá-lo. O fato de não o ligar simplesmente na tomada elétrica dava-lhe um tempo para saborear a expectativa. " Daqui a pouco veremos ". Ela não disse nada, mas achou-o diferente em relação à sua maneira habitual de ser.

Algumas horas depois, o professor Lúcio resolveu explorar a sua nova aquisição. Ligou, girou o dial, percorreu toda a extensão, foi para a frente, foi para trás. O mesmo desempenho que presenciara dentro da loja: muita descarga, pouca nitidez. Subiu mais a antena, fez outras tentativas, sentiu-se ludibriado. A mulher sugeriu que mostrassem ao filho, ele era bem hábil nesses apetrechos. Mas, o professor estava possuído: vou devolver, decretou. E ela não conseguiu demovê-lo, vendo-o sair porta afora.

O dono da loja fechou a cara, quando o viu chegar com o embrulho. “Não funcionou, ou seja, o mesmo que aqui, não consegui encontrar as estações, há muito ruido”. Os olhares encontraram-se, formou-se um clima tenso. O homem ligou o rádio, mexeu e o som brotou claro e nítido. O professor ficou desconcertado, os demais clientes voltaram-se para ele. "Escolha um outro, então" – bradou o vendedor. E acrescentou: “Se fosse outro negociante, não lhe permitiria a troca. O senhor comprou, saiu da loja, assunto liquidado.”

O professor considerou revidar, discutir, tomar uma atitude. Mas, concluiu por ser conciliador, afinal durante toda a sua vida se batera pelo diálogo. Reconheceu: “ De fato, eu errei ao levar um aparelho que não tinha funcionado aqui. Fiquei entusiasmado com a possibilidade de ouvir todo o mundo.”

O outro baixou o tom. O professor escolheu um aparelho que apresentava, mesmo com todas as interferências, um som límpido. Saiu com um vale, para poder comprar outro produto, já que o vendedor não dava o troco em dinheiro. Em casa, pode enfim apresentar à mulher um rádio, na verdade bastante limitado, mas em pleno funcionamento.