O terapeuta
Ele acordou de mau humor. A esposa havia estourado o limite do cheque especial outra vez. Era uma mulher nascida em berço de ouro, nunca precisou lutar por seus objetivos... Não compreendia as limitações do marido.
Foi para o consultório após ficar uma hora ao telefone negociando a fatura do cartão de crédito que ela também não soubera usar. Um problema recorrente que vinha consumindo o casamento que, aos poucos, ia se deteriorando, perdendo o viço.
Era terça-feira: O dia de Laura, a paciente que tentara se matar três vezes. Ele precisava ouví-la com a tranquilidade que lhe era peculiar. Vestiu-se na armadura usual e ouviu a moça. Depois atendeu Roberto. O paciente era homossexual e não conseguia lidar com a condição que lhe atormentava cada vez mais. A família extremamente religiosa não poderia sequer imaginar o amor que ele nutria pelo primo cinco anos mais jovem e que lhe correspondia o sentimento.
A tarde parecia não acabar. Mas ainda tinha um horário. Consultou a agenda e respirou aliviado pois a paciente das cinco estava num congresso no exterior.
Arrumou a escrivaninha. Anotou alguma coisa nas fichas dos pacientes e já se preparava para retornar para casa quando o telefone tocou. Era Juliana, a paciente das sextas-feiras. Pedia um horário naquele dia pois estava aflita e precisava lhe falar alguma coisa.
Ele tremeu. Gostava de ouvir a moça mais inquieta que tivera naquele divã. Morena clara, cabelos nem curtos nem médio, num corte moderno e bem assimétrico, dona de um rosto angelical que o encarava sempre com um par de olhos azuis-esverdeados sem igual. Filha de pais separados ela vivia uma crise porque não se acostumara com as constantes brigas e disputas de seus progenitores. Grana alta envolvida, a direção da empresa em jogo... A filha ficava sempre em segundo plano para os pais. Para complicar, ela tinha um caso de amor mal resolvido.
Ele a ouvia e por vezes viajava em sonhos proibidos a um terapeuta. O rosto sisudo ele sabia sustentar, mas quando a moça se debulhava em lágrimas era difícil se segurar. Tinha o ímpeto de colocá-la no colo, lhe dizer o que nutria por ela fazia muito tempo... Mas logo acionava a viseira do seu elmo e acalmava a mulher com as técnicas apropriadas para a sessão de análise.
Acabou por confirmar o horário vago e em quinze minutos estava com Juliana em seu divã. A moça estava mais linda que nos outros dias, usava um vestido longo, rasteirinha e os cabelos presos num coque mal feito a deixavam ainda mais provocante.
Nesse dia ela chegou com um jeito bastante aflito. Deixou as chaves do carro com a bolsa na cadeira ao lado e deitou-se rapidamente com as mãos nos olhos, mas de repente, sem que o terapeuta dissesse uma palavra, ela se sentou e perguntou se ele podia adivinhar o que ela tinha a lhe dizer.
Ele, por sua vez, proferiu um "não" bem seco, extraído meio que à forceps, receando que ela fosse dizer que poria fim ao tratamento. Aquela moça não sabia o quanto ela o motivava durante a semana. Era o seu fator motocontínuo para continuar a viver com esperança a cada dia.
A moça riu com nervosismo e disse que era melhor "deixar para lá". Não respondeu quando o terapeuta a arguiu do porquê de não revelar a que veio fora do seu horário habitual no consultório. Ela preferiu contar mais um episódio da briga dos pais pela direção da empresa e a última discussão com o namorado que viajara para Manaus no último domingo.
Ele ouviu tudo de dentro do seu elmo imaginário. Percebeu as lágrimas nos olhos dela e teve vontade de abraçá-la e de lhe beijar os lábios. Estava apaixonado demais mas, na sua condição de seu analista, não devia e nem podia dar vazão aos sentimentos que o faziam sorrir sem motivo aparente ou lhe faziam chegar em casa de pileque às sextas-feiras.
Endireitou o corpo na poltrona e seguiu em silêncio. Somente a escutava.
Naquele dia chegou em casa mais tarde. Passou no pub preferido e tomou, solitário, duas doses de uísque no estilo cowboy. Deitou-se em silêncio, embora a mulher lhe contasse, em vão, sobre a viagem de um casal de amigos para Praga. Repassou os momentos da sua história com Juliana... Depois riu de si mesmo. Que história? Ora, o que é uma história sem um observador? Um conto sem um leitor? Ele, somente ele, via os capítulos daquele enredo. Via tudo de dentro daquela armadura, onde se sentia paralisado e sem palavras para expressar seus mais sublimes sentimentos... Afinal cabe ao terapeuta somente ouvir e analisar a situação do paciente e isso ele sempre fizera muito bem.
Cláudia Machado
Nota: Um texto que nada tem a ver com física quântica mas ao ler p capítulo 24 do livro abaixo, fui inspirada a falar de algo que só pode ser chamado de história até que alguém tome conhecimento. Um conto só será um conto se houver um leitor
"Apenas olhar tem significado, pois só assim um observador participa explicitamente do fenômeno. Em outras palavras, uma história sem um observador não é uma história."
A Ilha do Conhecimento (Marcelo Gleiser) - Cap 24: Podemos saber o que é real? (Onde exploramos as implicações da física quântica para a nossa compreensão da realidade)
Ele acordou de mau humor. A esposa havia estourado o limite do cheque especial outra vez. Era uma mulher nascida em berço de ouro, nunca precisou lutar por seus objetivos... Não compreendia as limitações do marido.
Foi para o consultório após ficar uma hora ao telefone negociando a fatura do cartão de crédito que ela também não soubera usar. Um problema recorrente que vinha consumindo o casamento que, aos poucos, ia se deteriorando, perdendo o viço.
Era terça-feira: O dia de Laura, a paciente que tentara se matar três vezes. Ele precisava ouví-la com a tranquilidade que lhe era peculiar. Vestiu-se na armadura usual e ouviu a moça. Depois atendeu Roberto. O paciente era homossexual e não conseguia lidar com a condição que lhe atormentava cada vez mais. A família extremamente religiosa não poderia sequer imaginar o amor que ele nutria pelo primo cinco anos mais jovem e que lhe correspondia o sentimento.
A tarde parecia não acabar. Mas ainda tinha um horário. Consultou a agenda e respirou aliviado pois a paciente das cinco estava num congresso no exterior.
Arrumou a escrivaninha. Anotou alguma coisa nas fichas dos pacientes e já se preparava para retornar para casa quando o telefone tocou. Era Juliana, a paciente das sextas-feiras. Pedia um horário naquele dia pois estava aflita e precisava lhe falar alguma coisa.
Ele tremeu. Gostava de ouvir a moça mais inquieta que tivera naquele divã. Morena clara, cabelos nem curtos nem médio, num corte moderno e bem assimétrico, dona de um rosto angelical que o encarava sempre com um par de olhos azuis-esverdeados sem igual. Filha de pais separados ela vivia uma crise porque não se acostumara com as constantes brigas e disputas de seus progenitores. Grana alta envolvida, a direção da empresa em jogo... A filha ficava sempre em segundo plano para os pais. Para complicar, ela tinha um caso de amor mal resolvido.
Ele a ouvia e por vezes viajava em sonhos proibidos a um terapeuta. O rosto sisudo ele sabia sustentar, mas quando a moça se debulhava em lágrimas era difícil se segurar. Tinha o ímpeto de colocá-la no colo, lhe dizer o que nutria por ela fazia muito tempo... Mas logo acionava a viseira do seu elmo e acalmava a mulher com as técnicas apropriadas para a sessão de análise.
Acabou por confirmar o horário vago e em quinze minutos estava com Juliana em seu divã. A moça estava mais linda que nos outros dias, usava um vestido longo, rasteirinha e os cabelos presos num coque mal feito a deixavam ainda mais provocante.
Nesse dia ela chegou com um jeito bastante aflito. Deixou as chaves do carro com a bolsa na cadeira ao lado e deitou-se rapidamente com as mãos nos olhos, mas de repente, sem que o terapeuta dissesse uma palavra, ela se sentou e perguntou se ele podia adivinhar o que ela tinha a lhe dizer.
Ele, por sua vez, proferiu um "não" bem seco, extraído meio que à forceps, receando que ela fosse dizer que poria fim ao tratamento. Aquela moça não sabia o quanto ela o motivava durante a semana. Era o seu fator motocontínuo para continuar a viver com esperança a cada dia.
A moça riu com nervosismo e disse que era melhor "deixar para lá". Não respondeu quando o terapeuta a arguiu do porquê de não revelar a que veio fora do seu horário habitual no consultório. Ela preferiu contar mais um episódio da briga dos pais pela direção da empresa e a última discussão com o namorado que viajara para Manaus no último domingo.
Ele ouviu tudo de dentro do seu elmo imaginário. Percebeu as lágrimas nos olhos dela e teve vontade de abraçá-la e de lhe beijar os lábios. Estava apaixonado demais mas, na sua condição de seu analista, não devia e nem podia dar vazão aos sentimentos que o faziam sorrir sem motivo aparente ou lhe faziam chegar em casa de pileque às sextas-feiras.
Endireitou o corpo na poltrona e seguiu em silêncio. Somente a escutava.
Naquele dia chegou em casa mais tarde. Passou no pub preferido e tomou, solitário, duas doses de uísque no estilo cowboy. Deitou-se em silêncio, embora a mulher lhe contasse, em vão, sobre a viagem de um casal de amigos para Praga. Repassou os momentos da sua história com Juliana... Depois riu de si mesmo. Que história? Ora, o que é uma história sem um observador? Um conto sem um leitor? Ele, somente ele, via os capítulos daquele enredo. Via tudo de dentro daquela armadura, onde se sentia paralisado e sem palavras para expressar seus mais sublimes sentimentos... Afinal cabe ao terapeuta somente ouvir e analisar a situação do paciente e isso ele sempre fizera muito bem.
Cláudia Machado
Nota: Um texto que nada tem a ver com física quântica mas ao ler p capítulo 24 do livro abaixo, fui inspirada a falar de algo que só pode ser chamado de história até que alguém tome conhecimento. Um conto só será um conto se houver um leitor
"Apenas olhar tem significado, pois só assim um observador participa explicitamente do fenômeno. Em outras palavras, uma história sem um observador não é uma história."
A Ilha do Conhecimento (Marcelo Gleiser) - Cap 24: Podemos saber o que é real? (Onde exploramos as implicações da física quântica para a nossa compreensão da realidade)