FIM DE NOITE
Para o Primo Bastardo de Christiane F., com todo afeto possível fora da existência desumana do mundo, oferto-o essa história.
Com um cigarro entre os dedos contemplava um ponto qualquer pela janela. Não prestava atenção em nada especifico, olhava, apenas, e deixava os pensamentos irem emergindo de dentro de si. Não era um exercício complicado, bem, não deveria ser nem um exercício pensando de forma mais aprofundada. É que depois de certa idade o hábito de acordar as 01h00minh da madrugada ou da manhã – tanto fazia – já tinha adentrado naquela rotina.
Pensou em pegar o telefone e tentar uma comunicação efêmera com algum estranho desconhecido na internet. Pensou ainda sobre a facilidade de acesso da internet, o primeiro meio de comunicação global, e, de certo modo, até democrático, bastava um clique e conseguiria uma conversa vazia com qualquer sujeito em qualquer localidade.
Achou melhor não. Cansativo. Essa coisa de conversar com estranhos pela madrugada, depois adormecer e nem se lembrar do que havia falado...
Saiu da janela e foi em busca de outro cigarro. A boca já estava tão amarga, os dentes amarelos, sem contar os dedos, mas, raciocinou, um cigarro a mais, um cigarro a menos qual diferença faria para uma criatura que já fumava durante uns dez anos.
Acendeu o cigarro e sentou em um canto do quarto. Lembrou-se de alguns amigos; adentrou-se nas memórias e essas coisas que as pessoas fazem quando se encontra na perplexidade da existência. Recordava dos amigos – até os que já haviam partido de uma forma diferente, adjetivando-os – Fabio, tinha sempre filosofias de boteco; Ana era inteligente, embora, irredutível quanto as suas próprias convicções – e essa era a graça de tentar contrariar Ana, ela sempre tinha um argumento para tudo – Elisa, era alegre, divertida, principalmente em bebedeiras, não se esquecia de como era bom beber e rir com ela; Eusédio, foi uma história totalmente embaçada, era carente, era sexual, era afeto, mas só de uma noite. E quantas noites Eusédio tinha chegado a sua porta completamente bêbada em busca de socorro...
Matutou durante um tempo sobre esses amigos. Sentia falta. Saudade. É que quando você acorda uma hora da madrugada e tem apenas uma carteira de cigarros como subterfugio os pensamentos mais sórdidos dominam a mente. E para conseguir espantar a sordidez da própria condição humana patética é necessário recorrer a algum tipo de escapismo. Então, lembrar-se das pessoas sempre soa como o caminho mais fácil.
Nessa dinâmica de recordar os amigos e procurar por meio de reviver histórias caiu em pura nostalgia. O perigo está sempre em seguir o coelho branco. Riu do próprio pensamento. Coelho branco. Lagartas que falam e fumam. Gatos filosóficos e Chás Malucos com direito a dilatação de tempo.
Observando a parede branca, que causava um ar claustrofóbico tentava expelir junto com a fumaça a iminência de seu descontrole. Desses descontrole que as pessoas que olham o mundo com o olho esquerdo apresentam. E, ainda, tentando recontar para si as velhas histórias, em sua colcha de retalho puída foi interrompido pelo telefone.
– Alô?? Alô?? Você tá aí? – a voz do outro lado dizia em desespero.
– ...
– Alô? Responde.
– Oi – Disse.
– Desculpa à hora, eu sei que é tarde. Você estava dormindo?
– Não.
– Você está tão monossilábico. – Disse a voz do outro lado da linha.
– Não. Em tempos de internet é até estranho receber ligação.
– O que você está fazendo?
– Nada.
– Queria te ver, toma uma cachaça. Tenho dois latões aqui, você tá afim?
– Acho que não. Tomei remédio pra dormir... Estou esperando o efeito bater. Sabe como ele. – Disse.
– Eu já avisei que você tem que parar com essas manias de remédios. Isso vicia mais que maconha.
– Cada um se vira com o que tem.
– Mas, sério, podíamos tomar uma bebida, conversar besteira, jogar baralho e depois dormir, o que você acha?
Levou o cigarro aos lábios e percebeu que já tinha se apagado. Restavam só as cinzas caídas no chão. Esticou o braço direito até a carteira, tateou com o esquerdo em busca do isqueiro e acendeu outro cigarro.
– Alô? A ligação tá horrível. – disse a voz do outro lado da linha.
– A vida também – Respondeu.
– O que você disse?
– Nada demais. Só que hoje não é um bom dia para beber.
– E desde quando tem um dia bom pra beber na tua cartilha?
– Estado de consciência. Falta de ânimo. Essas coisas...
– Por isso seria bom tomar umas doses.
– ...
– Eu acho que poderíamos nos ajudar, sabe, eu andei pensando sobre umas coisas estranhas esses dias, tenho tido uns sonhos confusos. Ah, meu Deus, você querendo dormir e eu te alugando.
– Não tá alugando nada. Mas, e todos os sonhos não são estranhos? Afinal, são só sonhos.
– Teu remédio deve tá fazendo efeito... Já tá com esses papos filosóficos.
– ...
– Você não tá afim mesmo de tomar umas doses e curtir um som?
– Não, amanhã tenho que trabalhar.
– Isso nunca foi desculpa.
– Depois de um tempo a gente cresce e começa a pensar em outras coisas, acho que as desculpas vêm daí, do que você vai priorizando nesse processo caótico de viver.
– Repete, eu não entendi o que você disse. Essa ligação tá horrível.
– Nada de grave, só falei que amanhã tem trabalho.
– Se você quiser posso passar aí, bem rápido, bebemos até as 02:00min e depois volto pra casa.
– É contramão para você. Vamos deixar para outro dia.
– Tá certo, então. Olha, que remédio você tomou?
– Rivotril, 2,0mg... e nem fez efeito ainda.
– Essa porra fode com a cabeça, cuidado.
– A vida também.
– Não entendi, ligação ruim demais.
– Falei só que hoje não dá pra beber.
– Certo, fica bem, se cuida.
Esperou um tempo. O telefone ainda na mão. O barulho da ligação sendo desligada. Observou ao seu redor. O quarto branco. A fumaça do cigarro e o gosto amargo na boca. Pensou em coisas bobas, tais: minha língua deve tá escura de tanto fumar, fico imaginando meu pulmão, se o filtro do cigarro já fica tão escurecido a cada tragada imagina no pulmão como não deve ficar. Acho que devo parar. Mas, não hoje, não agora... Talvez amanhã.
Sentou-se na cama, acendeu outro cigarro e ficou encarando o teto branco e pensando ouvir algum barulho que não soube julgar se vinha da rua ou de sua cabeça. Adormeceu e amanhã, os pensamentos, a ligação, a conversa não passariam de um sonho.