HISTÓRIA CONFUSA OU QUANDO TE MATEI
"As coisas que eu te disse ontem valem só até a meia-noite
Portanto pense bem, meu bem, antes de tirar a roupa
Não acredite em horóscopo chinês, são só frases soltas
E a tua vida é um programa de TV, que eu tô cansado de ver"
(Vera Loca)
PARTE I: EMBAÇADO
Esperas. Sempre as esperas. Elas nunca chegam ao fim para os que não sabem amar. O Eterno Retorno é uma realidade concreta. Pensava dessa forma enquanto transitava pela cidade dentro de um ônibus lotado, observava as pessoas e tentava imaginar suas vidas. Aquela mulher tem cara de dona de casa; aquela moça deve ser a aluna mais aplicada da turma, tem cara de quem cursa arquitetura, logo, deve ser cartesiana.
Desviando o olhar das pessoas espremidas no coletivo – causava-lhe repugnância o transporte público. Uma espécie de aglutinação de humanos animalescos era o que parecia – começou a folhear um livro qualquer. Um ou dois parágrafos depois percebeu que não conseguia se concentrar na leitura. O calor, os cheiros excessivos, o barulho das pessoas conversando. Caótico.
Olhando pela janela quadrada do ônibus podia ver as ruas, o trânsito e as pessoas com bolsas, sempre apressadas. Ficou um tanto fatigado de observar e ter sempre a mesma visão. O ônibus parou e em uma luta, quase uma odisseia, conseguiu descer e foi para casa. Caminhou por alguns minutos. Chegou em casa. Abriu a porta. Tomou um relaxante muscular e deitou-se no chão da sala. Adormeceu lentamente.
Acordou por volta das 22h00min. Um tanto atarantado do juízo, o primeiro movimento foi acender um cigarro e esperar qualquer coincidência que o intuísse a uma pequena e singela alegria.
Alguns minutos depois recebeu uma mensagem no telefone. “Ei, tá em casa?”. Excitou entre responder ou não. Mas, como somos seres fadados às tempestades e dilacerações; além da falácia de que sofrer é amar demais, resolveu responder a mensagem: “Estou sim, por quê?”.
Ânsia. Nervosismo. Suadores.
E: nada de resposta.
Uma hora depois recebeu outra mensagem: “Posso ir pra tua casa?”. E no mesmo instante: “Pode sim, onde tu tá?”. “Tô aqui perto do posto comprando cerveja, chego aí em meia hora.”. “Tá, manda mensagem quando tiver vindo.”. “Ok.”.
Passou algum tempo pensando na vinda do outro. Tomou banho, passou perfume, começou beber um pouco para se acalmar. Fumou alguns cigarros. As esperas foram aumentando...
Ânsia. Nervosismo. Suadores.
E...
Nada da tão aguardada chegada. As horas transcorriam lentas. Observava o relógio. Olhava o quadro dos The Beatles, na parede, folheava livros, colocava músicas. Queria criar um ambiente agradável para receber o outro. Queria ouvir as histórias, discutir sobre música, mostrar o texto que tinha acabado de escrever.
Cada som de moto, carro, passos corria para janela com a efusão de que a chegada estava se aproximado. Embebedou-se. Olhou o relógio: 01h00min da manhã. Escreveu uma mensagem enorme no celular e mandou. Depois, apagou, não deveria ser tão dramático – apesar, que esse era sempre seu ponto: o drama –. Desistiu de esperar e continuou a beber na esperança de apagar e esquece as mensagens e todo o resto.
Apagou a luz do quarto e uma voz inebriante se formava cantando histórias de amores não correspondidos, paixões efêmeras e pessoas sem direito a amar. Isso o fez recordar de sua vó que sempre amanhecia cantando:
Quem não tem direito ao amor
Não deve amar
Para não sofrer
Para não chorar
Veja só meu Deus
A triste sorte minha
Na solidão do quarto
Eu beijo teu retrato
E vou dormir sozinha
Depois de tanta embriagues engoliu um comprimido e ficou observando a janela. Pensava em coisas desconexas, ao mesmo tempo no qual o pensamento morria e as esperas voltavam. Logo foi adormecendo, dessa vez sem choro, sem tristeza, convenceu-se – ou tentou se convencer – de que era inócuo tentar se doar de tal forma. Permanecer nas esperas.
Antes de adormecer pensou: amanhã tenho que tirar aquela garrafa de vinho e o cheiro dele desse quarto, mas, amanhã, amanhã, não hoje.
PARTE II: PRIMEIRO FRAGMENTO DA PRIMEIRA VOZ: AS ESPERAS
Hoje foi um dia escroto. Todos os dias são escrotos, as pessoas nos ônibus parecem animais. Precisei ir ao centro da cidade comprar algumas coisas. Cheiro de ônibus me enjoa, cheiro de gente, você olha, olha e parece que até certo ponto consegue viver por dois minutos a vida daquelas pessoas, como uma tentativa de imaginar quem são. Cheguei a casa: dormi. Acordei, vi tua mensagem e pensei em não responder. É essencial ir criando um afastamento porque não quero percorrer uma via sacra. Espero-te. Esperei-te. Soube que não vinhas. E se vinhetes seria em completo estado de embriagues. Quem sou para falar de embriagues. A diferença é que eu não vou até você embriagado, buscando afeto efêmero, ou uma trepada de uma noite. A diferença é que não vou embora ao outro dia e deixo você deitado. Só. Numa cama. Só. Talvez isso seja algo. Pode ser algo só da minha cabeça. Essa mania de projetar e criar castelos. Esse excesso de andar por praias desérticas sentindo a brisa batendo no rosto e o gosto salgado da água nos lábios que é o mesmo gosto que vem dos seus lábios quanto me tocas nas noites em que vens. Aguardei-te até não conseguir suportar a tua face. A verdadeira face de que não eras, não eras o que deveríamos termos sido. Não somos nada. Só o acumulo de nossos erros. E quais erros, você poderia me perguntar caso estivesse sentando na minha frente agora. Creio que você não perguntaria. Creio que você colocaria uma música e falaria sobre histórias fantasiosas. E eu insistiria nos erros. Em te fazer entender os erros, o erro: nós. A puta transviada solitária e o cantor obsceno e egocêntrico e mesmo assim poderíamos chegar até o fim dessa noite. Você suprindo sua necessidade animalesca inerente a sua complacência e eu as minhas projeções, platonismos, como se você fosse à salvação de um desesperado. Não veio, não veio, não venha – digo isso para mim gritando dentro desse quarto para todas as paredes – implorando para que não chegues. Tua mera presença é o corte que recebo nos calcanhares. Tua mera presença é alusão para o desespero quando o sol nasce; tua mera presença também é o afago falseado que eu finjo acreditar para me sentir amado. Tua mera presença é apenas um subterfúgio, escape, onírico a qual agarro com as unhas cravadas sobre tua pele na tentativa imputada de sentir algo que não seja a embriagues, solidão, lamúria. Só que hoje, desde que li a primeira mensagem te esperei com um cigarro entre os dedos e um copo na não. Pensei em falar sobre tudo isso, tudo isto que sabemos e não falamos. Sobre teu pé encostado no meu, sobre minha mão em teus longos cabelos, sobre o quanto eu quis, quis de um jeito anormal, de jeito até obsessivo, quis ter você aqui, quis tanta coisa. E, no meio desse frenesi veio àquelas lembranças apagadas, ou melhor, aquelas lembranças afogadas no gosto amargo de cigarros e cachaças. Da primeira vez que te vi, da primeira vez que te vi de verdade, seu olho, seu peito, seus pés, como se eu tivesse medo de ir adentrando mais fundo em você, Eu navegava você. Eu plantava sementes, colhia as frutas, fazia as hortas, eu transfigurava o que havia dentro de mim para conseguir chegar ao de dentro de você. Você não veio, eu sabia. Embora isso não faça tudo se apagar amanhã, mas, existe certo momento agradável, pois, sei como recuar e olhar para trás naquele ponto onde tudo ficou paralisado como fotografia.
PARTE III: A HISTÓRIA
Acordou às três da manhã, o telefone tocava, estava tão embriagado que sentiu a cabeça girar, apoiou os pés no chão e com os olhos inchados tateou em busca do celular. A chamada tinha sido perdida. Embora, tivesse cinco mensagens dizendo “Cheguei, vem abrir a porta”. No momento em que tentou se levantar viu pela janela o rosto do outro deformado pelos vitrais. Sentiu uma confluência de desejo, medo, afeto, sexo. Abriu a janela e lá estava: o outro, sorrindo para ele, cabelos longos, um cigarro na boca, uma bolsa com cervejas. Aquela forma de olhar o deixou bestificado porque sentiu uma imensa vontade de romper o metal da janela e apenas abraça-lo. Aquela cede que os corpos têm. Aquele cede que faz os corpos se juntarem para logo mais se dispersarem no ar.
Abriu a porta e se abraçaram. O calor, o suor, o gosto amargo de cigarro no beijo.
O outro se afastou dele e disse: – Tava com saudade e tu.
– Eu também, disse ele.
Foram para o quarto. O outro se sentou na cadeira, perto da janela, acendeu um cigarro e soltou a fumaça no ar. Ele colocou as cervejas na geladeira, abriu uma, levou para o quarto e sentou-se na cama, colocou uma música qualquer. Bebeu um pouco. Acendeu também um cigarro e ficou uma espécie de observação para ver quem falaria primeiro.
Ele quebrou o silêncio e disse:
– Pensei que tu não vinha mais. Mandei uma mensagem nada a ver, depois, apaguei. Sei lá. Achei meio que desnecessário exigir cobranças.
– Deixa de coisa, porra, o que tu escreveu na mensagem? Fiquei curioso.
– Nada de mais. Apenas umas bobagens que passam pela minha cabeça.
– Porra, passei por umas, viu. Por isso demorei a chegar. Fui parado por uma blitz, quase perco minha habilitação. Foi foda.
– E como isso aconteceu?
– Do nada os caras me pararam e foi aquela pressão. Hoje aconteceu tanta merda, vice.
– Conta. A blitz?
– Não, uma coisa aí que tava rolando. Sabe aquelas negas lá, que te falei?
– Sim sei.
– Porra, eu fiquei com as duas e não sei como fazer. Puta que pariu. Foi tenso. Eu tava com uma delas, de boa, bebendo e ela chamou pra ir num bar e tal... depois a gente foi pra um motel e rolou e tal... Só que eu também fiquei com a outra. E eu gosto da outra, de certa forma, não sei como agir.
Ele ficou observando o rapaz de cabelos longos por um bom tempo, enquanto tentava entender a história. Não que fosse algo como uma Odisseia, e nem o rapaz era Homero. Porém, sentiu aquela coisa mórbida que habita o platonismo das pessoas que, como a música que sua Vó cantava toda manhã, quem não tem direito ao amor não deve amar. De seu ponto de vista não era apenas a morbidez de ter que encarar o rapaz de cabelos longos, o outro. Mas, a estranha quietude baixando sobre si, como a quietude de uma flor morrendo na beira de uma calçada. Pequena, insignificante, invisível aos olhos humanos, embora, morrendo.
Permaneceu em silêncio. Acendeu mais um cigarro e virou o latão de cerveja barata. Do alto de sua compreensão disse:
– Nossa, essa tua rola é rodada mesmo – o trágico dos humanos é que na ineficácia de demonstrar sentimentos apelam para sarcasmos baratos e frases de efeito.
O outro deu uma risada. Uma gargalhada e disse: – É fresco é?
– Bem, parece, não é?
O outro deitou-se sobre a cama, o abraçou-o e ele sentiu o toque na pele, a coisa da pele, dos cabelos, do suor, dos cheiros, esses cheiros que se sente no objeto de desejo, de afeto, que deixa de ser objeto para se tornar obsessão ou afeto. E ele, bem, o que poderia fazer? Deitou sobre aquele corpo, mesmo sabendo que o sexo era um ato solitário, degradante e clichê.
Antes de chegar ainda mais perto da boca do rapaz de cabelos longo pensou: eu sou tua casa, seu cobertor, teu esconderijo para onde vens no fim de noite cheio de mentiras com gosto de cerveja e cigarro barato. Recuou e disse: – Fica bem. Vou dormir no outro quarto.
– Por quê?
– Nada, só não tô bem.
– Fica só um pouco.
– Certo. Quando tu dormir vou embora.
Deitaram-se, abraçaram-se e seu coração pulsava. Permaneceu em silêncio. E adormeceu.
PARTE IV: SEGUNDO FRAGMENTO DA PRIMEIRA VOZ: A MORTE
E você veio. Mais uma noite e você veio. Como sempre chega, bêbado, gosto amargo na boca, cheio de história, com os mesmos abraços, as mesmas trepadas de fim de noite, o mesmo falso afeto. Afeto de carência. Quem é pior? Você ou eu? Você por tapar os olhos, eu por projetar demais nessas suas carícias. Eu não pensei que você chegaria a essa hora, pensei muitas coisas, escrevi palavras, apaguei as palavras. No instante no qual você adentrou a porta já sabia das vans justificativas e da relação escapista que meu corpo te traz. Eu também tenho medo de ficar só, eu também tenho medo dos fins de noite. A sensação do amanhecer me dá uma compreensão exata de que a vida anda a correr e eu a ficar parado. Isso doí, e por isso, agora, observo você dormindo, enquanto fumo, sentando na cadeira sobre a janela. Nossa! daqui uns instantes o sol vai queimar o tempo, o tempo vai ser outro e nós também. E como de praxe, assim que eu deitar acordarei só. Sem você do meu lado. Nunca tive a exatidão de sentir ou descrever a vida, no entanto, essa é a primeira vez que consigo descrever a exatidão de nós. Essa espécie de afastamento daquilo que achamos gostar. E até gostamos, sentimos, chegamos perto – ou tentamos – atingir o âmago. Coisas belas e sujas, coisas extremamente sujas, isso, nós. Olhar você dormir é como perceber um tipo de vírus desativado. A inércia dos sentidos e sentimentos. Olhar você dormir é reafirmar para mim, bem, que isso tudo é doentio. Beijar-te, abraçar-te, sentir o peso do teu corpo e o salgado do suor. Eu passei tempo descobrindo como chegar até você, quando atingi tua boca passei dias em casa pensando que o erro era meu, por ir além do que se deveria. E você foi aparecendo devagar, amiúde, a leveza de um jardineiro cuidando das flores. E eu fui adentrando em um espaço no qual apenas nós poderíamos ser passiveis a existir. Só que, agora, hoje, já, deitado sobre a minha cama percebo um corpo morto. E nunca tive tendência a necrofilia. Será mesmo amar a sede depois de ter bebido, como disse o poeta? Não. Você me bebeu e matou todas as suas sedes. Elas já não existem. Eu te bebi e morro de sede, embora, não possa me alimentar tal qual um vampiro de sangue de defunto. Isso mata. A morte é sempre o destino maior. Ou o único destino. Algo morre e deixa apenas vestígios de uma existência fadada a lembranças e a punhetas noturnas. Por isso, agora, pretendo te matar. Olho para o cigarro entre meus dedos, a brasa, a fumaça sendo expelida. Vejo teu corpo incendiando, fogo percorrendo todos os teus poros e terminações nervosas, e, te expulso de mim junto a fumaça que mata e mata e mata meus pulmões a cada tragada. Cremo-te junto às cinzas do cigarro e fumo pausadamente para degustar teu corpo carbonizado... Tu és apenas um corpo inerte, sem força, apagado pelas chamas...
PARTE V: O DIA
Jogou a última guimba de cigarro pela janela e foi se preparar para enfrentar as pessoas no ônibus...