DAS ÁGUAS

(Água: Peixes: Inconsciência. Caos).

Essa história se passa na época em que o amor começou a matar.

Não se soube ao certo como foi sua chegada. Ele pensou que vinha do mar, o cheiro, a ressaca das ondas, o vento sobre a pele. Vindo do mar, então, a energia deveria emanar o renascer. O motivo que o levou a ir se juntando ao outro foi a possibilidade de voltar a existir por meio do homem marinho, que das ondas fazia seu tráfego, andando sobre elas, dominando-as, indo em busca do outro lado do oceano, referente a uma carta dentro de uma garrafa que se deixa levar pelos caminhos das águas.

O cheiro ainda persistia em seu corpo. Após o contato inicial, o toque, o beijo, o encontro dos corpos, a dispersão dos corpos no ar, levou-o a cair em águas cristalinas, tomando banhos oceânicos mergulhando na mais finda plenitude do amor ou do que fosse o nome dado aquela sensação, aquele sentimento, aquela apoteose.

O homem marinho vinha junto com o cheiro de nesga do mar. Ele pressentia sua chegada através da lua, da noite, dos movimentos que o mar deixava na areia como fosse uma bússola, na qual apontasse o lugar exato e o percurso que o homem marinho cruzava. Os cheiros iam se intensificando, a lua parecia descer para perto das águas e as noites eram demarcadas por mormaço, cheiro de água e pequenos pigmentos como fosse névoa, mas, não era névoa, não ali, naquela cidade, que sempre o sol se fazia presente.

E logo foi se acostumando com as chegadas do marinho. Nas noites em que não vinha os cheiros diminuíam, como todos os outros sinais que ele notara a preceder a chegada do outro. Então, sentava-se sobre os degraus da escada e ficava observando a lua distante da terra, o mar em silêncio e se debruçava a contemplação da natureza.

Não sentia saudade ou solidão. Sabia que o outro voltaria sempre, precisa aguardar o momento, a lua e o tráfego das ondas. Quando isso acontecia escrevia lindas cartas sem endereços, sem remetente, sem selos, sem necessidade de entrega porque a entrega não se dava pelas palavras: uma vez na qual deixava a liberdade do homem do mar chegar a qualquer hora, momento e, paralelamente, foi se permitindo a própria liberdade de seus devaneios sobre a contemplação das águas e da vida dentro dela.

A cada vinda, a cada chegada se sentia dentro de um processo ritualístico para receber o corpo aquático do outro, do homem, do mar. Não se deixava poluir com qualquer tipo de embriagues, mesmo aquelas que vem da alma. Preparava-se para adentrar no corpo do outro como quem busca matar a cede após o último copo de água bebido. E sabia, sabia que beberia muitas e muitas vezes daquele corpo. Os corpos deixando de ser corpos quando se encontravam juntos e transgredindo a realidade da qual se é possível chamar de concreta.

O encontro de dois seres partindo para a comunhão do gozo e da experimentação de um afeto na qual não ousariam dizer em palavras humanas, pois, a humanização deles mesmos já não cabia dentro daqueles encontros que subia por cima das águas e ao fim adentrava na mais profunda escuridão azulada do mar. Local no qual descobriam novos rios, novas nascentes, uma ancestralidade redescoberta por meio das águas, ofertando a possibilidade de se reencontrar dentro do outro, pelos poros, as terminações nervosas e, assim, compreendendo suas próprias nascentes, que ora eram em águas doces, ora em águas salgadas, ora a observação e espera pela chegada do ser do mar.

Eles sempre convergiam para o fundo, de si, do mundo, da vida, dos afetos. As palavras perdiam sentindos e a linguagem passava a ser outra. O homem marítimo mostrando-lhe as probabilidades de se reconhecer por meio de seu corpo e de nortear nas águas como ponto de partida para a compreensão do que é indizível. E, sendo indizível os silêncios iam preenchendo as lacunas da ausência da língua.

Quando dois seres chegam ao limiar dos afetos as palavras – escritas ou faladas – perdem seus sentidos e resta apenas o silêncio e as esperas para conseguir a cada noite ir mais fundo e deixar-se inebriar pelas ondas, as águas, o mar. Isso gerava em ambos o resgate de si mesmo. Convergia para um tipo de busca pela qual o reconhecimento do eu no outro não era, exatamente, o ponto, mas sim, a necessidade de conseguir ir caminhado ainda mais para o mundo desconhecido do mar.

O mar conduzindo-o para seu passo mais alto e audacioso: sair da terra e cair em precipício, sem que soubesse como ocorreria. As pessoas acostumadas a ter os pés na areia precisam de muito cuidado ao se permitir os caminhos aquáticos, dentro do mar sempre existe o mais fundo e o mais fundo é inerente a existência humana ou transcendência dessa humanização, porque, o limiar do ser ocorre quando se chega à beira de. A possibilidade de. Como se fosse um estado entre a lucidez e a loucura. E quanto mais ele necessitava ir para o mar junto do outro, mais perto ia chegando de sua própria transgressão quanto ao fato de existir.

As vindas do homem do mar eram constantes durante as bagunças das ondas. Pensou que talvez fosse o próprio ser marítimo que despertasse a fúria das águas. Sentando sobre os degraus iniciava seu ritual de purificação, depois da alma limpa, plantava os pés na areia e sentia suas raízes cada vez mais curtas. A princípio acreditou ser apenas uma sensação estranha, com o decorrer do tempo veio a percepção de que ele mesmo estava perdendo a condição de terra, de planta, de raiz, de ser passivo ao palpável e concreto de se apertar nas palmas das mãos.

Claro, o susto de tal percepção foi silencioso. Acreditava na divisão formando-se dentro de si. Entre ao que ele pertencia e ao que ele era com relação ao fundo do mar. Pela primeira vez questionou-se para onde deveria se estar conduzindo ou deixando-se conduzir. A resposta não veio. Nem o homem do mar. Então, limitou-se a sentar nos degraus e observar, cautelosamente, o silencio da noite e a quietude das águas.

Quando o homem do mar voltou a retornar, a vida intensificou-se dentro de si, a possibilidade de não pertencer a terra. Antes da vinda, preludiada pela lua, os cheiros, a noite, o barulho das ondas, os ventos e os pigmentos soltos no ar, contemplou-se no espelho, vendo-se outra forma, como quem encontra uma sala secreta e adentra nela e consegue perceber todos os aspectos de si próprio. A curiosidade maior foi o tom da pele que agora ia ganhando uma coloração aquática. Não foi algo que o assustasse, entendeu como um aviso das águas para se recolher ao seu reino.

Sentou-se nos degraus da casa e plantou os pés no chão. Olhou para baixo e os pés estavam cheios de lama. A água saindo de dentro de si, escorrendo nas areias da praia sobre os dedos, mais veloz que uma ampulheta. Sorriu para si, para a noite, para o mar. Ajoelhou-se e agradeceu. Recebeu como um aviso para voltar a sua verdadeira casa e compreendeu que as vindas do homem do mar não tratavam apenas do encontro dos corpos, mas, das pistas que deixava sobre a inerência de seu ser.

O homem do mar se aproximava, as ondas se agitavam. Ele levantou-se e abriu os braços, como quem recebe o mundo para si. Um presente divino. Um grande relicário para pendurar no pescoço e sentir-se protetor e protegido pela abundância das águas. O homem do mar se aproximava. Cada passo um silêncio. Cada passo a ânsia que deixaria de existir e a tranquilidade que reinava naquela noite de torrentes. O homem do mar se aproximou e parou no meio da praia. Ambos estavam ao mesmo ponto de distância um do outro...

E ele soube. Compreendeu. Descobriu. Silenciosamente obteve a resposta e a clareza necessária. Tendo ciência de todas as verdades que lhe fora ofertada o homem marítimo deu de costas e desapareceu junto as águas. Primeiro, mesmo tendo se encontrado, veio o medo, veio, pela primeira vez, a ausência, a necessidade do corpo, a sede do deitar sobre o corpo do homem do mar sendo sustentado pelas águas. Depois, o desespero de não conseguir se mexer, estagnado, com os pés fluindo lama junto a areia da praia.

E veio a luz. A luz brilhante que o cegou e ofertou-lhe a rispidez das ondas que se formaram e criaram um vetor aquático até seus pés cheios de lama. Percebeu. Não havia volta. A terra já não o pertencia. Caminhou em linha reta pelo caminho das águas e quando sentiu a primeira onda, fraca, atingir seus pés atirou-se ao mar como quem vai em busca de si, do outro, do afeto. Engolido pelo mar. Desapareceu. Nunca mais voltou e hoje deve ter se tornando um homem marinho que parte em busca de outros homens terrenos para apontar o caminho do renascimento. Talvez...

Jailson Anderson
Enviado por Jailson Anderson em 28/04/2019
Reeditado em 07/05/2019
Código do texto: T6634090
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