Bebida alcóolica nunca foi o meu forte. Aliás, sempre considerei estranho “meu forte” ser sinônimo de "virilidade etílica", ao contrário, mais interessante seria nominar "minha fraqueza', porque tudo que vicia é limitante. Falo isso de amor, de dor, de jogo, de mentiras.

Traudencio era um homem que morava na rua da casa de minha avó. Um tipo meio estranho, toda vez que via uma mulher corria para a linha férrea e ficava rindo, sozinho, rodando da esquerda pra direita e vice-versa. Quando encontrava no caminho uma flor, a trazia para ofertar para a primeira mulher que via. Só que Traudencio não era bobo não, se avexe. Ele nunca deu uma única flor a uma mulher casada.

Mesmo não se comunicando com palavras, tinha ficado mudo, os seus gestos eram uma linguagem inconfundível. O olhar caliente, a língua lambendo nos lábios, as mãos suadas sendo apertadas entre si, o cabelo sendo sacudido e os braços se abrindo.

Ele tinha uma espécie de predileção por loiras. Vendo-as de longe, já se assanhava na janela e vinha antecipar o tapete pro desfile, às vezes jogava umas pétalas de rosas, outras pegava a casca do abacaxi, era criativo.

Bobo não era o tal Traudencio. Ficou sabendo que tinha mudado pra um apartamento, do lado da padaria, uma louraça belzebu, que ia pra academia todo dia, andava de carrão e estava sempre desacompanhada. O tal moço queria se aventurar naquela viagem. Foi pra linha e ficou rodando, rodando, rodando.

Quem já o conhecia sabia exatamente que estava feito cachorro no cio. Apesar de ter problemas mentais desde os 24 anos, tentou suicídio pós término de relacionamento e o medicamento afetou a função cerebral, nunca esqueceu Jorgelina. Nas loiras queria encontrá-la, uma garota que preferiu catar conchas em Cancún do que conchinhas na Praia do Morro, deixou Traudencio em pânico: tinha construído sua casa, que inclusive foi incendiada por ele antes da tentativa de suicídio. Ele recebia “Jorgelinas” todos os dias com flores, depois que ela fugiu com o dono da floricultura para o Rio, nunca mais teve notícias dela, nem sua mãe teria. Tinha vergonha de apresentar sua família simples. E Traudencio ficou assim, como se tivesse parado no tempo. Sempre esperando Jorgelina para dar-lhe uma flor. A doença mental o acometeu de tal modo que deixou inclusive, seu ofício primeiro de desenhista projetista e o segundo de engenheiro civil, conquistado ano antes da partida dela.

Por mais incrível que pareça aquela mulher 1 m e 80 de sapatos de salto  dourados tinha uma predileção por ele. Era atenciosa, educada, recebia as flores. Foi virando amiga de Traudencio a ponto de recebê-lo em sua casa. Nunca ninguém viu alguém lá, além dele e a vizinhança morria de curiosidade sobre quem era a mulher misteriosa.

Certa feita, a dona da padaria disse que a loiraça, todo mundo a chamava assim, apesar de ser Virgínia o seu verdadeiro, chegou às 4 da manhã toda descabelada e com sacolas cheias de bebida com dizeres em outra língua, apenas cumprimentou, pegou os pães e foi. 

À tarde, estava lá na varanda do apartamento o Traudencio com um copo na mão e com muitas flores, pareciam artificiais, horas depois, ninguém sabe ao certo, Traudencio desce as escadas em pânico e sua voz nunca ouvida dava tom rouco para uma frase marcante: Jorgelina pra mim é homem, Jorgelina pra mim é homem. 

Daquele dia em diante, o moço nunca mais pisou na casa de Virgínia e nem lhe oferecia flores. Parou de rodar feito pião na linha do trem e passou a balbuciar palavras de cumprimento e gratidão, sem esboçar nenhum sorriso, embora todos os dias enterrasse e desesperasse a fotografia borrada da amada num ritual de amor e ódio bem do lado da padaria.

O tempo foi passando e cada vez mais o Traudencio apresentava sinais de melhora, embora alguns surtos fossem inevitáveis.

Numa tarde, estava a televisão da padaria ligada no Cidade Alerta quando de repente Datena expõe a foto de Virgínia, como sendo procurada pela polícia, por ter roubado um homem no motel e tê-lo deixado amarrado, fugindo com o carro e grande quantia em dinheiro. Todos na padaria estavam vidrados quando Datena finaliza:
- E pior, o homem caiu no conto do vigário, aquela fanta uva é coca cola. A moça era um rapaz, travesti, que fazia programas e só revelava sua verdadeira identidade no local do encontro, o que impedia a maioria dos clientes de fugir do conto da carochinha.
Traudencio olhou para a proprietária da padaria com um semblante que dava medo e gritou: eu disse que Jorgelina é homem, eu disse. Eu vi, eu vi na casa dela, no dia que me deu bebida e foi tomar banho na banheira. Eu vi do espelho, eu vi do espelho. Credo em cruz.
E a partir daquele dia, Traudencio ganhou o apelido de Fanta Uva e nem queria ouvir falar de Jorgelina. E toda vez que alguém o oferecia coca cola, ele dava uma crise de tiques, era engraçado de ver.


 * Qualquer semelhança é mera especulação ou coincidência.
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Mônica Cordeiro
Enviado por Mônica Cordeiro em 27/04/2019
Reeditado em 27/04/2019
Código do texto: T6633412
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