Vermelha por dentro
“É difícil defender
só com palavras a vida”.
João Cabral de Melo Neto
A roça era uma extensa plantação de mandiocas. Até onde a vista alcançava o verdor da lavoura se encontrava com o azul do céu à distância. Todos os trabalhadores estavam a postos prontos para manejar suas enxadas dentro daquela flora artificial. Quem podia olhava para seus relógios de pulso aguardando o ponteiro marcar as sete horas. Apenas um homem, desconsolado, olhava para o cabo de sua enxada e parecia triste. Os demais, fumando e falando gracejos aguardavam com seus rostos magros, seus olhos borrados e as camisas encardidas pela poeira da estrada.
Ainda não havia sol, nem calor, mas percebia-se o suor grosso porejando da testa e um brilho choroso nas pálpebras arroxeadas do homem. Então, o rapaz se aproximou e viu muito claramente que o cabo da enxada do velho estava quebrado. Disfarçou, pigarreou, deu uma forte tragada e jogou para o ar a fumaça amarga. No exato momento em que ofereceu a sua ferramenta para o outro o sol nascia no leste.
O homem, afastando a cabeça para trás, deu a entender que não queria. O rapaz, insistindo, alongava seus braços na direção do outro que balançando a cabeça negava, até ouvir o som rouco e áspero das enxadas alheias levantando a poeira do chão. Olhando bem para o rosto jovem esticou os braços secos de mãos calosas. Ofereceu a sua ferramenta quebrada e receoso apanhou a do outro. Murmurou entredentes um agradecimento. Nem o rapaz, nem ele tiveram o que conversar. Havia uma nuvem de poeira na plantação e havia um caminho para a cidade. O homem entrou na nuvem e sumiu. O rapaz enfiou os pés na estrada.
A comprida estrada vermelha cortava o verde das plantações. Ele caminhava devagar. De um lado do caminho havia alqueires e mais alqueires de soja e cana. Do outro lado, pastagens auriverdes: capim e vacas compunham o xadrez dos campos.
Andava do lado onde as enxurradas das chuvas recentes haviam cavado sulcos arenosos. Sentiu vontade de retirar as botinas já úmidas e desconfortáveis de suor e areia. Resistiu. Mais alguns minutos e alcançou, ofegante, a sombra dos eucaliptos que transformou a estrada em um oásis transitório. Limpou o suor da testa e sentou-se no barranco próximo à cerca. Acendeu um cigarro, conferiu o relógio e retomou a caminhada.
O sol inchado como uma laranja em chamas o fazia caminhar de cabeça baixa. O chapéu todo enterrado na cabeça. Mosquitos e muriçocas esvoaçando ao lado de sua figura alongada que ia avançando pela vereda rural como uma mancha cinzenta numa artéria vermelha. O vento do brejo próximo soprava no seu rosto o açucarado cheiro de mato molhado. Era um rio de águas rasas, pequeno e valente que se contorcia no meio da imensidão verde.
Vez por outra o rapaz diminuía a marcha esperando passar um sapo, um calango, até mesmo uma pequena cobra que se remexia na areia quente vindo do nada e partindo em direção ao vazio dos canaviais. Entre pastos e roças a estrada era terra de ninguém.
Vagarosamente foi se aproximando da cidade. À medida que avança vão aparecendo as primeiras casinhas cinza, marrons, com tijolos à mostra. Adentra à primeira rua da primeira vila. Anda quase trotando até estar de frente para uma idícula baixa. Aproxima-se de uma cerquinha de madeira, abre a mochila, retira a enxada e a deposita do lado de dentro do cercado. Dois meninos magros e um cão feliz oferecem um sorriso fugaz.
O sol está no meio do céu. Seus raios amarelos lançam agulhas de calor sobre os quatro parados ali. Os meninos e o cão olham para a esquina, apontando seus dedos magros e focinho molhado para a mulher que se aproxima. Era a mãe que vinha trazendo consigo o barulho do mundo.
A mulher passa por ele e balança a cabeça, cumprimentando. Traz uma grande melancia numa carriola barulhenta. Os meninos abrem o portão de lata enferrujado e correm ao encontro dela. O cachorro observa com o olhar remelento e mexendo o rabo aleatoriamente avança um ou dois passos e passa a língua úmida e morna na mão do rapaz. Ele olha para o cão sorrindo e olha para a rua. E sai. Devagarinho vai pensando. E aumentando a velocidade vai diminuindo o pensar. Vai apenas desejando que aquela melancia verde, listrada de branco, seja vermelha por dentro.