De volta ao passado adiado
Inesperadamente, o ronco do Bagamoyo grita, já era matina quando me acordou chamando, querendo levar-me a um mundo desconhecido, mas que já há muito ouvia falar. Mas como inesperado o som suave dos seus berros cumpridores de horários, e a cada sílaba nos lembra o atraso de ter que aguentar os 30 minutos em cada margem para poder flutuar?
Os dez conhecidos nesse mundo de histórias que me assustavam, cobriam seus segredos ao ouvido. Sentia-me tímido por não me entregar ao desconhecido de histórias inesperadas que a cada dia cimentam lembranças, deixado o fôlego como legado no semblante trêmulo extinto de convivências com o meu medo embutido sem concordância como uma guerra surda que transgride a minha boca ao avesso.
À medida que a via despir, escondia-se em mim a incerteza desse lugar, ao meio dia a dúvida que balançava a minha cabeça, desbotando o suposto pânico de hábitos que desaparece a cada esquina que se escondia camuflado, a cada passo de entrega nesse lugar; vestia-me de transparência:
“Se é a terra do feitiço quero conhecer o feiticeiro que outrora protagonizou maldições contra a população inocente. Temia ser tocado com fortes relâmpagos sobre a minha cabeça oca de desejo imutáveis de reviver e conhecer a sua verdadeira história. Qual a terra sem maldições!”
O meu olhar cruzado com medo, avistava o horizonte das palavras que não descreviam decerto a sua realidade de acúmulo de paz. O dia era inocente naquele dia, todos permaneciam à chuva para sentirem a solidão. As pessoas eram como formigas fatigadas, que na ponte celebravam as suas emoções com a mesma bebida sempre que chegava a sexta.
Quem tu és afinal Ka Tembe? Um rei, uma rainha. Ninguém conhece a sua história na essência. Só especulações. Estamos inertes numa batalha travada pelos lábios quase numa perspetiva sem fuga.
“Seu corpo mais leve que o vento;
uma voz acertada a um passo para a concordância.
Havia sorrisos de silêncio nas nuvens por entre o amanhecer;
deixava o sol doer um bocadinho na pele
e a vontade de anular o frio.
Recolhe
o silêncio que se calam na areia,
havia horas que ao meio dia
falavas-me ao ouvido.
e a tarde
quem nos acolhe eh a mesma Ka Tembe que nos colhe…”
Talvez, tenha desejado conhecê-la pela curiosidade; não do feitiço em si, mas na tentativa de conhecer a mim mesmo: a sua imensidão, o seu escuro. Ao abrigo do sono profundo, sinto-me reavivado nessa tensão impossível de se esquecer. Talvez incrível a sensação de ser tocado pelo feiticeiro que amaldiçoa e milagres fomenta; logo eu que sempre desejei princípios de felicidade sem esforços e sem noção do que busco.
Fixei os meus olhos no escuro inacabado de rebeldia, arquitetava palavras para descrever a água castanha e emporcalha que deságua no litoral sem nenhuma cor. Ela que já de longe me encarava e sabia que viria, como matéria impalpável que inutilmente atravessava escancarada inutilmente, e oferecia-me sonhos que se escapavam dentro de mim.
Caí noite fora em casa dum amigo no bairro de lata onde qualificam-se as sombras: Chamissava? Chali? Guachene? Inguide? Incassane? Não sei, e dormia desconhecendo palavras acumuladas que dizia. O amanhã será igual e estarás lá para ver homens cimentando na sua metamorfose, esculpindo na sua génese, escondendo o que antes era tenebroso aos sentidos imaculados de insónia pois eles rompem-te dia após noite sem devaneios.
Ka Tembe! A cidade no campo, a cidade da lama, a cidade dos camponeses sem machamba, a cidade dos feiticeiros, sim todos nós somos feiticeiros e nem o salgado oceano irá nos purificar, a cidade do futuro. Os Tembe’s dançam e alegram-se ao ritmo do batuque que já não se ouve, nas makwaelas que só as mentes dançam, do xigubo que toca lembranças, do tambor que o som é de luto preenchido pelos ecos na campa porque lá vale a pena tocar e dançar, porque lá os verdadeiros artistas repousam sua arte.
A cidade no campo de jogadores com cartões vermelhos para continuar a jogar... das circunstâncias tristes percorre os caminhos de tradições que transpõem a fronteira cais num salto de união inexistente entre o cidadão do campo e da cidade, que se renova a cada onda tentando-nos juntar fora dessa luta constante que amadurece ao impossível contraste de cada dia que transpõe movimentos instaurados no pensamento através da tradição e moderno que transborda revolução engomada a ferro frio de palavra tortas.
O passado é recordar histórias e sonhos, é subir nas mangas e arrancar mangueiras. Adiar velórios de heróis que te defenderam com todo zelo e brio, é transpor-me de figuras que te enalteceram, orgulhar-me por ter residido no seu útero até ao dia que deu-me à luz,
- Vou sentir saudades! Mas do quê¿ Da mata ou da planta¿ Se calhar do feitiço, as imagens guardadas em mim serão contos para futuros rebentos e eu não vou poder identificar onde vivia antigamente, ruas parceladas, pessoas afastadas e corroídas, enquanto luto constantemente para tradicionalizar eles são fortes em modernizar, e temo não esquecer o seu rosto, o ar puro, temo não ser amaldiçoado com essa invasão. Temo que o projeto não seja a ressurreição do Lourenço Marques! Temo não permanecer no campo da cidade da Ka Tembe, temo voltar e reviver sonhos de uma cidade construída sob lágrimas.