O Despertador de Consciência

Havia a sua frente uma esteira rolante, longa, muito longa. Nela, passavam mini-homenzinhos feitos de farinha, ovos e leite. Sua função ali era tentar acordar nestes homenzinhos o desejo de viver. Quando era bem-sucedido e despertava a consciência daqueles que passavam a sua frente, os olhos atentos do cão de caça identificavam a ameaça e o animal prontamente removia a cabeça do biscoito humanizado. Quando a esteira se bifurcava mais a frente, os homenzinhos intactos eram encaminhados aos caixotes de papelão e aqueles danificados eram jogados na fornalha.

A ele cabia apenas a função de gritar, de encorajar, o surgimento de uma consciência transcendente. O dono da fábrica não podia arriscar que biscoitos conscientes fossem enviados as casas das pessoas, por isso, havia uma vaga na empresa exatamente para isso, um controle de qualidade. Os consumidores não queriam biscoitos pensantes.

Desde que começou a exercer esta função ele sempre achava cômico o destino dos homenzinhos de farinha: com poucos segundos de vida consciente, a vida lhes era tirada assim, como num estalar de dedos. Na triagem que ele era participava, a companhia conseguia uma média de 5-10% de identificação de alvos. O que já era muito, de acordo com o relatório da empresa. O grande medo era que as chances de um homenzinho despertar a consciência de outro homenzinho eram maiores quando todos dividiam a mesma composição, ou seja, havia um efeito cascata. Dai, as linhas de produção tinham que ser muito eficientes para não deixar nada propagar. E ele se orgulhava do seu trabalho, afinal de contas ele exercia uma função muito importante na sociedade.

Tudo começou com a revolta dos homenzinhos de queijo e goiabada da fabrica de Minas Gerais. Ninguém poderia imaginar que em apenas dois dias toda a região de Barbacena estaria sem abastecimento de comida. Além disso, as fontes de energia elétrica foram cortadas, os postos de combustível foram saqueados e tiveram que fechar as portas, uma loucura total. Supunham os mais sábios que era necessário que o governo estabelecesse normas mais claras sobre como proceder numa situação como essa. Contudo, ninguém sabia direito até então como gerir um país em que a única fonte de carboidratos vem das fabricas de homenzinhos de farinha.

Depois daquele completo “shutdown”, regras mais claras foram debatidas, com o apoio da sociedade civil, e a profissão de “Despertador de Consciência” foi aceita pelo código dos trabalhadores. Como trata-se de uma questão de segurança nacional, apenas pessoas indicadas são aceitas. “Um cargo de confiança”, como dizia sua orgulhosa esposa para a família.

***

Sentia que seu corpo estava sendo tragado por uma corrente. Sentiu uma enorme urgência em acordar daquele estado latente que se encontrava. Havia gritos: “Ei, acorda!”. Meio confuso, sem saber direito onde estava e quem era, aos poucos uma luz ao fundo foi se formando, e uma imagem borrada começou a aparecer. Levou alguns segundos para perceber que o chão se movia e com ele levava a si. Uma leve tonteira tomou conta de seu corpo, como se estivesse a rejeitar aquele momento. Forçando os olhos, conseguiu discernir a sua frente vários bonequinhos sendo também conduzidos pelo chão que se movia. Estavam parados e não se moviam, não parecia haver vida neles. Não entendia o que estava acontecendo, só sabia que se sentia só e angustiado. Queria sair, dali pular e correr. Sentia um perigo se aproximando... olhos a espreita. “Ei, acorda!”, e se virou na direção da voz. Era um gigante. Enorme e corpulento com um vozeirão. Sentiu-se aterrorizado. De imediato, sentiu a aproximação de um bafo quente e ouviu um granido. E acabou-se.

***

E o homem acordou assustado do sonho que acabara de ter. Pela primeira vez consegui contemplar o que acontecia na esteira que conduzia os homenzinhos. E viu que seu trabalho era covarde e vergonhoso.

Naquele dia, não conseguiu exercer sua função com o mesmo vigor, entusiasmo e senso de humor característicos. Estava angustiado pois a verdade havia sido revelada a ele em sonho. E não conseguia conciliar o seu ‘Eu’ anterior ao sonho com o seu ‘Eu’ após o sonho. Divagava sobre isso enquanto assistia a procissão de biscoitos humanoides crescer a sua frente, e viu que seu caminho, assim como o deles, se bifurcava a sua frente. A angustia da escolha que deveria fazer cresceu em seu peito a ponto de ficar ofegante, como num ataque de pânico que algumas pessoas experimentam ao serem confrontadas com verdades difíceis.

O dia passou e ele não comeu e não conversou. Foi mandado para casa mais cedo. Seu chefe pensou que ele precisava tirar um tempo de folga. “Não se preocupe, não será debitado do seu salário”, disse. E ele chegou em casa cedo. A esposa ficou a especular o tempo o que acontecera. “Já disse que não foi nada, mulher”, e saiu da sala e foi para o quarto. Queria ficar só.

No dia seguinte, decidido a agir, acordou cedo e dirigiu-se a fábrica. Não podia compactuar com aquilo. Estava na hora de dar um basta. Ao chegar, foi interceptado pelo gerente da unidade que o mandou para a seção de Controle de Qualidade Interno da empresa.

“Recebemos uma chamada da sua esposa alegando que o senhor foi dispensado mais cedo ontem do trabalho e de que estava isolado e não queria conversar com ela”. Indignado, sem entender porque a mulher contatou a companhia, ele disse que não foi nada, que estava pronto para continuar o serviço. Sentiu o peso da ansiedade crescer dentro de si. “Será que sabem o que eu planejo?”, pensou consigo mesmo.

Passou a manha numa salinha pequena que continha uma mesa e duas cadeiras, uma de frente para a outra. Foi conduzido a uma cela no final da tarde. Estava sem comer, sem beber e sem contato com qualquer outro ser humano. Perguntou ao guarda que o conduzia o que iria acontecer e não obteve resposta.

“Isso não pode ser, eu mereço uma explicação. Eu estou bem, não vou fazer mais nada!”, disse. “Então o senhor admite que tinha planos de agir?”, questionou uma voz que veio do megafone.

“Sim, não, quer dizer, não sei de nada. Quero voltar para casa, por favor!”. “Sinto muito, senhor, mas é hora de se preparar para seus momentos finais. Algum pedido final?”, questionou a voz. “Por favor, me deixe ir... por favor. Não vou dizer nada.”, suplicou.

Na manha seguinte, quando chegaram para o levar a sua cela, ele já sabia que o seu destino em muito se parecia ao dos pequenos humanoides. Iriam arrancar sua cabeça. A coisa mais difícil que há de se encontrar é um ser vivo com a consciência despertada.

Patricia Onofrio
Enviado por Patricia Onofrio em 12/04/2019
Código do texto: T6621749
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