Uma trilha

Ele serpenteou por entre as rochas, ora com dificuldade, arfando e avaliando os passos mais seguros, ora com a leveza de uma raposa silvestre em seus trajetos cotidianos. A trilha alternava entre clareiras e matas de dossel obtuso, mas sempre sob o mesmo substrato pedregoso e os mesmos aclives, constantes; o mesmo céu nublado grafite a cair sobre as cabeças dos caminhantes dispersos, que de longe pareciam pequenas formigas vagarosas pelos sulcos de um vale verde escuro e denso. Ao sul, o rio, fina lâmina serena de cristal, corria suave e sempre em direção à lagoa, que subitamente adquiria uma coloração turva, como um olho castanho escuro.

Enquanto peregrinava, apoiando-se nos paredões em busca de equilíbrio, ele olhou para o céu com olhos espremidos e precisos, acostumando-se lentamente com a luminosidade intensa –apesar do sol recluso–, e avistou uma revoada de andorinhas. Por um breve instante, contemplou sua ordenação perfeita, equação de milhares de anos de voos migratórios entre as planícies mornas e secas e as escarpas das serras úmidas e frias; os pequenos seres alados flutuavam harmoniosamente em delta, feito triângulo isósceles; geometria dos anjos beijados pelo vento.

Em toda a paisagem que os olhos continham, a força da vida operava seus milagres anônimos. A singeleza das migalhas, partículas de pó, água e ar, eram dispostas como uma tela de arranjo delicado. Nesse complexo sistema de cores e sons, profundidades e amplitudes, ele respirava em uníssono com a terra e seus inquilinos, todos efêmeros, temporários: lagartas, centopéias, pequenos roedores e peixes, momentaneamente animizados, passageiros.

Por vezes ele se perguntava como seria viver na pele (ou melhor, na escama) de um peixe, com seus impassíveis olhos grandes, suas incompreensíveis guelras e suas nadadeiras finas como seda. Sentia-se um estrangeiro em seu próprio corpo, e indagava se um peixe, na simplicidade do seu ser-nadar, podia experimentar tamanho distanciamento de si próprio; se podia experimentar qualquer coisa além de ir e vir, até o dia de, enfim, morrer.

Por isso, ele caminhava. Buscava algo sem definição, sem concretude. Buscava deixar de buscar qualquer coisa. Seguindo pela trilha, andava e andava para se ocupar somente de andar e andar, sem o tempo, sem suas posses e seus desejos. Era bom, era fácil: andar por um caminho único, já desenhado, sem bifurcações ou atalhos, apenas feito uma grande linha, inteira, máxima, imperiosa. A trilha era seu destino; trilhar, sua razão de ser. E, enquanto andava, era feliz, completo e puro em seu espírito. Sem mover um músculo, sorriu. Dentro.

Ao cair da tarde, as nuvens abriram frestas por entre as quais penetraram pacotes de luz diáfana: laranja, violeta, coral, salmão, anil, ouro e cobre. “Dos dias mais nublados podem surgir os crepúsculos mais intensos”, ele pensou consigo. E pôde senão fitar o horizonte em todo o seu esplendor vigoroso e soberano, como um espectador cuja presença era mero detalhe. O ar, já frio e úmido, era o prenúncio da noite ainda incipiente.

Quando enfim chegou ao ponto onde a trilha finda e onde o despenhadeiro marca a fronteira entre a vida e a morte, sentou-se. Com os pés a balançar sobre o infinito, contemplou tudo abaixo de si: cada suave recorte das pradarias verdejantes, cada sombra elegantemente projetada a emoldurar as arestas dos vales, cada brando farfalhar das copas das árvores – cujo ritmo era como o quebrar das ondas. Sentiu seus membros rarefeitos como o éter; sua mente velejou por entre os mares da inconsciência, alheio à própria existência. Naquele momento, ele e o lugar eram um mesmo corpo.

A noite avançou sobre todas as coisas, plácida como um grosso cobertor de lã, mesclada entre nuvens de cetim luminoso. Enfim ele ergueu-se, leve e ágil; desceu a trilha tomado de uma paz sutil, embalado pela bruma que anunciava o sono profundo em que tudo se encerraria. Na densa escuridão, fez coro ao silêncio do mundo e da sua natureza; e desapareceu por entre os hibiscos.

pedro toscan
Enviado por pedro toscan em 11/04/2019
Reeditado em 24/05/2019
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