A pedra
No princípio o espaço era infinito. O tempo era infinito. Eram poucos: dependiam de serem uma unidade para prosperarem. Surgiu então a palavra, a escrita só viria muito depois, tudo era concreto.
Prosperaram, cresceram, e então, nasceu a primeira fronteira: a natureza fez uma tímida linha de água, que fluía por entre as casas da aldeia, ganhar força e transformar-se em um rio cada vez mais rico. Assim a unidade virou metade e o ódio nasceu.
Gerações se passaram, as histórias do tempo de guerra eram transmitidas oralmente até tornarem-se lendas com criaturas inexistentes. Eram tão potentes que foram elevadas ao patamar de lendas infantis. Assim os fatos eram esquecidos e o rio cruzado por um dos lados. Nova batalha se iniciava e o motivo de não cruzarem era lembrado e, eventualmente, esquecido.
Após ciclos de guerras e esquecimentos surgiu enfim a escrita. Acreditava-se que o registro dos fatos seria suficiente para não esquecer. Esqueceram. De um volume extenso, a história foi simplificada em poucas linhas para que os mais novos pudessem entender sem grandes complicações até que tivessem maturidade suficiente para conhecer a plenitude dos fatos. Quando os mais jovens amadureciam, a plenitude não era alcançada e as frases aprendidas eram simplificadas e tinham tanta força quanto o próprio vazio. O ciclo recomeçava.
Hoje, milhares de anos se passaram e o rio continua a ser cruzado. O esquecimento ocorre sazonalmente: no começo de cada verão o rio é cruzado, as mortes são lamentadas em todos os invernos e os fatos são esquecidos nas primaveras.
É outono, período de seca no qual as margens se aproximam e é possível ver o lado oposto com clareza. Uma jovem de longos cabelos enxagua frutas recém-colhidas na água corrente do rio. Não sabe, mas é observada. Sente. Levanta levemente o olhar e avista seu observador realizando um movimento hostil. Vê então a pedra lançada voando em sua direção, é tarde para desviar, fecha os olhos e nada acontece. Abre-os lentamente e enxerga a pedra aos seus pés. Teve sorte? Levanta novamente o olhar em direção à margem oposta e encontra paz no olhar de seu observador. Calmamente pega a pedra em suas mãos, em seu verso, uma mensagem. O ciclo é rompido.
São Paulo, 07/01/2017-10/01/2019