NÃO ERA PROIBIDO PROIBIR: PÓS - CARNAVAL

1---Houve, no Rio de Janeiro, um bloco carnavalesco extra-calendário chamado CHAVE DE OURO. Lembranças nebulosas mesmo de quem esteve lá...

2---Versão de que a estória transgressora começou no Cine Engenho de Dentro. Chave de Ouro era uma padaria que acabou dando nome a toda a região entre o Méier e o Engenho de Dentro - na mesma rua, a padaria e um cinema "poeira" (geralmente de subúrbio - péssimo ambiente e conforto, entrada mais barata), mas com mais de 800 lugares. Na Quarta-feira de Cinzas, início da Quaresma, 1942 (ou 43, ou 47.........), o cinema exibia em sessão vespertina uma chanchada carnavalesca e de repente faltou luz. Impaciente - dizem -, o público logo começou a cantar /um faz, todos imitam/ e batucar nas cadeiras. O lanterninha Azeitona tocava surdo numa escola de samba, instrumento guardado no cinema. A luz não voltou, saíram para a rua, cantando e dançando... - no dia seguinte, Azeitona despedido! ----- No ano seguinte, o dono do cinema, precavido, chamou a polícia para evitar qualquer bagunça. Cada vez apareceu mais gente imaginando pessoa morta dentro do cinema. Polícia batendo em todo mundo e o bloco nascendo... O comércio passou a contribuir, sendo quebrados os vidros das lojas isentas. ----- Na década de 50, o CHAVE DE OURO já era uma lenda na cidade, atraindo desafiadores foliões de outros bairros. Bateria improvisada, surdos, latas velhas, sem cordão de isolamento, sem licença oficial. Síntese da anarquia e da liberdade carnavalescas. Cobertura favorável da tevê e dos jornais. Polícia liderando a fuzarca. Muitas paródias de sambas e marchinhas incomodando os Poderes Constituídos. Quinhentos ou mais foliões. O bloco não perdoava os desafetos do povo, em especial supostos crimes (apenas supostos?) da polícia. ----- Ora, segundo a instituição Igreja Católica, o bloco violava a Quaresma, aí repressão bem mais acirrada, o que - pelo 'proibição' - só aumentava a fama do bloco e a disposição dos foliões em transgredir: a famosa irreverência do "mundo" carioca (criticada e fartamente copiada). Ante a chegada da polícia, moradores ofereciam as casas como refúgio, onde escondiam instrumentos e cartazes... logo recomeçavam.

3---Era assim - desde cedo, na Quarta-feira de Cinzas, as pessoas começavam a se reunir-concentrar em pontos estratégicos - detetives infiltrados para deduragem (ainda não tempo de celular!) - e ao meio-dia, hora se sacralizando mais adiante, o tradicional bloco desilava nas ruas do Engenho de Dentro, subúrbio do Rio. Vinham rádios-patrulha e choque da policia militar. A polícia em cima, borrachadas em todas as direções, até mesmo nos passantes casuais que nada tinham a ver com o desfile - com os anos, passou a ser também (desordem e progresso?) gás lacrimogêneo. Jornais sérios publicavam sempre reportagens e artigos a favor dos procadores carnavalescos. "Libertas quae sera tamen"....... - já se dizia no século XVIII.

4---Em fev./1966, sob grande chuva, farra boa e apareceu até um carro alegórico. Surgiu um capitão. maneirou para mais cautela os subordinados e permitiu o desfile, desde que acompanhado pelo choque da PM - 100 figurantes com fantasias improvisadas, início atrasadão às 18 horas, exatamente por acaso horário pecaminoso do Angelus, toque das Ave-Marias. Samba "Este ano não vai ter colher de chá". ----- No ano seguinte, marcha com letra modificada em sátira à polícia. Policiais de capacete. Uma companhia de cavalarias. cinco pelotões de choque da PM e quatro viaturas da temida Invernada de Olaria, famosa e violenta. E mesmo assim o bloco saiu. ----- Em 1968, tentaram sem resultado a autorização. Os diretores do bloco, do coreto da pracinha, tentaram explicar: desfile (perigosão!) adiado até que conseguissem a licença - vaiados!!! Desfile apenas menor. ----- No carnaval de 1969, primeiro ano após o AI-5, ditadura militar brabíssima bem mais violenta, aumento da repressão ao "inocente" e civil bloco; PM queimou ostensivamente cartazes, imprensa (bendito Gutemberg!) fotografou, polícia arrancou filme das máquinas - matéria rebelde publicada sem fotos. ----- Em 1971, auge da repressão: 35 viaturas e 200 policiais bloquearam as principais ruas, mas nada intimidou os foliões brincadeira de gato e rato com os perseguidores frustrados. O bloco morreria se a polícia não aparecesse? Pro-fe-ci-a. ----- Em 1972, os cartazes mais subversivos que nunca. O novo delegado da 26 DP

(lia Jung? - interação /comunicação, diálogo/ entre egos, um dos principais arquétipos da personalidade: esquerda, direta, liberal e conservador) usou uma tática nova; autorizou a saída do bloco, permitiu que alguns foliões subissem e cantassem em cima dos carros da polícia. Discursou e definiu democracia desde a Grécia Antiga (embora ainda não participativa) sob aplausos da multidão, "...assumida burrice da polícia proibir etc. etc. etc." - desfile encerrado com o samba "Paz e amor" na maior tranquilidade, sem preciso mostrar lenço ou documento.

5---A partir dai, tudo mudou; em 1974, um nostálgico desfile, delegano na frente do cortejo; em 1978, o bloco não tinha mais graça. Sem o vulgar apelo da perseguição, cadê o CHAVE DE OURO?

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LEIAM meus trabalhos "Hoje é dia de folia!", "Carnaval" e "Velhas baianas".

NOTA DO AUTOR:

CHANCHADA - Espetáculo ou filme de humor ingênuo ou burlesco, de caráter popular, comuns no Brasil até a década de 60.

FONTE:

"Bloco é subversão" - Rio, revista Época, 4/3/19.

F I M

Rubemar Alves
Enviado por Rubemar Alves em 06/04/2019
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