PRETO E BRANCO

BETO MACHADO

I

Os olhos de Agostinho brilhavam esplendorosamente quando desviavam o foco, saindo do chão que lustrava, para a cadeira que embalava a sinhá Vitória. O encerar do assoalho da sala de estar da casa grande da Fazenda Esperança era uma tarefa que o menino, recém chegado à fase adolescente recebera, com a mesma euforia de quem recebe um prêmio merecido. Na verdade nem sabia se tinha merecimento de desenvolver aquele labor, para ele, tão prazeroso.

Depois de mais de um ano é que ele soube que sinhá Vitória foi quem havia sugerido à governança da casa que lhe desse tal incumbência.

A filha única da família Fagundes Moreira, pertencente a uma dinastia que já dera ao Brasil respeitáveis artistas e parlamentares de prestígio, se preparava, com esmero, para deixar seu nome na história. Embora patrocinada totalmente pelos resultados dos investimentos do pai, o Coronel Fagundes, calcados em atividades latifundiárias ela tinha a mente alinhada com o que mais tarde viria ser classificado como socialismo.

Certa feita, Agostinho encorajou-se a provocar um diálogo com sinhá Vitória que, aboletada em esparramo, na sua cadeira de balanço, riscava com as unhas, de maneira branda e quase sensual, suas pernas, sempre ocultas pelos saiotes tão longos quanto seus robustos membros inferiores. O jovem negro sabia que se detivesse o olhar sobre aquela quimera por mais tempo que o natural, chamaria a atenção da distinta moça e ficaria exposto a reprimendas desproporcionais aos erros cometidos pelos serviçais. A sensação que o acometia, naquele momento, era nova em sua vida, mas não a pioneira. Andara sonhando com coisas que, ao despertar, deixavam sua mente prenhe de constrangimento, pois as marcas eram evidentes nas suas vestes, dias após dias

---Agostinho, pelo visto, não tens mais nada a colocar o teu, já apreciável, corpo em labuta depois da incumbência que te deram a fazer por aqui. Estou certa?

--- Está muito certa, Sinhá; muito certa.

--- Pois eu tenho o propósito de te manter ocupado por mais algum tempo. Só preciso certificar-me se a Governança da Fazenda não vai cair em oposição ao meu querer, visto que meu pai encontra-se em diligência de negócios, há dias, por esse mundo de meu Deus. E a ele devo a aprovação das minhas vontades, não a outros... Julgam-me uma fedelha a vestir cueiros. Enganam-se todos. Menos meu pai.

--- Tô sempre às ordens de minha Sinhá.

--- Pois muito bem. Acompanha-me.

Além do Coronel Fagundes apenas Sinhá Vitória possuía as chaves da biblioteca e do escritório da casa grande.

O Coronel Fagundes colecionava obras de arte e livros raros, editados em várias línguas. Era um homem simples e culto; empreendedor e expansionista. Sonhava casar sua filha com um grande artista ou com um político de prestígio do seu estado ou da capital.

Ao adentrarem na biblioteca, Sinhá Vitória fingia não perceber que Agostinho mantinha-se quase estático, diante de uma estante que cobria toda a parede frontal à porta de entrada. Era a estante dos livros raros. Passada a estupefação inicial, Agostinho se volta para os quadros pendurados, adornando o ambiente. Ali estavam todos os pintores consagrados nas várias fases das artes plásticas, no mundo inteiro. Nos livros estavam os poetas, os pensadores, os filósofos, os contista, os romancistas, assim como suas biografias. O jovem negro, por algum momento, imaginou-se num sonho... Despertou rapidamente com o chamado de Sinhá Vitória.

--- Gostou do viu?

--- Muito... Quantos mundos estão escondidos aqui, Sinhá?

--- Que pergunta difícil, menino!!!! Nunca desviei minha mente para memorizar esses números. Sabes ler?

--- Não ainda, mas tenho gosto em aprender.

--- Bom ouvir isso de um negrinho serviçal. Ou bem me engano ou não vejo nas pessoas de tua raça vontade de abraçar saberes diferentes daqueles trazidos dos seus ancestrais africanos...

--- Não é falta de vontade não, Sinhá. A gente não tem é como aprender coisa de escola. Desde pequenino eu escuto a minha mãe dizer que tem coisa de branco e tem coisa de preto.

--- E tu concordas com ela?

--- Tem coisa que sim, tem coisa que não.

--- Moleque, tu és mais esperto do que eu imaginava... Eu devo te dizer que te chamei aqui, neste lugar privado de olhos e ouvidos, para te usar. Como já observei, e garanto que tu entendeste, teu corpo ultrapassou as barras da meninice, precocemente... Já te puseram em estado de fornicação?

--- Nunca.

--- Ótimo... Te oporias se eu o fizesse?

--- Não. Até já sonhei com isso.

--- Comigo, moleque?

--- Não, Sinhá... Imagina!

--- Ah! Acho que tua mente não se atreveria me despir, nos teus sonhos, sem meu consentimento.

--- Eu também acho, Sinhá.

--- Ora muito bem. Como já viste, encontro-me com uma indisposição epidérmica, que os simples chamam de coceira e os antigos chamam de “já começa”. Preciso saber se outras mãos, que não as minhas, conseguem aliviar-me deste enfado aborrecedor... Traz aquela cadeira pra diante da minha e senta-te.

A distinta moça pousou suas pernas sobre as do negrinho com corpo de rapaz, segundo ela; puxou a barra do saiote até às virilhas e ordenou que Agostinho iniciasse sua tarefa extra. Coçá-la.

Agostinho, banhado de suor, alisava a pele da Sinhá Vitória com um tremor nas mãos e os olhos fechados. Ela fazia menção de estar lendo, mas o livro servia mais para esconder seu rosto do que para lhe dar informação sobre algo. Quanto mais as mãos de Agostinho se aproximavam de suas virilhas Sinhá Vitória mordia mais forte os lábios, retesava os músculos e sussurrava som de gemido.

A mistura dos suores fazia com que as mãos do negrinho, pra lá de excitado, transmitissem para a cútis de Sinhá Vitória a energia herdada dos ancestrais africanos.

Ali estava a solução mais simples do processo químico: o preto e o branco diluídos, formando uma base cosmética com dupla função: balsâmica e afrodisíaca.

Agostinho abria os olhos intermitentemente para se certificar se Sinhá Vitória ainda fingia ler. Numa dessas olhadas, reparou que a distinta moça já não ocultava o rosto com o livro. Seu coração disparou quando ela estendeu-lhe as mãos e puxou-o para si, como quem puxa um boneco. A cadeira onde sentara Agostinho fez um ruído tão alto que Sinhá Vitória temeu que alguém, fora daquele ambiente, pudesse ter ouvido.

--- Olha, Agostinho, prefiro misturar o gozo da minha virgindade com a tua do que alimentar a sanha desses caçadores de cabaços que tentam enganar meu pai com promessas de casamentos luxuosos e felicidade eterna para a desposada, desde que essa fique submissa às suas vontades.

--- Nossa!!!! Que horror!!!

--- Então tira essa túnica. Quero sentir tua pele roçando na minha. Agora desamarra a corda da tua calça e te erga.

Sinhá Vitória vira-se de costas para Agostinho e ordena que ele desamarre os cordões de seus saiotes.

Obediência era o forte do serviçal. O prêmio veio instantâneo. Uma mulher semi nua à sua frente, pela primeira vez em sua vida. O coração parecia querer pular pra fora do peito. O membro genital impedia que a calça despencasse rumo ao chão, depois de desatada a corda do coz. Mesmo se vivesse por mais cem anos, jamais esqueceria aquele dia. E realmente foi inesquecível a primeira fornicação daqueles jovens tão iguais e tão diferentes.

Passados dois dias, daquilo que motivara uma mutação esplendorosa no corpo e na mente da jovem dupla, o Coronel Fagundes Moreira retorna à casa. Sinhá Vitória sentia-se mais feliz e mais apoiada, na volta do pai.

Ainda não mencionei a mãe de Sinhá Vitória para evitar assuntos tristes ou desagradáveis, logo no alvorecer dessa história. Prefiro dizer que o Coronel Fagundes tinha sido pai e mãe desde a primeira infância da filha. É claro que as pretas velhas se revezaram no aleitamento e no paparico da herdeira única do senhor da fazenda. E essa ação voluntária rendeu ao, já reduzido, grupo de escravos e alforriados residentes nas terras dos Fagundes um viver menos duro que o de outros negros pertencentes a outras fazendas.

Agostinho se esforçava para guardar só pra si aquela façanha realizada, sem que precisasse mover uma só palha; tão somente por impulsos da Sinhá Vitória e pela sorte que resolvera abraçar sua boa índole. Ele sabia que se vazasse um fato grave como aquele, acontecido num ambiente inviolável, tanto da parte da imagem, quanto do som seria seu fim. Então silenciou. Mas sofria todas as noites quando sonhava com cenas daquele dia e até com outras que nem haviam acontecido ainda. E essas novas cenas surgiam no sonho sem o consentimento de Sinhá Vitória, o que também era um grande risco para ele. Risco de perder a chance de repetir aquele fato extremamente prazeroso.

A rotina da Fazenda Esperança transcorria como se nada houvera acontecido de extraordinário na vida de dois jovens de classes sociais e relevâncias diferentes, mas que conviviam normalmente num ambiente comum.

A professora de filosofia de Sinhá Vitória foi a primeira pessoa a notar mudança no semblante e na maneira de interagir que a distinta moça exibia com um esplendor voluntário, característica muito rara nessa floral geração.

O Coronel Fagundes mantinha sob seu controle os estudos da filha. Seis professoras de disciplinas, julgadas por ele, de altíssima importância na formação da querida herdeira freqüentavam regularmente a casa grande da fazenda, trazidas e levadas, sob a responsabilidade do patrono.

Dona Teresinha Almeida, formada e ciências filosóficas e história antiga, diplomada pela Universidade de Coimbra, Portugal teve seu nome indicado para lecionar na fazenda por um político amigo e quase parente dos Fagundes, além de fazer parte do grupo que Sinhá Vitória chamava de “caçadores de cabaço”. A aluna dedicada tinha a professora como sua confidente. Do pai recebia toda, e incondicional, proteção, mas seus segredos eram confiados tão somente à amada mestra. E não eram poucos os sigilos relacionados às demandas do seu coração. E como lhe custava dominar o coração, que fazia seu lado emocional mostrar-se tão diferenciado do racional!... E agora essa última... Perder a virgindade fornicando com um serviçal. Pior... Mais novo que ela.

Nem se fosse um grande escritor seu pai teria dado vida a dois personagens, incumbidos de praticar sexo, nas mesmas circunstâncias que fizeram Agostinho e Sinhá Vitória misturarem seus suores, seus corpos e seus sêmens, numa tarde inesquecível para os dois.

Mas agora que o “consumatum factum est”, era o momento de encarar as mudanças, com dignidade e firmeza.

--- Dona Teresinha, sinto-me numa felicidade tão grande que, conhecendo a mestra como conheço, aposto que teus olhos já o perceberam. Estou certa?

--- Plenamente. Já te ia perguntar o motivo.

--- Um misto de prazer e rebeldia, no início, mas depois me veio um sentimento estranho, não experimentado antes.

--- Na tua idade há um sentimento que costuma atropelar todos os outros.

--- Dize-me, mestra, por favor, que sentimento é esse?

--- O amor.

--- Nossa!!!! Será, mestra?

--- Pode ser amor ou pode ser paixão.

--- Há diferença entre essas coisas?

--- Primeiro, não são coisas, são sentimentos. E são diferentes, na forma e na intensidade... Pelo visto, muita coisa aconteceu por aqui, nestes dias de minha ausência, heim?!

--- Sim, mestra amada. Meu pai também manteve-se afastado desta casa por alguns dias, em diligências de negócios. E eu aproveitei para exercitar minha auto afirmação. Há muito que não me sentia mais uma menina.

--- Ou muito me engano ou queres me informar de algum segredo teu. Certo?

--- Certíssimo.

--- Conta... Sou só ouvidos.

--- Sinto-me hoje uma mulher mais completa do que em tempos anteriores ao ato prazeroso que cometi dias atrás.

--- Fizeste ato sexual?

--- Sim... Fiz.

--- Sabes da gravidade e das conseqüências deste ato?

--- Sei... Estou preparada para assumir minha atitude, caso chegue ao conhecimento de meu pai.

--- Pois chegará, de certo... Não por minha informação, mas esses atos produzem rastros bem visíveis, por onde passam quem os cometem.

--- Haverei de suportar as dificuldades que surgirem; mas que não me suprimam esta sensação de felicidade que ora invade meu ser.

--- Linda essa tua reação... Mas eu posso saber de quem é a face do outro lado da moeda?

--- Pode, mas não caia em estado de estupefação.

--- Não tenho mais idade de surpreender-me diante de fatos amorosos.

--- Pois eu me meti em fornicação com o Agostinho, o negrinho serviçal da fazenda.

--- Que Deus te perdoe. E ilumine o espírito do teu pai...

--- Meu ato ofendeu a confiança que depositavas em mim?

--- Não, pois tens a dignidade se abrir aos meus ouvidos... Mas a tua ação me leva a um patamar de preocupação com o teu futuro, que eu ainda não havia experimentado.

--- O tom sombrio da tua voz me assusta, mestra.

--- O motivo dessa sombra no meu falar, é que eu já tenho-te como filha. E filha tu não me és, nem por legitimidade, nem por genética. Mas a afetividade supera tudo isso... Bem, recuperemos nosso astral positivo e vamos ao nosso estudo.

--- Certo... Aqui estão as minhas impressões sobre os textos de Platão.

Enquanto a professora de Sinhá Vitória dava uma refreada na euforia da aluna, a mãe de Agostinho aplicava no filho uma “injeção de ânimo”, para que ele não atrasasse suas tarefas domésticas que tinha sob sua responsabilidade. Aurora, alforriada, era cozinheira da fazenda e tinha sob sua orientação três jovens negras, nascidas livres e que não conheciam senzala, posto que desde o tempo que o pai do Coronel Fagundes passou-lhe o comando patrimonial da família, este eliminou o que chamava de pecha na história do Brasil: a senzala.

--- Filho querido, tenho visto seus olhos com jeito de peixe morto, sem o brilho de costume... Cadê aquela gargalhada gostosa q’ocê dava quando achava graça nas conversas?

--- Tá acontecendo nada não, mãe. É que eu to virando um homenzinho. Lembra que a vovó falava isso pra mim?

--- Desconversa não, menino. Mãe não se engana não. É melhor arriar logo essa trouxa no chão, e desembucha.

Agostinho sentia que apenas palavras não convenceriam sua mãe. Tentou teatralizar e soltou a sua já característica gargalhada.

--- Eu to bem, minha querida mamãe. --- abraçando aquela que lhe deu à luz do mundo.

--- Precisa treinar mais, moleque, pra passar a perna em sua mãe... Tem coisa de coração nesse negócio, não tem? --- Aurora afaga a carapinha do filho como se tivesse se preparando para hipnotizá-lo.

--- Posso responder de noite, depois da reza?

--- Pode. Mas não minta pra sua mãe. Se precisar guardar segredo eu guardo.

--- Eu sei que posso contar com a minha mãezinha querida.

--- É. Mas agora vai fazer o seu trabalho, com a mesma presteza de sempre.

O coronel Fagundes apeou do seu cavalo alazão, na direção da janela de madeira trabalhada que, ao mesmo tempo que dava proteção ao ambiente interno, enchia de admiração e prazer os olhos dos passantes no quintal arborizado. Dentro do vasto cômodo, adaptado para atender as necessidades de todas as professoras de Sinhá Vitória, o coronel avistou Dona Teresinha, amarrou a rédea à uma coluna da varanda e descansou seus cotovelos na soleira da janela, até que a mestra e a aluna o percebessem.

--- Pois estamos às suas ordens, patrão.

--- Nada que mereça incomodá-las, mas não me privo de observar beleza feminina.

--- Bravo, senhor. Falas como um poeta.

--- Gentileza de tua parte. Porém, acho que meus olhos a vêem como uma inspiração. Se em tom de poesia falo, deve ser por isso.

--- Meu pai, por onde andaste dias passados? Que mundos foram esses que te fizeram virar poeta?

--- Não se vira poeta, filha. A poesia forja os poetas, gradativamente. Mas a essência nasce na concepção.

--- Teremos aumentadas nossas honras se vieres, pela porta, acompanhar nosso trabalho.

--- Se não as incomodo, o farei... A montaria cansou-me o bastante para eu colocar-me em repouso, num assento confortável, por algum tempo... E com presença agradável a recuperação é mais breve. --- o coronel pulou o parapeito da varanda, rodeou até a porta e entrou.

Não era de costume a presença do coronel naquele recinto. Mas pairava nos ares da fazenda um clima de mudança; uma correnteza de novidades espocava aqui e ali, sem o conhecimento de muitos daqueles viventes.

II

Passado o período das investidas de Sinhá Vitória, na tentativa de persuadir seu pai a antecipar a sua maioridade, desprezando a burocracia cartorial e a lei, que, segundo ela, importava menos que a evolução, mesmo precoce, de uma vida desabrochando sob um sol voltado para o futuro, as coisas começavam a sofrer mutações radicais na Fazenda Esperança.

O Coronel Fagundes, percebendo o interesse da filha nos assuntos administrativos da fazenda, combinou com o seu capataz, que este orientasse Vitória sobre o funcionamento daquela “máquina”. João Lagoinha se saiu melhor que a encomenda. Metade de um ano bastou para que Sinhá Vitória tomasse conhecimento de todos os meandros administrativos da empresa da qual lhe aumentava o pertencimento.

O dinamismo de Vitória era tão acentuado que até mesmo sua confidente, a sua mestra amada, dona Therezinha Almeida, admirava-se de como a sua dedicada aluna conseguia tempo para tantas tarefas executadas com sucesso, em especial a alfabetização do jovem negro Agostinho.

O espantoso progresso de Agostinho no trato com as letras foi visto por todos como coisa de personagem de contos de Fadas. Mas fabulosa mesmo era vontade daquele serviçal no sentido de aprender ler e escrever, não apenas palavras soltas, mas criar e contar histórias com a qualidade das que continham nos livros raros, vistos por ele, no lugar onde, pela primeira vez, manteve contato sexual com uma mulher. Sua intenção era ter aqueles escritores como sua referência. Queria e prometia a si e aos que conheciam seus esforços lê-los todos, sem faltar um. E fê-lo... Cumprida a promessa, começa a tarefa tomada pra si, como gratidão: Alfabetizar outros serviçais da fazenda, inclusive sua mãe.

A primeira pessoa a receber a notícia da intenção de Agostinho de fundar uma escola de alfabetização na fazenda foi Sinhá Vitória. Não poderia ser outra. Ela dera o ponta pé inicial dessa história lá na biblioteca do pai, naquele seu primeiro dia de troca de prazeres sexuais a dois, no preliminar diálogo com Agostinho.

III

Era o último lampião a ser aceso naquela rua. O Homem da Luz, como ficou conhecido Agostinho, nos povoados cujas noites se tornaram menos turvas, deixava sempre a Rua das Hortênsias como sua derradeira tarefa diária. Essa rua era um verdadeiro jardim ladeira acima. Causava a impressão aos passantes mais atentos de que teria havido, em tempos pretéritos, uma avalanche de sementes florais que germinaram desde o topo da elevação até a encruzilhada com a avenida principal da cidade. Todo o cansaço por sua longa caminhada, aumentado pelo manuseio e transporte do ferramental, era dissipado ao contato visual com essas flores.

O emprego de acendedor de lampiões fora disputado numa proporção de cinqüenta candidatos para uma vaga. Por conta das condições sociais de Agostinho, não fosse o prestígio e a influência do Coronel Fagundes, muito dificilmente um negro serviçal de fazenda alcançaria o êxito da aprovação.

A gratidão foi o nobre sentimento que invadiu de tal forma o coração de Agostinho, que o bom negro fazia questão de visitar, ao menos duas vezes na semana, a fazenda onde nascera, fora criado, alfabetizado e seu nome era precedido de adjetivos, os mais qualificativos. As más línguas, fartas de sarcasmos, diziam que sua ida com freqüências às terras dos Fagundes era para manter informado de novidades seu padrinho, e alimentar seu amor platônico que nutria por Sinhá Vitória. A seguir-se a lógica de uma retrospectiva de convivência até a adolescência dos dois, poder-se-ia acreditar nos fofoqueiros. Mas, na verdade, o que há é muita fuxicada dos maldosos. Visto que a despeito de seu primeiro encanto amoroso ter ido morar e estudar na cidade do Rio de Janeiro, Agostinho mantém sua rotina de visitas à fazenda.

A morte da mãe e agora o emprego público aceleraram sua intenção de conhecer novos ares, outras pessoas, novos conhecimentos profissionais. Em suma, evoluir. E ele fez tudo isso com naturalidade.

“O tempo na zona rural é mais lento que nas áreas urbanas”. – Agostinho leu essa frase num dos vários livros que Sinhá Vitória deixara a disposição dele, após terminar sua tarefa de alfabetizá-lo.

A biblioteca do Coronel Fagundes foi quase totalmente devorada pela avidez por leitura de Agostinho. Poucos foram os livros que ele não mergulhou sua mente no texto.

Quando criança pensava que as terras da Fazenda Esperança eram os limites geográficos de sua cidade natal. Ouvia falar de algumas urbes que, pra ele, eram inatingíveis, como Rio de Janeiro, Salvador, São Paulo... Já a cidade que recebe o afilhado do patrono da Esperança não se assemelha com a que a mente de Agostinho imaginava em tempos da primeira infância. As notícias trazidas pelos mascates, vendedores de bugigangas eram sempre super valorizadas em termos de quantidade e de qualidade.

A partir da adolescência ele já começa a formar seu senso crítico, e foi, conseqüentemente, mitigando sua crença nas informações trazidas lá dos centros urbanos pelos “cascateiros”.

Moradores e freqüentadores da urbe Mangaratibana eram apressados, desconfiados, sem nenhuma vontade de se relacionar ou cumprimentar desconhecidos.

IV

Dona Zilá, proprietária da melhor pensão da região, amiga de infância do prefeito e de muitos políticos da cidade, recebe um pedido do Coronel Fagundes que soava como uma determinação: --- “Amiga, um dos meus serviçais conseguiu emprego na prefeitura e precisa morar na cidade. Reserve um quarto para ele. Seu comportamento tem o meu aval. Fagundes”.

A essa ocasião Agostinho era possuidor de um corpanzil cuja massa física se parecia à dos gladiadores romanos. À exposição no sol o negrume de sua pele brilhava a ponto de ofuscar os olhos sensíveis a lumes refletidos.

Como prêmio por ter sido “aprovado” no concurso público Agostinho recebeu do “padrinho” várias peças de roupas e pares de sapatos. Tudo novo. Acomodadas em grandes valises, as peças do conjunto de presentes estavam acompanhadas de moedas pataca e de vintém, o que garantiriam ao bom negro sua manutenção por mais dois meses, visto que o pagamento pelo aluguel do quarto, Sinhá Vitória, quando soube da ida de Agostinho para Mangaratiba, deixou em depósito seis meses, possibilitando a ele, com seu primeiro salário se preocupar, tão somente, em mobiliar seu novo ninho.

Dona Zilá demonstrou bastante perplexidade quando da visita da filha do Coronel Fagundes a sua residência, acompanhada de vários empregados do seu amigo. Sinhá Vitória fora até a pensão para se ver com Dona Zilá e antecipar o pagamento de seis meses pelo aluguel do quarto de Agostinho.

--- Creio que falo com a senhoria desses aposentos de aluguel. Estou certa, senhora? --- pergunta Sinhá Vitória antes mesmo de se apresentar ou apear do seu belo cavalo.

--- Sim, senhorita. De quê posso servir-lhe.

--- Sou Vitória, filha do Coronel Fagundes...

--- Deus do céu!!!!!!!!!

--- Qual o motivo do seu espanto, senhora?

--- É que a gente só percebe o passar do tempo numa ocasião como essa agora... Eu diante da filha da Estela Fagundes... Tão linda quanto a finada.

--- A senhora conheceu minha mãe?

--- Fomos amigas de infância... Mas a quê devo a sua visita, moça? Sou Zilá às suas ordens.

--- Seu nome não me soa estranho aos meus ouvidos... Mas o que sucede é que eu estou de partida, na próxima semana, para o Rio de Janeiro, onde aprimoro meus estudos acadêmicos e preciso deixar as coisas acertadas; dentre as quais o pagamento antecipado pelo aluguel do quarto do Agostinho.

--- Estás certa dessa necessidade de antecipar os pagamentos pra frente?

--- Sim. Por seis meses ele ficará descompromissado deste encargo e poderá dar um novo lume ao seu futuro, que a mim parece promissor.

Por mais que Dona Zilá tentasse entender não conseguiria saber: “por que tanto xodó dispensado a um negro serviçal?”

--- Pois aqui estão as patacas relativas ao compromisso. --- Vitória curva-se e entrega um pequeno saco de moedas.

--- Se assim achas conveniente, agradeço a consideração... Comunicarei ao negro Agostinho assim que retorne para o almoço.

--- Como tenho a certeza que a distinta senhora, ao comunicar-lhe a minha vinda aqui, não mencionará meu nome precedido da palavra branca, prefiro que, ao se referir ao Agostinho, dialogando comigo, evite adjetivar seu nome com qualquer palavra que lembre a cor de sua pele.

--- Mil perdões, senhorita Vitória. Não há em mim nenhum intuito de ofensas ao Agostinho. Realmente temos que vigiar nossas mentes e corações, que se encheram desses vícios desde nossas infâncias.

--- Não precisa se desculpar, senhora Zilá; já que demonstra o discurso dos bons... Tenha um bom dia e bons negócios.

--- Faça uma boa viajem, senhorita Vitória.

O tom seco da despedida daquelas mulheres de gerações, cronologicamente, distantes plantou na cabeça das duas algumas dúvidas.

Vitória jurava para si mesma, já haver escutado o nome Zilá na sua infância, em casa.

--- Porque meu pai nunca me falara sobre ela, se tinha sido amiga de minha mãe? ---Pensava Vitória.

Enquanto o grupo de cavaleiros, comandados por Sinhá Vitória, não desapareceu no final da rua, tomando a estrada principal Dona Zilá mantinha-se estática, olhando a esvoaçante veste da mulher que conhecera bebê e não havia visto mais até minutos atrás... Vitória parecia flutuar sobre seu cavalo, um robusto e elegante marchador cujas crinas e calda tinham o mesmo trato e atenção que os cabelos longos da dona. Dona Zilá deu um suspiro, ensimesmou-se num pensar retrospectivo e entrou em casa para guardar em local seguro a sacola com as patacas recebidas de Vitória Fagundes.

--- Será que o coronel sabe da vinda da filha em minha casa? --- Pensava Dona Zilá.

V

Pelo simples fato de Agostinho não ser branco e ter conseguido um emprego público na administração municipal virou motivo de estranhamento, e colocava um marco na história da cidade e muita “caramiola” na cabeça dos munícipes, até porque a Lei Áurea tinha sido assinada havia pouco mais de vinte anos. E muitos ex-donos de escravos, ora libertos, ainda não sabiam o que fazer daquele passivo social que lhes restara, por não terem apostado, nem acreditado na intenção e nas ações dos abolicionistas.

Durante um bom período a pergunta mais freqüente nas rodas de amigos, pelas praças de Mangaratiba era: --- “O quê de especial tem aquele negro pra estar ocupando tal cargo na prefeitura”?

A resposta foi dada pelo próprio Agostinho a todos os interessados: “Dedicação no trabalho”. Cumpriu o período de treinamento em tempo recorde, produzindo na mente de seu treinador uma certeza: “Esse menino vai longe”.

Seu Zé Pequenino já estava em fim de carreira no ofício de iluminador da cidade. Ficara incumbido de treinar os recém admitidos no cargo... Viveu apenas mais um ano, após deixar o trabalho na prefeitura, por motivo de doença grave; e, segundo os mais íntimos, por motivo de saudade. Saudade dos amigos e da rotina que o mantinha, grande parte do dia e da noite, longe da mulher ranzinza, com quem morava havia quase cinqüenta anos.

Agostinho não se limitava a acender os lampiões apenas. Durante o dia se entrosava com o pessoal burocrático; e pouco a pouco ele se viu confundido com os escrivães contábeis nos gabinetes, por conta dos seus trajes. À noite, seu rumo era ir às ruas, esticando o dia daqueles que deram seu suor na labuta o dia inteiro, para o prazer do prosear ao vento vindo do mar ou inventar historinhas pitorescas sobre a lua, aproveitando a brisa fresca vinda da serra, cheirando a flores de ingazeiros e dos sagüis mexeriqueiros.

VI

Ao avançar para o poente do século XIX a política e a economia do BRASIL sofreram mudanças radicais. Em maio de 1988 a abolição da escravatura foi estopim que reacendeu na cabeça dos antiimperialistas o sonho de proclamarem a república no país.

Demorou não mais de um ano e seis meses para que os militares e a oligarquia rural insatisfeita com a alta carga tributária imposta pelo Império e mais, agora, a grande perda de mão de obra escrava proclamasse a REPÚBLICA DOS ESTADOS UNIDOS DO BRASIL, menos por ideologia nacionalista e mais por retaliações fincadas nos desejos pessoais

Era o fim do IMPÉRIO BRASILEIRO.

Tanto quanto a política a economia também é dinâmica. A crise da mudança de regime político produziu alguns estragos. Contratos internacionais foram quebrados, estimulando a fuga dos investimentos, por conta das dúvidas e das dívidas.

A Constituição de 1891, a primeira sob a ótica republicana, veio trazer, ao capital estrangeiro, certo grau de confiança.

Com a chegada do século XX o BRASIL inicia a expansão em infra estrutura para acompanhar o desenvolvimento industrial, mundo afora. As ferrovias vieram para melhorar a inter comunicação dos estados de Minas, S. Paulo, e Rio de Janeiro, facilitando o transporte de carga e de passageiros.

Mangaratiba foi um importante ponto de escoamento de produtos minerais, vegetais e animais, oriundos de outras regiões, trazidos em lombos de burros, por estradas precárias, que ligavam cidades e estados, devido à mansidão das águas do seu litoral. Barcaças e mais barcaças zarpavam daquela costa que refletia o verde da serra do mar, em direção a grandes portos como o do Rio de Janeiro, Parati ou Santos. E a tributação aduaneira era operada pela administração da cidade. Esse sistema manteve Mangaratiba próspera durante longo tempo.

O tempo foi passando e, a despeito de as oligarquias rurais brasileiras tivessem protagonizado o processo que culminou na Proclamação da República, o desgosto com a política foi tomando conta dos corações daqueles que produziam para alimentar o país e ainda sustentavam, com os tributos altíssimos, primeiro a Nobreza e depois os políticos. O que tinha sido desgosto, recrudesceu de tal forma que virou ódio, em alguns casos... Houve muitos assassinatos com motivações, comprovadamente, políticas. Enorme número de aliados tornou-se adversário. Mas é verdadeiro que o contrário também se deu, na mesma proporção.

VII

O coronel Fagundes tirou bastante proveito da crise e do êxodo de grande parte de seus concorrentes, debandados para outras cidades. A administração da Fazenda Esperança, assim como todos os ativos patrimoniais da família, encabeçada por Vitória, ultrapassou a melhor das expectativas. Ampliou a pecuária, expandiu a agricultura, construiu abatedouros para processamento de produtos de origem bovina, suína e avícola, depois de importar técnicas e equipamentos de países do primeiro mundo.

Roberto Candido Machado
Enviado por Roberto Candido Machado em 02/04/2019
Reeditado em 15/05/2019
Código do texto: T6613618
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