Entre as estrelas
Nunca acreditei no sobrenatural embora nesse mundo existam muitos mistérios, como os acontecimentos daquela noite estrelada e profunda de outono, quando eu caminhava de volta da faculdade para o pensionato universitário em que morava. Estava com meus vinte anos, aborrecido com a vida, pensando se a faculdade que eu havia escolhido era mesmo o que eu queria, quando notei uma aglomeração ao redor de um antigo estabelecimento de esquina que sempre esteve fechado e pelo qual passava todas as noites, mas que agora havia sido transformado em um agitado point underground. Pela calçada, pessoas conversavam, algumas bebendo cerveja, outras fumando narguilé. Parei em frente ao salão e vi que lá dentro havia de tudo um pouco. No fundo, pessoas aproveitavam para raspar o cabelo com cortes exóticos; ao lado, uma jovem terminava de tatuar um unicórnio no braço; em um canto, duas namoradas liam mangá acomodadas em um pufe; dois homens grafitavam na parede uma árvore com galhos que culminavam em mosaicos, e, no meio do salão, uma baterista, uma guitarrista travesti e uma vocalista formavam uma banda.
— Beijo na virilha, galera! – saudou a vocalista da banda. – Nós somos as Liliths da Babilônia – anunciou sob aplausos. – Estamos aqui pra cantar o som que tá na nossa mente pra sua mente.
Outra curiosidade, se é que havia algo de comum ali, era que a banda convidava uma pessoa para entoar um poema ao microfone após cada música. Permaneci na calçada, olhando para uma ruiva de olhos claros e batom escuro que chegara para declamar seu poema.
— Meu poema se chama “Rá em sua prancha dourada” – anunciou. E com uma voz suave entoou, acompanhada pelo ritmo da bateria: – “Há muito tempo, nem se lembrava quando, se pouco antes das pirâmides ou logo depois da queda de Atlântida, Rá acordou da sepultura onde se mumificava toda noite. Olhando pras estrelas, cansado daquela vida morta, sentiu frio. Vazio. Rá se cansou de se cansar e então riu. Rá! Rá subiu no sarcófago e saiu surfando pelo céu em sua prancha dourada entre as estrelas. Foi numa noite como essa entre as estrelas. Olha pro céu que você também vai ver. Rá! Rá surfando entre as estrelas!”.
Quando terminou, algumas pessoas aplaudiram, outras uivaram, outras assobiaram. A garota agradeceu, e, percebendo que eu a fitava, sorriu para mim e veio ao meu encontro enquanto a banda começava a tocar outra música.
— Oi. – ela disse, e antes que eu respondesse, de ímpeto abraçou meu pescoço e, como se fôssemos íntimos, beijou a minha boca vigorosamente, e sua boca tinha o sabor de morango e sua pele tinha o aroma de baunilha. – Você não tirou os olhos de mim desde que chegou. Pelo menos gostou do poema? – perguntou, passando a ponta dos dedos pelo meu cabelo.
Fomos dançando, embalados ao som da música, até que nos recostamos em um poste na esquina e continuamos a nos beijar, colados um ao outro. Ela me fazia sentir confortável, como se eu pudesse abrir minha vida a ela.
— Você parece preocupado. Eu te assusto? – ela perguntou.
— Estava pensando no seu poema. Gostaria de ter esse poder de viajar pelas estrelas, às vezes – disse.
— Desejo realizado. A Terra ao redor do Sol, o Sol às voltas da galáxia, a galáxia pelo universo, certo? Já estamos viajando entre as estrelas. É uma viagem curta, então aproveita. Olha como a noite está linda – ela sorriu tão cintilante quanto a noite, e ambos olhamos para o céu estrelado.
— Às vezes eu queria receber um sinal do céu, de que me encontrei na vida, sabe? – confessei. – Gosto de olhar as estrelas, mas quando vejo a constelação de Órion, fico desanimado, porque Órion aparece sempre deitado, caído, como se fosse um guerreiro exausto, abatido. Eu me sentiria tão bem se Órion estivesse de pé para mim. Por que nunca vejo Órion de pé como os antigos viam? – indaguei. Ela tocou meu rosto como se enxugasse uma lágrima invisível.
— Cara, é por causa da latitude. Estamos ao sul dos trópicos. Quanto mais ao sul do Equador, mais deitado Órion aparece no céu. Se quer ver Órion de pé, então é você que está no lugar errado – ela explicou, como se tivesse milhares de anos de experiência para me passar.
— Qual seu nome? – lembrei-me de perguntar.
— Ah, cara, não bastava só curtirmos o momento? Você tinha que me nominar? – retrucou com certo desapontamento. – Se quer saber, meu nome é Lívia. Mas meu nome de bruxa é Trívia.
— Então você é bruxa. Pode fazer uma bruxaria agora? – desafiei em tom de brincadeira.
— Cuidado com o que deseja esta noite. Palavras têm poder – respondeu com uma voz severa, e recostou a cabeça em meu peito.
— Pode fazer sua bruxaria em mim, sim – persisti, sem me dar conta de que tão prontamente ela quisera ficar comigo, desistira de me abraçar ou de continuarmos juntos.
— Já que insiste...! – suspirou, e rogou com uma voz resignada e solene: – Em nome de Trívia, que encontres teu caminho nessa encruzilhada ínvia, que a Órion vejas de pé como desejas, mas, até lá, que teu rosto se altere, marcado com o vazio que te fere. Que assim seja e assim se faça! – e após invocar essas palavras, beijou meu queixo com ternura, afastou-se e deixou a multidão, atravessando a rua.
Fiquei ali parado por mais alguns minutos, absorto, pensando no quão estranho fora aquele repentino e inusitado encontro, até que fui para o pensionato dormir. Embora pensasse que aquela havia sido a noite mais excêntrica que eu já havia experimentado, eu estava enganado. Nas noites seguintes, imaginando deparar-me com aquela multidão novamente, encontrei o estabelecimento fechado como era antes, como se nunca o tivessem aberto. Perguntei se alguém se lembrava daquela noite, da multidão, do barulho, mas todos diziam que o estabelecimento sempre estivera fechado. Talvez, pensei, só o tivessem aberto para alguma reunião eventual. Porém, fato mais extraordinário e curioso era que, a partir de então, minha barba passou a crescer com uma falha. No canto do meu queixo, como a marca do que parecia um beijo, não cresciam mais pelos. Aquela área estava completamente lisa. Bem onde aquela garota havia beijado.
Meses se passaram, com colegas e professores perguntando sobre a falha no meu queixo, retomei minha rotina entediante, continuei com os estudos, passava nas provas bimestrais apesar de meu desinteresse, e até participei de um encontro nacional de estudantes no litoral norte do país. Lá, hospedado com outros estudantes à beira-mar, fiquei maravilhado com o povo, a cultura, o oceano azul, a natureza. E foi após uma visita guiada a um aquário que um interesse emergiu, um interesse puro, leve e pleno, e tomei uma decisão súbita, mas que me pareceu preencher um vazio.
Passeava pela praia à noite aproveitando o último dia do encontro de estudantes, quando decidi que largaria a faculdade que estava cursando no sul e que iria estudar oceanografia no litoral. Enquanto pensava nos detalhes da mudança, me dei conta de que estava coçando o queixo e senti que no lugar da falha os pelos estavam voltando a crescer novamente. Então, lembrei de ver se era verdade que o céu era diferente perto do Equador. Olhei para cima e lá estava Órion, desta vez de pé, como deveria estar para todos. Eu que estava realmente olhando do lugar errado. Ri, e enquanto meditava em tudo aquilo, um rastro de luz cruzou o céu. Devia ter sido uma estrela cadente, mas acho que era Rá surfando no céu em sua prancha dourada entre as estrelas.
Nunca acreditei no sobrenatural embora nesse mundo existam muitos mistérios, como os acontecimentos daquela noite estrelada e profunda de outono, quando eu caminhava de volta da faculdade para o pensionato universitário em que morava. Estava com meus vinte anos, aborrecido com a vida, pensando se a faculdade que eu havia escolhido era mesmo o que eu queria, quando notei uma aglomeração ao redor de um antigo estabelecimento de esquina que sempre esteve fechado e pelo qual passava todas as noites, mas que agora havia sido transformado em um agitado point underground. Pela calçada, pessoas conversavam, algumas bebendo cerveja, outras fumando narguilé. Parei em frente ao salão e vi que lá dentro havia de tudo um pouco. No fundo, pessoas aproveitavam para raspar o cabelo com cortes exóticos; ao lado, uma jovem terminava de tatuar um unicórnio no braço; em um canto, duas namoradas liam mangá acomodadas em um pufe; dois homens grafitavam na parede uma árvore com galhos que culminavam em mosaicos, e, no meio do salão, uma baterista, uma guitarrista travesti e uma vocalista formavam uma banda.
— Beijo na virilha, galera! – saudou a vocalista da banda. – Nós somos as Liliths da Babilônia – anunciou sob aplausos. – Estamos aqui pra cantar o som que tá na nossa mente pra sua mente.
Outra curiosidade, se é que havia algo de comum ali, era que a banda convidava uma pessoa para entoar um poema ao microfone após cada música. Permaneci na calçada, olhando para uma ruiva de olhos claros e batom escuro que chegara para declamar seu poema.
— Meu poema se chama “Rá em sua prancha dourada” – anunciou. E com uma voz suave entoou, acompanhada pelo ritmo da bateria: – “Há muito tempo, nem se lembrava quando, se pouco antes das pirâmides ou logo depois da queda de Atlântida, Rá acordou da sepultura onde se mumificava toda noite. Olhando pras estrelas, cansado daquela vida morta, sentiu frio. Vazio. Rá se cansou de se cansar e então riu. Rá! Rá subiu no sarcófago e saiu surfando pelo céu em sua prancha dourada entre as estrelas. Foi numa noite como essa entre as estrelas. Olha pro céu que você também vai ver. Rá! Rá surfando entre as estrelas!”.
Quando terminou, algumas pessoas aplaudiram, outras uivaram, outras assobiaram. A garota agradeceu, e, percebendo que eu a fitava, sorriu para mim e veio ao meu encontro enquanto a banda começava a tocar outra música.
— Oi. – ela disse, e antes que eu respondesse, de ímpeto abraçou meu pescoço e, como se fôssemos íntimos, beijou a minha boca vigorosamente, e sua boca tinha o sabor de morango e sua pele tinha o aroma de baunilha. – Você não tirou os olhos de mim desde que chegou. Pelo menos gostou do poema? – perguntou, passando a ponta dos dedos pelo meu cabelo.
Fomos dançando, embalados ao som da música, até que nos recostamos em um poste na esquina e continuamos a nos beijar, colados um ao outro. Ela me fazia sentir confortável, como se eu pudesse abrir minha vida a ela.
— Você parece preocupado. Eu te assusto? – ela perguntou.
— Estava pensando no seu poema. Gostaria de ter esse poder de viajar pelas estrelas, às vezes – disse.
— Desejo realizado. A Terra ao redor do Sol, o Sol às voltas da galáxia, a galáxia pelo universo, certo? Já estamos viajando entre as estrelas. É uma viagem curta, então aproveita. Olha como a noite está linda – ela sorriu tão cintilante quanto a noite, e ambos olhamos para o céu estrelado.
— Às vezes eu queria receber um sinal do céu, de que me encontrei na vida, sabe? – confessei. – Gosto de olhar as estrelas, mas quando vejo a constelação de Órion, fico desanimado, porque Órion aparece sempre deitado, caído, como se fosse um guerreiro exausto, abatido. Eu me sentiria tão bem se Órion estivesse de pé para mim. Por que nunca vejo Órion de pé como os antigos viam? – indaguei. Ela tocou meu rosto como se enxugasse uma lágrima invisível.
— Cara, é por causa da latitude. Estamos ao sul dos trópicos. Quanto mais ao sul do Equador, mais deitado Órion aparece no céu. Se quer ver Órion de pé, então é você que está no lugar errado – ela explicou, como se tivesse milhares de anos de experiência para me passar.
— Qual seu nome? – lembrei-me de perguntar.
— Ah, cara, não bastava só curtirmos o momento? Você tinha que me nominar? – retrucou com certo desapontamento. – Se quer saber, meu nome é Lívia. Mas meu nome de bruxa é Trívia.
— Então você é bruxa. Pode fazer uma bruxaria agora? – desafiei em tom de brincadeira.
— Cuidado com o que deseja esta noite. Palavras têm poder – respondeu com uma voz severa, e recostou a cabeça em meu peito.
— Pode fazer sua bruxaria em mim, sim – persisti, sem me dar conta de que tão prontamente ela quisera ficar comigo, desistira de me abraçar ou de continuarmos juntos.
— Já que insiste...! – suspirou, e rogou com uma voz resignada e solene: – Em nome de Trívia, que encontres teu caminho nessa encruzilhada ínvia, que a Órion vejas de pé como desejas, mas, até lá, que teu rosto se altere, marcado com o vazio que te fere. Que assim seja e assim se faça! – e após invocar essas palavras, beijou meu queixo com ternura, afastou-se e deixou a multidão, atravessando a rua.
Fiquei ali parado por mais alguns minutos, absorto, pensando no quão estranho fora aquele repentino e inusitado encontro, até que fui para o pensionato dormir. Embora pensasse que aquela havia sido a noite mais excêntrica que eu já havia experimentado, eu estava enganado. Nas noites seguintes, imaginando deparar-me com aquela multidão novamente, encontrei o estabelecimento fechado como era antes, como se nunca o tivessem aberto. Perguntei se alguém se lembrava daquela noite, da multidão, do barulho, mas todos diziam que o estabelecimento sempre estivera fechado. Talvez, pensei, só o tivessem aberto para alguma reunião eventual. Porém, fato mais extraordinário e curioso era que, a partir de então, minha barba passou a crescer com uma falha. No canto do meu queixo, como a marca do que parecia um beijo, não cresciam mais pelos. Aquela área estava completamente lisa. Bem onde aquela garota havia beijado.
Meses se passaram, com colegas e professores perguntando sobre a falha no meu queixo, retomei minha rotina entediante, continuei com os estudos, passava nas provas bimestrais apesar de meu desinteresse, e até participei de um encontro nacional de estudantes no litoral norte do país. Lá, hospedado com outros estudantes à beira-mar, fiquei maravilhado com o povo, a cultura, o oceano azul, a natureza. E foi após uma visita guiada a um aquário que um interesse emergiu, um interesse puro, leve e pleno, e tomei uma decisão súbita, mas que me pareceu preencher um vazio.
Passeava pela praia à noite aproveitando o último dia do encontro de estudantes, quando decidi que largaria a faculdade que estava cursando no sul e que iria estudar oceanografia no litoral. Enquanto pensava nos detalhes da mudança, me dei conta de que estava coçando o queixo e senti que no lugar da falha os pelos estavam voltando a crescer novamente. Então, lembrei de ver se era verdade que o céu era diferente perto do Equador. Olhei para cima e lá estava Órion, desta vez de pé, como deveria estar para todos. Eu que estava realmente olhando do lugar errado. Ri, e enquanto meditava em tudo aquilo, um rastro de luz cruzou o céu. Devia ter sido uma estrela cadente, mas acho que era Rá surfando no céu em sua prancha dourada entre as estrelas.