O sequestro

Amélia já tinha passado por aquele parque inúmeras vezes. Servia de atalho quando estava atrasada mas, ultimamente, a violência crescente tinha diminuído consideravelmente o número de transeuntes, principalmente no fim das tardes. Costumava levar cerca de dez minutos para cruzar a pé de um lado ao outro, um corte com ganho de meia hora, caso pegasse um ônibus. Estava para ser demitida, e não poderia falhar mais uma vez. Sentia a corda de contas atrasadas a apertar seu pescoço.

"Essa será a última vez", dizia a si mesma, enquanto atava a gola do casaco com uma das mãos e apertava a bolsa contra o corpo com a outra. Precisava bater seu cartão na hora e não podia perder tempo. Com passos apressados olhava para trás, certificando-se de que ninguém estranho a seguia, mas àquela hora, qualquer pessoa a passar por ela seria considerada uma estranha.

Era outono e estava escurecendo mais rápido que das outras vezes. Seria uma tarde bonita se o céu não estivesse com um tom púrpura que lembrava vinho derramado. Um vento úmido e repentino emaranhou seus cabelos e levantou as folhas mortas ladeadas na estreita passarela. Enquanto tentava tirar os fios perdidos de seus olhos, uma figura sinistra apareceu em sua frente. "De onde essa criatura saiu?"

Amélia não se considerava medrosa, apenas cautelosa, ainda mais depois de tantos alertas de seus amigos. Não tinha parentes e vivia só, não queria ser do tipo paranóica, mas aquela aparição a fez estacar e fechar a cara.

- Dá licença, por favor?

- Você tem que vir comigo! - disse o homem estranho a pegando pelo pulso e puxando-a para um caminho lateral.

- O quê? Largue-me agora! - gritou com o sujeito.

O homem era bem mais forte e Amélia não podia com ele. Seus olhos apavorados buscavam uma ajuda ao redor que não viria. Estava só.

- Eles estão vindo. Olhe para o céu, hoje é a lua de sangue e quem estiver desabrigado será levado.

Quanto mais o sujeito falava, mais ela se debatia, até que ele a pegou pela cintura e a arrastou sem dificuldade para uma galeria ocultada por um arbusto. Ela nunca havia passado por aquele lado e, decerto, ninguém desconfiaria daquele lugar esquecido pelo departamento de obras e jardins.

A medida que adentravam o corredor escuro e cheio de goteiras, o homem ia acendendo as lâmpadas amarelas sustentadas por uma fiação precária e pouco confiável. Amélia estava apavorada, mas seus gritos não chegariam aos ouvidos de ninguém.

Ao fim do longo corredor, uma porta de ferro foi aberta com um chute e fechada com um grosso cadeado tão logo Amélia foi empurrada contra a parede.

- Moço, não tenho dinheiro, sou pobre. O senhor deve ter pegado a pessoa errada. - gritava em meio ao choro convulsivo - Eu...

Foi interrompida por uma mão suja em sua boca.

- Shiu! Cale a boca e escute.

Amélia estava por demais apavorada, mas o som que chegou aos seus ouvidos era realmente estranho, como metal arrastando no asfalto.

O ambiente era iluminado por uma lâmpada fraca que piscava incessantemente, aumentando a sensação de isolamento. Ainda atenta ao barulho que se intensificava, Amélia deu uma olhada ao redor enquanto o sujeito procurava ouvir por trás da porta. Era um ambiente úmido, mas tinha uma cama de solteiro, um frigobar velho, mesa, cadeira e vários recortes de jornal presos à paredes escurecidas e bolorentas.

- Pegue alguma coisa na geladeira, isso pode demorar. - disse o homem tirando o capuz e indo sentar-se a seu lado.

Amélia se encolheu no canto oposto, certa de que seu fim estaria próximo, até que um som ensurdecedor fez com que ambos tapassem os ouvidos.

- O que está acontecendo? - gritou.

O terror de Amélia se destinou a outro autor, algo que estava lá fora e que parecia ser mais assustador para o homem do que para si. Ele não parecia um mendigo. Aliás, tinha barba cerrada, feições finas e olhos inteligentes.

Por um pequeno basculante no alto da parede percebiam o som do metal e luzes estranhas, como lasers coloridos, que pareciam vasculhar o derredor a procura de algo. Estava bem longe de ser um dia normal, e o risco de ser demitida nem chegava perto daquilo.

O homem levantou e apagou a luz. Subiu em uma cadeira e, cuidadosamente, tentava ver o que se passava do lado de fora, até uma das luzes iluminar seu rosto. Ele desceu apressadamente e puxou Amélia para debaixo da cama, que o seguiu sem resistência.

- O que está acontecendo?

- Shiu! Fique quieta. Assim que amanhecer eles vão embora.

Passaram a noite e a madrugada contra o chão gelado, mas nenhum dos dois ousou se mexer. As luzes volta e meia retornavam, vazando pelos vidros sujos para o interior e os fazendo encolher ainda mais até dormirem pelo frio e exaustão.

Acordaram com os primeiros raios de sol, doloridos e enrijecidos. Amélia enfim pode ver melhor o rosto do homem que, supostamente a havia salvado de algo sobrenatural. Ele era bonito.

- Meu nome é Jonah. - disse com olhar zombeteiro, - Muito prazer. - falou enquanto retirava a luva da mão mecânica cheia de led.

Amélia não intencionava dizer seu nome, então ele prosseguiu.

- Não tenha medo, não sou hostil. - Apontando com a outra mão para o basculante.

Ela não queria ser indelicada, mas dada as circunstâncias, não havia como não perguntar.

- Como isso aconteceu? - olhou para a mão estendida, sem tocá-la.

- Nossos amiguinhos lá fora, costumam nos visitar há séculos para a colheita a cada lua de sangue. Fui apenas mais um sem família a ser levado e devolvido depois de um tempo com esse adereço bonito em minha mão direita. Não tenho como voltar ao que eu era e nem explicar como isso veio parar aqui. Como não pretendo ser um rato de laboratório, passo meus dias nesse lugar nada hospitaleiro.

Amélia ouviu com atenção, mas seus olhos viravam dele para a porta em uma pergunta muda.

- Pode ir, se quiser, mas não vai ter nada bonito lá fora. Eles ainda não fizeram a descontaminação. Espere mais um par de dias e todos que porventura viram, terão esquecido.

- Ah.

Se as coisas realmente foram como ele descreveu, a essa hora ela seria mais uma desempregada. As coisas do lado de fora não pareciam realmente nada promissoras.

- Foi difícil pra você viver aqui desse jeito?

- Até que não. Ganhei algumas habilidades, um bônus, eu acho. Pelos recortes que pode ver em minha linda parede, acho que estou melhor aqui dentro que lá fora.

Nas paredes haviam vários recortes de jornal com as tragédias ao redor do mundo, as quais Jonah atribuiu a maioria delas aos visitantes.

Amélia pensou por um tempo e perguntou:

- Que habilidades são essas?

- Posso criar ilusões, me transportar e alterar minha triste realidade. Não sei até hoje o que pretendiam comigo, mas certamente que essa mão aqui pode muito mais coisas que a anterior.

Amélia não estava mais com medo. Tinham passado aquelas horas juntos sem que ele lhe fizesse algum mal, aliás, parecia mesmo que ele a tinha protegido de um perigo bem maior. Curiosa, pediu uma demonstração.

- O que gostaria de ver? - disse levantando a mão biônica.

- Gostaria de tomar café em Paris.

Amélia estava cética, mas observava com atenção Jonah programando o dispositivo. Uma luz azul saiu da engenhoca e escaneou todo o ambiente. Subitamente as paredes e demais objetos passaram a tomar nova forma, criando o cenário de um café em Paris.

- Sente-se - ofereceu-lhe a cadeira junto a mesa com um arranjo floral sobre uma toalha de linho.

Jonah chamou um garçon que lhes apresentou o menu.

- Escolha o que quiser, não temos que pagar por nada.

Amélia estava estupefata, absorta por aquela mudança repentina de realidade. Tudo parecia verdadeiro, até o cheiro dos croissants e o sabor do café.

- Isso não é real, não é mesmo? Não estamos em Paris?

- Depende do que chama de realidade. Posso viver bem com isso, só não quero que me levem novamente. Foi muito doloroso.

Assustada com o que via, pediu para que levasse de volta.

Ficou chocada ao perceber que mais de quatro horas haviam se passado e resolveu ir embora. Jonah seguiu na frente para checar se tudo tinha voltado ao normal. Pediu para que ela procurasse esquecer o que havia ocorrido naquela noite e dele também. Contudo, seria impossível para a moça ignorar algo tão surreal. Tudo tinha tomado uma nova perspectiva. Havia realmente vida em outro planeta e eles não eram legais.

Era quase meio dia quando se viu caminhando novamente pela praça. O horário não era perigoso, mas mesmo que fosse, já não tinha mais medo dos eventuais estranhos.

De volta a seu pequeno apartamento, checou o celular e viu a mensagem da supervisora avisando que não precisava mais voltar, apenas para comparecer ao departamento pessoal. Olhou com desânimo para a pilha de contas vencidas sobre a mesa, decidiu tomar um banho demorado e foi dormir.

A noite que se seguiu foi repleta de pesadelos: Contas a pagar que lotavam o apartamento, a supervisora a perseguindo com um braço biônico, e Jonah fazendo experimentos em seu corpo.

Um mês havia se passado. Amélia acordava todas as manhãs sem perspectivas e com uma forte sensação de abandono. Os amigos aos poucos se foram, não conseguia emprego e uma ordem de despejo havia sido posta por debaixo da porta no dia anterior. Pensou em sua curta passagem por Paris, no belo rosto de Jonah e que ele estaria fazendo.

A algumas quadras dali, Jonah degustava um belo filé em uma taverna na Espanha, quando ouviu ao longe leves batidas em sua porta de ferro.

- Você?

- Então, não tive a chance de dizer, meu nome é Amélia. Posso entrar?

Fim

Rose Paz
Enviado por Rose Paz em 24/03/2019
Reeditado em 21/05/2021
Código do texto: T6606465
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