O homem das flores - Capítulo 2.
Apesar de parecer bem disposta, Dona Carmelita não estava se sentindo muito bem naquela manhã. Estava triste. O homem, a quem tanto ela dedicou grande parte de sua vida, mal se importava com ela; parecia até que a plantação de flores era mais interessante para o marido, e era. Desde que a esposa ficara doente, e impossibilitada de ajudar Tadeu mudou. O homem carinhoso de outrora parecia ter murchado, assim como murcham as flores que não são regadas e bem cuidadas; e era assim que ela se sentia, como uma flor abandonada, que estava ali, jogada naquela cadeira de balanço, incapaz de fazer algo de útil.
Carmelita se sentia uma imprestável. Como algo que pode ser jogada no lixo. A casa vazia. Um silêncio medonho. O barulho vindo do velho rádio à pilha tentava em vão espantar a tristeza que brotava do coração daquela mulher. No rádio uma canção de Carlos Galhardo tocava, ao ouvi-la Dona Carmelita começou a cantarolar alguns versos:
“Um gentil Beija-Flor que voava, sobre as flores de um lindo jardim”. Ao beijá-las assim murmurava:
- O teu beijo é um prazer para mim
Beija-Flor, Beija-Flor. Teu exemplo me fez compreender. Que só vive feliz, quem amando.” Mil mentiras de amor vai jurando. Beija-Flor, Beija-Flor. Eu também uma vez fui feliz. Hoje choro de saudade. “Por alguém que não me quis.”
- Mamãe, a senhora está bem? – Perguntou uma das filhas ao ver a mãe com os olhos rasos d’água.
- Estou bem, querida. Só me emocionei com essa música, nada de mais.
A filha puxou uma cadeira e sentou-se ao lado da mãe:
- Essa canção é do tempo em que você e papai namoravam, não é mesmo?
- Sim. Foi logo quando nos conhecemos. Muito dos nossos beijos foram embalados por essa canção.
- Vejo que vocês dois nem se olham mais...
- Minha culpa. Se não tive adoecido, com toda certeza desse mundo, nosso casamento ainda estaria firme. Só estamos juntos por causa de vocês, filhos e netos.
- A senhora sabe que não tem culpa por ter ficado adoentada.
- Sim, mas vá dizer isso ao teu pai. Até hoje ele me joga na cara dizendo que eu sou uma falsa. E que vivo a fingir minhas dores por pura preguiça de não querer ajudar no cultivo das flores. Justo eu, que dediquei anos de minha vida a ficar de cócoras, plantando aquelas malditas sementes e a regar com água limpa as flores desse imenso jardim. - Diz ela apontado para o enorme campo florido. - Se não fosse por elas, a relação entre eu e sei pai seria muito melhor. Mas o que eu posso fazer se ele passa o dia debruçado por essas flores?
A filha respirou profundamente depois de ouvir cada lamento da mãe:
- A senhora já tentou falar com ele? Não sei, mas uma relação de mais de cinquenta anos não pode terminar assim, sem mais nem menos.
- De que adiantaria? Sou uma imprestável! – Falou Dona Carmelita sendo invadida por uma enorme onda de tristeza.
Foi abraçada pela filha. Uma mulher de cabelos longos, jogados por detrás da cabeça, e de olhos pequenos e aflitos.
- Não fique assim mamãe...
- Eu era tão nova quando conheci teu pai. Mal sabia o que era o amor. Tadeu foi meu primeiro namorado, meu primeiro beijo. Mal havia completado quatorze anos quando nos conhecemos e nos apaixonamos. Tudo ia bem. Então fiquei gravida de Lázaro, seu irmão mais velho.
- Foi aí que vovô te obrigou a casar, não foi?
- Isso mesmo. Mas antes de me obrigar a fazê-lo, deu-me uma surra de cinto que me deixou toda roxa. Precisei ficar dentro de casa por dias até que as manchas desaparecessem.
- E por que não fugiu?
- Não tinha para onde ir. E eu, medrosa, não queria me arriscar por aí, por esse mundo.
Então se fez silêncio. Nem mãe e muito menos a filha falavam. Do lado de fora, Tadeu ao lado do neto mais novo, Leonardo, arrancavam mato e ervas daninhas que cresciam teimosas ao lado das flores, dava pra ver avô e neto conversando.
- Vô. Por que o senhor faz isso todo dia?
Tadeu puxou uma erva daninha da terra e mostrou-a ao neto:
- Isto daqui? – Disse o Tadeu ao puxar um pequeno pedaço de mato.
- Hum!
- Bem. Essas plantinhas aqui não ajudam em nada no desenvolvimento das flores. Só atrapalham.
- As pessoas podem atrapalhar também, vovô?
Aquela pergunta caiu como uma peste que ataca a plantação.
- Não entendi?
- Por que o senhor não gosta mais da vó Carmelita?
Tadeu pareceu engolir em seco a pergunta fulminante feita pelo neto:
- Eu? Bem... – A voz saiu, mas não de um jeito firme e verdadeiro. - Chega por hoje. Acho que é já está na hora de você ir para a escola.
Tadeu até que tentou disfarçar, entretanto, era visível em seus olhos a frustração. Como um pirralho, que ainda usava fraldas poderia ter feito tal questionamento. Mas no fundo o menino estava certo, apesar de ser uma criança, que mal entendia dos problemas dos adultos.
- Um pivete de dois anos perguntando se eu gosto da minha mulher. – Disse ele sozinho, em meio à plantação de rosas vermelhas.