O menino-luz

Já se vão quase quarenta anos, Dona. Era final de ano. A senhora imagine: uma família simples, da roça, em dia de domingo chuvoso. O pai estava na missa, povoado de légua e meia de distância; a menina de seis anos e o caçula de três estavam na casa da vizinha, para as bandas de baixo, próximo ao córrego que dá pro outro lado da Boa Vista.

Na casa, a mãe se recuperava de uma cirurgia e o filho mais velho – ele, o menino de quem lhe falo e razão dessas rememorações – descansava da manhã de jogo de bola no campo de várzea com os amigos. É estranho, a senhora veja: do que conversaram aqueles meninos no não sabendo que era a última vez que se viam? E se soubessem, mudavam? Ou somente se despediam diferente? A gente quer voltar pra saber essas coisas, mas não volta.

O relógio dava uma hora da tarde, mais ou menos. Em roça se almoça cedo. Época das águas, chuva estiando, aquela mistura de tempo fechado e aparecência do sol por entremeio às nuvens. A hora, como se diz, em que se acha que não tem mais perigo e ainda tem. É que, de fato, nunca é hora sem perigo.

A senhora por favor não diga: “Mas ele não devia ter ido lá fora!”. O que pensa um menino de nove pra dez anos? A vida é um imenso circo nessa etapa da vida. Tudo é um maravilhamento permanente. As oscilações dos perigos e a braveza do mundo, como costumava dizer finado Seo Geraldo, que Deus o tenha, isso não comparece, é música que não foi escalada pra cantoria da folia, é trecho de leitura da missa que não vai ser feita. Esse menino, a senhora não o culpe de jeito nenhum, era no igual qualquer um desses. Com o respeito, como era a senhora também, uai!, nos idos de muito tempo atrás.

A tesoura na mão e os pés no chão. Isso entrou pra história como sendo a causa daquele desenlace por demais comovedor de toda a região que compareceu ao velório. O pai e a mãe davam desmaio; a filha do meio no mesmo assustada; o caçula era o único que o sofrimento não chegou todo no dia: foi vindo de pouquinho com o passar dos anos, com a compreensão das coisas como são e não como eram.

Quando se deu o fato, chamaram o pai do menino, nessa hora já desocupado da missa, mas de passagem na casa da irmã para a aplicação de injeção. “Caiu raio na sua casa, seu menino morreu!”. Devia de ter curso, nas ensinagens de escola, de como dar notícia ruim para as pessoas. Tem jeito de dizer a morte sem ser doído? Deve de ter, a senhora que é mais vivida que me diga no fim, que já me encaminho pro desfecho dessa passagem.

Teve culpa o pai? Teve não, Dona. Nem de longe pense nisso. Ele tinha visto, durante a missa, que a chuva dava lá para os lados de sua casa. Mas a vista não dá dimensão a tanta distância. A gente sabe é quando chega perto. Os filhos mais novos? Culpa de que, a senhora diz? Eles mais brincavam, como deve de ser toda criança, livre de obrigação e de antecipação de adultices indevidas.

E a mãe? Essa a senhora tenha mais ainda compreensão. Saiba que sua bravura deveria constar nos livros de história: pegar seu filho caído do lado de fora da casa, ele que apenas tinha pedido a tesoura pra picar pedacinhos de papel na enxurrada. Pense bem: em cabeça de menino, aquela água corrente em lugar que não é comum, devia de ser como um riacho. Precisava de se aproveitar logo, entre o estiar da chuva e o fim daquela corrente mágica de água misturada com terra trazida dos lados de cima, da grande figueira que ainda lá permanece, guardiã dessa e todas as histórias ali havidas.

E depois disso, trazer o pequeno nos braços pra dentro de casa! Tivesse força, ela levava ele era para a rodovia, pra pegar carro e ir ao povoado, à cidade, a qualquer refúgio que desse a ela a esperança de que o que já sabia não fosse o que era. Ainda assim foi – e deixar o coitado ali, desmaiado! – pra parar carro, na chuva.

Adiantava mais não. A senhora sabe: tem coisas na vida que não tem remédio. Peço, pois, que não fale em culpa. Essa palavra eu desaprovo para o caso. O que aconteceu ali foi o velho encontro do vivente humano e a natureza. Igual que nem aquelas pessoas que escalam montanha, com aqueles ganchinhos fincando nas pedras. Ou os barqueiros que enfrentam o mar e a noite para a pescaria de sobrevivência. Quando dá certo e voltam, a gente costuma dizer: “Venceram a natureza!”. Foi nada, Dona. A sorte ali foi que teve ajuste demais de certo entre os apetrechos e a hora. O remo, a corda, o martelinho, essas coisas todas dão a impressão de que o bicho pessoa domina. É nada. A natureza domina sempre. Só acontecem os casos em que a força dela, por sempre maior, não se manifesta. Aí parece que ela perdeu. Ilusão nossa.

No dia do menino, é essa a explicação: não teve ajuste. Um par de chinelos, valia. A tesoura não estando, resolvia, quem sabe. A hora sendo meia hora antes, ou menos, poupava e mudava o rumo de toda a história futura. Mas não foi assim. A natureza que é sempre grandiosa – e que ninguém a culpe, nem a senhora, porque natureza segue o que tem que fazer, em suas leis já conhecidas por nós e em outras escondidas em profundidade imensa – venceu naquele instante.

O corpo de um menino de nove pra dez anos é pequeno demais para comportar a força de um raio, ainda que de passagem à procura de onde se aterrar. Ao passar, transbordou e alterou tudo nele. O menino foi inundado de natureza. No imediato do instante, transfigurou. Virou um menino-luz.

José Carlos Freire
Enviado por José Carlos Freire em 02/03/2019
Código do texto: T6588153
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