Enganando a Alma
Enganando a alma
Ele abotoou com cautela o suéter listrado caído sobre a camisa. Morava na cobertura do prédio, cinco andares acima do térreo, dois quarteirões da praça mais próxima, três ruas e meia do mercado que frequentava mensalmente no dia seguinte ao pagamento. Seus sapatos marrons desciam diariamente 96 degraus revestidos de porcelana barata e carcomida para encará-los outra vez, subindo e subindo, bem lentamente, no exato momento da troca de turnos entre o entardecer e a ''noitinha''.
Ele exercia algum trabalho em algum lugar, nada baixo tendo em vista a camisa, o suéter, a gravata e os sapatos; alto tampouco, não formara-se em curso vistoso ou sequer gostava do estudo, das letras, cálculos e ciências. Todavia, tinha amizades incomuns em grande número, conhecia muitos nomes e faces, mas a respeito de nenhum deles falava e com certeza não cultivava orgulho.
Porém, à vista do povo isso ou aquilo constituíam parte de detalhes supérfluos a respeito de sua imagem, bastante intrínsecos e peculiares e de utilidade inexistente. Fato, ou quase. Inúteis, quem sabe, para acrescentar-lhe melhora de vida, porém, sendo irrisórios nesse sentido, em outra via apareciam com características opostas, devidamente calculadas a ponto de encarcera-lo sem o uso de correntes, ou grades ou paredes maciças.
De fora não se podia saber sobre tudo isso, nem de perto, tampouco ainda mais intimamente. Ele não dizia ou falava; sorria a estranhos na rua, praticava certa caridade e comentava as boas novas de Deus no cafezinho da tarde tomado na barraquinha de esquina - em vagos momentos a respeito dos acontecimentos esportivos da semana -, mas não falava ou dizia nada. Deixava-se enegrecer e, corroendo-se na sobreposição lenta dos dias se aquietava, confortável, vivendo e repetindo-se em tudo, no enganoso prazer daquela sensação, que silenciosa e tardiamente viria a cavar o poço de sua queda e tecer a coragem para o pulo ao abismo.
Situação desesperadora, de fato, e esquecida, guardada para si e distante ao alcance – mesmo que fosse mínimo – de indivíduos conhecidos.
Mas como? Questiono-me.
Restava no tempo contemporâneo a sua história poucos corajosos realmente destemidos a fazer o trabalho com total entrega, resistentes ao perfume da carne e a pretensão maligna do século em questão; e ele, vestido em suéter, portador de falso sorriso, não era, nem de perto, um desses homens e mulheres – apesar da bíblia sob o braço.
E aquelas mesmas figuras das quais falei anteriormente, já não preocupadas com os pequenos detalhes de sua personalidade – detalhes que o consumiam de dentro para fora – pareciam nunca cansarem de elogia-lo, bem dizendo sua postura, sorriso e as belas palavras que proferia. Contudo, tão logo viravam às costas a ele, as belas palavras fugiam aos ouvidos, e ele, deixado no silêncio de estar consigo, apartava o riso dentre as bochechas e pendia-se um pouco mais à beirada do abismo.
Assim voltava à cobertura do prédio, a bíblia sob o braço, as sombras do entardecer dançando-lhe no rosto carrancudo.
Retornando aos afazeres no dia seguinte, vivia sua rotina, inalterável: vestindo suéter, sorrisos e a bíblia sob o braço. Chamava atenção, conquistava olhares aqui e ali; tinham-no por homem de bem, cristão correto, bom exemplo e digno de apreço. Examinavam-no com olhares de aprovação, caindo na falsidade de sua aparência construída cuidadosamente – como o inverso do casulo feio de uma lagarta prestes a transformar-se em borboleta. Em seu caso, era o casulo a parte bonita, e no interior, crescia tão somente feiura e vazio.
A postura errada ia moldando-o. Aprendera cada verso da bíblia, realmente destrinchara as páginas das escrituras de gênesis até apocalipse inúmeras vezes. No entanto, tornou-se inútil. Era como o cantor de voz angelical que de repente emudeceu. Ao abrir a boca aos estranhos na praça, na quitanda do café ou aos colegas do cotidiano, dizia belas palavras e bonitos provérbios, entretanto nenhum deles provinha do livro sagrado. A voz de Deus sussurrava-lhe a verdade, mas ele sacudia-se, chacoalhava a cabeça, abanava as mãos como alguém atormentado por um enxame de moscas.
De novo acordava, vestia a bíblia sob o braço e doava sorrisos. A verdade a bater-lhe na porta da alma insistia, sem descanso, querendo sua salvação. Engando a alma ele seguia, apegado ao segredo, a falsidade, a mentira, discretamente tecendo a coragem de pular, pois jazia pendido na beirada do abismo.
Por: Filipe de Campos