Fragmentos
Eu descia a rua do Vini, ele me tinha pedido pra comprar sacos plásticos e fita durex. Os poucos sacos que o irmão dele trouxe acabaram. Sendo ele demasiado preguiçoso, mandou-me buscar mais sacos. E lá fui eu outra vez descer e subir a íngreme ladeira da rua.
Não foi difícil encontrar a loja. Irajá é um bairro residencial, porém, tem muitos pontos de comércio. Entrei dei bom dia ao vendedor e pedi vinte sacos pretos, ele foi buscar. Quando voltou perguntei se tinha a fita. Notei em seu olhar uma pequena alteração, uma inquietação. Como se o corpo falasse comigo. Até o segundo vendedor ficou estranho. Eu pensei: porra, eles tão achando que eu vou desovar algum corpo, será? Vou tirar a dúvida.
O vendedor retorna. Diz que são setenta centavos cada saco e 5 reais a fita. Digo a ele: espera, deixa eu pensar quantos eu vou precisar. Ambos me analisam, até o cliente ao lado tem seu perscrutativo olhar sobre mim. "Vamos por partes", falei. E com a mão esquerda em forma de faca passo pelas articulações do meu corpo, contando membro por membro. Digo-lhe: "dez bastariam". Vocês nem queiram imaginar com que cara todos na loja ficaram.
— Você não fez isso. Não acredito.
— Pode acreditar.
— Cara, eles poderiam ter chamado a polícia. Eu chamaria.
— O padrinho da minha irmã fizera isto uma vez.
— Ele chamou a polícia, Bruno.
— Sim.
— Foi assalto?
— Não, Jonatas. O cara fez piada parecida, mas não sem graça como esta.
— Ah, Bruno. Eu gosto de sacanear as pessoas. Se não levar ninguém a morte, que mal há.
— Jonatas e teu padrinho, nunca o conheci.
— Meus pais deram eu e meus irmãos para nossos tios, não acreditam em ligação sem o mesmo sangue.
— Isso parece mórmons. Então você dará teus filhos aos seus irmão?
— Não, claro que não. Darei a você, ao Gabriel... o Leon também.
— Minha irmã ficou extremamente triste quando o padrinho dela faleceu. Ele era amigo de infância do meu pai.
— Acredito na relação de padrinho e afilhado são duradouras. Mesmos os meus pais não acreditando. Veja, Bruno. Thallys tá viajando novamente.
— Acorde, tava onde?
— Fui arrebatado pra outro tempo-espaço. Vocês falaram sobre padrinhos.
— Não vai começar com papo de signos de novo.
— Sei que você e o Jonatas não acreditam.
— É óbvio.
— Tenho uma história sobre esse tema. Querem ouvir?
— Vamos conte, suas histórias são as melhores.
O ano é 2005, no fim deste ano conheci a família do meu pai, minha mãe ficou quase dez anos distantes deles. Não me perguntem o porquê, eu não sei, e não me interessa saber.
Numa das conversa entre eles e eu, sobre o passado do meu pai, Minha avó lembrou de minha madrinha, da forma que ela morrera. Ela ateou fogo ao próprio corpo.
— Caralho.
— Deixa ele continuar, Jonatas. Como isso ocorreu.
Minha avó dizia que adorava-a. Ela e minha mãe iam na casa do meu pai, logo que entrava, abria a geladeira pra comer os quitutes. Dona Vera sempre fora cozinheira de mão cheia.
"Teu tio gostava muito dela, tiveram um pequeno caso" — dissera a velha — lembro-me de olhar para meu tio e notar a nítida expressão tristonha em sua face.
"Ela te amava tanto, meu neto. Entendo os motivos que a levaram a cometer tal atrocidade. Mas ela poderia ter pensado em você. Ainda não havia completado um ano que teu pai fora assassinado".
Eu confirmei a opinião, e expus a minha: “acho errado o que ela fez. Tantas pessoas querendo viver. Tirar a própria vida por besteira”. "Besteira!?" — berrou tia Mariângela. Eu retruquei: “Ela se matou por causa do fim do noivado.” “Não, meu filho — disse minha tia — sua madrinha foi estuprada.”
— Nossa!
— Fique quieto, Jonatas. Continue.
Eu disse que não, mas todos que estavam naquela sala, meu tio, três tias e minha vó, confirmaram o que nunca tinha sido me falado antes pela parte materna.
Foi numa comemoração de uma prima de sua mãe, disse minha vó. Estava tarde, sua madrinha estava de saída e o jovem marido da prima da sua mãe, ofereceu-se pra leva-la em casa. Como era tarde aceitou o convite. Ao invés da casa de seus bisavós, com quem ela morava, a levou para um motel. Algum tempo depois ela tirou a própria vida e a do bebê que carregava.
Disse a eles que nunca soubera desta história. Minha família poucas vezes tocara sem seu nome, principalmente minha mãe. "Elas eram tão amigas", era o que eu escutara algumas vezes durante a infância.
Com os passar dos anos, foi-se cada vez menos comentando sobre ela. Pensei que fosse pelo fato do suicídio, ninguém quer na família uma mancha desta paras novas gerações. Hoje concordo em partes. Muitos depois faleceram em nossa família. Tocamos poucas vezes em nomes, porque além dos bons pensamentos, os tristes também vêm e juntos deles vem saudade.
Não dei a real importância que aquela revelação merecesse. Passara mais de quinze anos, o que eu poderia ter feito. Contudo, saber que ela morrera grávida ficou cravado em minha alma. Os anos foram passando e com eles as pancadas da vida trouxeram o amadurecimento. Hoje tenho consciência da tragédia, poderia ter tido um grande amigo ou uma namoradinha, sabe como são as crianças.
— Diga-nos como ela morreu. – perguntou Jonatas.
— Lembra que eu viajava enquanto vocês conversavam. Então, minha consciência foi levada para o ano de 2003, Para uma madrugada de quinta feira de carnaval em Espírito Santos.
— Porra, lembra até a hora não?
— 3:27.
— Sério?
— Tô de Sacanagem, mas era por este horário.
— Eu acreditei em você, babaca. — falou Jonatas.
Minha mãe conversava com uma conhecida dos meus tios. Ela junto do marido e do filho, viajaram antes do carnaval com meu tio de carro para a casa de praia dos pais dele. Eles pegariam estrada de manhã para voltar pro Rio. Por conta disto ficaram até tarde conversando enquanto todos dormiam, e eu com elas.
Ambas falavam sobre nosso bairro. E num desses assuntos, surgiu o suicídio da minha madrinha. Minha mãe contara como se deu a morte, eu então com pouquíssimos dias para completar os catorze anos, somente sabia da suposta causa e da qual fora a forma do suicídio. Eu não sabia era da proporção da tragédia, e aquilo parou Jardim América.
Minha mãe contara que minha bisavó a viu tentar se enforcar com fio do ferro dentro de casa. Logo depois que o noivo desatou o noivado, assim que a história chegou em seus ouvidos. Ela não queria término, mas ele não acreditou nas palavras dela. Ela tentou uma outra vez, mas falhara novamente. Porém, ainda assim, dizia que iria se matar. O noivo, não lembro o nome dele, tinha o hábito de guardar gasolina no banheiro dos meus bisavôs. Ele trabalhava com transportes, caminhoneiro acredito eu. A única lembrança dele é uma foto dele deitado sem camisa na cama do quartel.
Minha madrinha foi ao banheiro. Pegou o galão de 10 litros e o jogou cabeça a baixo todo o combustível. E ascendeu o isqueiro.
— Quanta coragem, cara.
— Que loucura, podia ter matados todos na casa.
As tampas dos bueiros levantaram. Fora explodindo toda a encanação da rua.
— Mas como isso. - perguntou Bruno.
— Bruno, eram dez litros. Toda aquela gasolina desceu esgoto abaixo.
— Fora que nos esgotos há gás metano pela decomposição da matéria orgânica. Sempre pensei nisso como catalisador da explosão.
Minha mãe dormia naquela hora, e mesmo com a explosão ela não acordou. E todos deram crédito ao sono pesado. Porque antes comentava-se que era preguiça ela não levantar e ir me vê chorando no berço. Quando acordaram-na, viu a casa inundada e o corre-corre dos bombeiros. Depois que soube do acontecido correu pro hospital.
— Espera ai, sua madrinha não morreu na hora?
— Calma, deixa-me terminar.
Chegando ao hospital, o paramédico limpava a ambulância encardida, Parecia que alguém tinha jogado um saco de carvão. Ela não teve grau de queimadura, ela literalmente torrou. O paramédico impressionado com que vira, contou-a que dentro da ambulância, minha madrinha arranhava os braços dizendo: "eu quero morrer, eu quero morrer!"
— Foi a última vez que escutei sobre a minha madrinha, até aquela tarde de sol e chuva no finzinho de Dezembro.
— Você sabe quem é o estuprador? - perguntou Jonatas.
— Você nunca perguntou a sua mãe quem estuprou tua madrinha. - disse Bruno. — Pelo que percebi a parte do seu pai não tinha Contato com a parte da sua mãe, certo?
— Sim, correto.
— Então foi sua mãe que deve ter contado a eles na época. E você nunca perguntou a ninguém quando descobriu esse lado da história?
— Não, pois como disse, eu não me importei. Eu fui um adolescente muito egoísta com minha família. Sempre me importei comigo. Não por ser um pessoa ruim. É que eu vivia preso em minha bolha invisível. E ainda vivo, de certo modo.
— Todos passamos por isso, né Bruno.
— Então você não quer saber quem foi o agente de toda essa tragédia?
— Eu descobri quem foi. Em 2006 minha mente ainda fresca desse assunto. Minha irmã na época com dez anos ia dormir na casa da minha tia com minha prima. Numa das vezes. Minha avó e bisavó maternas conversavam na sala sobre esse fato. Minha bisavó, que Deus a tenha falou: "Não gosto disso. Ela se esqueceu o que ele fez." Minha avó, que Deus a tenha em seu lado, respondeu: "É, tem que ter cuidado. Mas a mãe deixa. Fazer o que"
Foi a primeira e última vez que ouvi alguém falar mal desse tio que eu sempre gostei.
— Como você sabe que elas falavam dele como o estuprador.
— Como? Intuição. Minha vida é regida pela intuição.
— Você nunca quis confrontar esse teu tio. - perguntou Jonatas.
— Eu cresci ganhando dinheiro e presente dele. nunca tive motivos para ter raiva ou ódio. Mas toda vez que o vejo o pensamento aparece. Pela rua, festas de fim de semana, natal, ano novo, aniversários e casamentos. O pensamento retorna, fica como uma aba a mais aberta em minha mente. Eu o olho e tento esquecer.