"INFELIZES LUMEANOS"
Uma legião de pretendentes a uma vaga de emprego se estendia diariamente até altas horas na porta da Fábrica. Geralmente, chegava a dobrar a esquina de tanta gente faminta que se aglomerava em busca de uma oportunidade de emprego. Ao mesmo tempo em que disputavam por uma vaga, ajudavam-se com alguma comida e água que eram repartidas com os que não tinham absolutamente nada. Todos desejavam trabalhar na Fábrica, afinal, era a única que contratava funcionários todos os dias. E o salário era pago em mantimentos retirados no armazém do Imperador. A Fábrica dominava uma região onde não havia concorrentes que pudessem ofertar empregos. E o gigantesco prédio de mármore italiano que a abrigava tinha trinta andares. O escritório do Presidente que de lá comandava a tudo e a todos, ficava no último andar. Ernesto e seu irmão mais novo chamado Jacques, eram jovens de aparência sofrida e diariamente se acotovelavam com outros pretendentes em busca de uma vaga de emprego na interminável fila da Fábrica. E a esperança já não existia para a maioria daqueles que ali estavam. Velhos, jovens, homens e mulheres, diariamente disputavam por uma vaga de emprego que pudesse alentar e acalentar suas famílias. Até porque, muito estavam sem emprego há vários anos. E todas as possibilidades em conseguir um emprego fora da Fábrica eram infrutíferas, porque os fabricantes artesanais não conseguiam competir com o gigante. E todos daquela distante localidade eram obrigados a aceitar as condições impostas por ela. O salário pago em mantimentos, combinado com uma jornada de trabalho de mais de 12 horas e pouco tempo de descanso, promoviam fadiga, tristeza e a incerteza em uma vida digna. E a fome era um fantasma assustador! Jacques, cansado, decidiu parar de tentar conseguir emprego na Fábrica. Nos meses seguintes, plantava raízes e folhas na tentativa de ajudar amenizar a fome de seus velhos pais e irmãos mais novos. Porém, tinha que entregar sessenta por cento daquilo que produzia ao armazém do Imperador, a título de impostos pelo uso da terra. Com isso, passou então a fazer parte de um contingente cada vez maior dos muitos desalentados Lumeanos que, após busca e frustração, desistiram de procurar emprego. Jacques vivia murmurando diariamente e, por onde ia dizia:
“A gente vive procurando emprego e não encontra nada! Só consegue encontrar o desânimo de não conseguir”.
A propósito, Ernesto, Jacques e seus familiares, vivem em Lume, um país distante e incorrigível, que está promovendo e vendo a maioria de seus cidadãos envelhecerem e empobrecerem a custa do trabalho escasso e mal remunerado, enriquecendo apenas os Nobres. Lume é o país do desalento. Lumeanos não têm mais a iniciativa em procurar por emprego, porque nada encontram e, quando encontram, o salário é de miséria e o trabalho uma quase escravidão. Bernardo, conhecido poeta e pensador Lumeano, escreveu na Grande Placa, aquilo que define a própria vida e a de seus conterrâneos, diante das mazelas que a Fábrica promove. Disse ele:
“A Fábrica explora, apavora e devora, desafora e só piora a vida dos Lumeanos; A Fábrica, não te adora, e é a caixa de Pandora!”
Muitos não vão mais para filas de vagas da Fábrica e não pretendem mais ir, porque a certeza de que nada vão conseguir é fato certo! Por falta de oportunidade, Lume possui uma legião de desalentados, que enfrentam um pensamento mórbido comum, do que lhes restará durante o tempo que ainda tem que viver. É um território de desalentados, que não pensam em outra coisa, a não ser a própria morte. Até mesmo àqueles que conseguem uma vaga na Fábrica, vivem em desalento, porque são tratados como escravos e não como seres humanos. Os desalentados de Lume, talvez possam ser comparados às vítimas de guerra. Até mesmo, talvez possam ser comparados às vítimas da pior desgraça humana promovida pelo Condutor durante aquela guerra mundial que vitimou milhões de pessoas. Ernesto, no passado estudava e trabalhava. Chegou a construir quatro cômodos na casa onde vive com a família e receber um diploma do curso técnico em mecânica. Tinha trabalho digno em uma das fabricantes de automóveis que faliram. Aliás, automóvel era uma espécie de “casinha com rodas” que carregava as pessoas de um lado para o outro e era conduzido por um motorista virtual. Os últimos modelos funcionavam com energia elétrica. Mas, todos os fabricantes de automóveis deixaram de existir, porque inventaram um sofisticado elevador que faz viagens no tempo. Ele leva pessoas para qualquer lugar do mundo! Mas, isso é privilégio apenas para os 1% Nobres Lumeanos. Os demais 99% de miseráveis Lumeanos não tem acesso, porque é caro e existe uma lei que separa a casta miserável da casta nobre. Aliás, voltando a falar da Fábrica, não se sabe quem é o dono. Seu Presidente, quando se pronuncia, o faz por áudio gravado. E jamais alguém da prole conseguiu estar ou falar com ele. Acreditam que seja um Nobre endinheirado! Aliás, para conseguir um emprego na Fábrica, de nada adianta ter feito algum curso ou ter trabalhado em qualquer lugar que seja. Pouco importa! Isso também fez com que o desalento tomasse conta de todos! De nada adianta procurar emprego em outros lugares, porque não há emprego para todos. Desalentado, Ernesto disse aos amigos e familiares que iria anular seu voto nas próximas eleições. Por mais incrível que possa parecer, Lume mantém as eleições diretas. Naquele momento, ele lembrou-se do Princípe, que foi eleito seguidamente nos últimos vinte anos e que nada havia feito para mudar a situação da casta miserável. Certamente porque o Príncipe não tem conseguido lutar contra os opressores de Lume, pensou ele! Até porque, o Príncipe é pessoa que todos conhecem muito bem, porque já viram sua imagem na propaganda eleitoral. Todos acreditam que o Princípe quer que os desalentados tenham vida digna. Mas, também acreditam que ele esteja travando uma luta inglória em busca daquilo que os miseráveis Lumeanos necessitam. Porém, Ernesto decidiu anular o seu próximo voto. Porque, teve um sonho revelador que mais parecia uma tragédia daquelas antiquíssimas óperas italianas. Em certa noite, Ernesto sonhou ter visto um veículo escarlate entrar pela porta principal da Fábrica. Disseram que era o Príncipe e Imperador que estariam visitando a Fábrica a fim de conseguir com o Presidente vagas de emprego e melhores condições de vida para os miseráveis Lumeanos. Em outra noite, Ernesto sonha novamente, mas, agora já não era um simples sonho. Era um grande pesadelo! Assustado e completamente suado, chama por seu irmão Jacques que acorda ao ouvir o chamado. Então, Ernesto conta ao irmão sobre o primeiro sonho. Depois, sobre o pesadelo. Interessado, Jacques senta na cama e passa a ouvir a narrativa, como se fosse uma profecia a ser cumprida. Então, Ernesto começa a narrar:
“Ao adentrar a Fábrica com aquele veículo escarlate movido a nióbio e chegar ao último andar, o Príncipe olha pela janela e contempla o vale de seu reino. Lá embaixo, os miseráveis Lumeanos, que são chamados por ele de prole, se movimentam freneticamente de um lado para o outro em busca de trabalho para o sustento diário. Ele observa cada movimento, como se não fizesse parte daquilo. Porque, para ele, a Prole nada mais é que um mero grupo de insetos que deve ser pisoteado para morrer e, assim, ter o fim de uma vida que lhes foi destinada pela própria natureza divina. Nada pode ser feito, afinal, eles são a prole, eles são os desalentados que, com sua labuta diária, devem sustentar o reino de seu Príncipe, juntamente com seus súditos, sem direito a uma vida digna. Afinal, nasceram para ter esta missão e nasceram para sofrer e morrer pisoteados. O Príncipe, sequer um dia os olhará nos olhos, pois, nem olhos eles tem, assim diz ele! Porque, ele acredita que a prole não enxerga, pois se enxergassem, não viveriam da forma como vivem. E, se tivessem visão, poderiam sair da situação que vivem. O Imperador disse que a prole era invejada pelos Nobres, pois estes últimos desconheciam a satisfação do prazer do descanso, após um dia de labuta. Porque, os Nobres são ociosos, coisa que a prole não é! E isto ficou impregnado na cabeça dos desalentados e, muitos acreditaram e continuam a trabalhar diariamente, para poder usufruir do tal prazer que os Nobres não podem ter. O Príncipe, no alto da torre da Fábrica, vestindo uma túnica bordada com fios de ouro e sapatos de couro da Cornualha, abre a janela e dá uma enorme cusparada como forma de repúdio à prole, que lá embaixo movimentava-se de um lado para o outro. Por fim, diz ao Imperador:
“Vermes malditos! Quem sabe um dia, possamos juntá-los aos porcos em uma mesma morada. Assim, poderemos economizar comida, água e, quem sabe, não mais precisaremos realizar eleições em Lume”.
Geraldo Cossalter
Dezembro 2018